Vidas paralelas: Matteo Renzi e
Manuel Valls
Análise Jorge
Almeida Fernandes / PÚBLICO / 6-4-2014
Que têm em comum
Matteo Renzi e Manuel Valls, para lá de serem os novos primeiros-ministros da
França e da Itália, gozarem de alta popularidade, na esquerda e para lá da
esquerda, e manifestarem uma inaudita energia? A primeira semelhança é o dom de
irritar os seus partidos — o gosto de violar tabus, enterrar dogmas e dizer em
voz alta “verdades inconvenientes” (
Tendo um percurso
político diferente, encarnam o realismo e o reformismo. Dizem-se de esquerda e
são acusados de ser direita. Antes de ir ao assunto, passemos pela actualidade.
1.
A Itália está na
moda em Paris. A conquista do poder por Renzi suscitou em França uma atenção
condescendente. Foi elogiada a sua energia. Mas suspeitava-se de mais um
“fenómeno italiano”, tal como o foi Berlusconi. Seria um breve meteoro? Seria
mesmo de esquerda? Teria sequer um programa? Ou representaria o “grau zero” da
política substituída pelo mero activismo?
Depois da
catástrofe eleitoral do Partido Socialista (PS), a condescendência deu lugar à
exaltação: “O Partido Socialista procura a sua via política na Itália de
Renzi”, noticia o Nouvel Observateur. Benoit Hamon, líder da esquerda do PS (e
novo ministro da Educação), e o deputado Jean-Marie Le Guen foram à televisão
anunciar a boa nova. Adere a esquerda ao socialliberalismo transalpino,
elogiado pelo patronato francês? Seria “notável”, comenta o jornalista
Guillaume Malaurie.
Hamon e Le Guen
sublinharam dois pontos. “Na Itália, fez-se uma redução de impostos que deu às
famílias mais modestas 10 mil milhões de euros” em nome do crescimento. Em
segundo lugar, Renzi está a travar um braço-deferro com Bruxelas a propósito do
défice. Declarou que a Itália cumpriria “os seus compromissos com a Europa”,
acrescentando: “Mas há um compromisso ainda mais importante — a vocação da
Europa, que não deve ser um conjunto de tecnocratas sem alma.”
Entretanto,
assinala Malaurie, os dois socialistas “iludiram os pratos fortes da política
de Renzi”, como a medidas fiscais em benefício das empresas, “uma reforma do
mercado do trabalho que aponta para um contrato menos protector mas mais
universal” ou o projecto de suprimir 85 mil postos de trabalho na função
pública.
Pensado na
política francesa, Malaurie sublinha três lições italianas. “A primeira é que
Renzi, que não tinha nenhuma experiência de governo, tinha em compensação uma
visão muito clara da natureza da crise.” Segundo, “num país tão bloqueado pela
coligação dos corporativismos, Renzi está a fazer a prova de que o espírito de
reforma surge reformando.” Por fim, Renzi teve a arte de tirar partido da crise
económica italiana e da decomposição do sistema político.
2.
Ambos têm um
poder frágil. Valls corre altos riscos por dispor de uma tangencial maioria
parlamentar. Renzi tem uma anómala e instável maioria num Parlamento caótico. Ambos
têm de defrontar a resistência da ala esquerda dos seus partidos.
Renzi dispõe de
uma margem de manobra superior. Valls é muito popular mas está sob a tutela de
François Hollande. E enfrenta desde já a oposição de “cem deputados em cólera”
do PS que se opõem à nova linha económica de Hollande e Valls. Com uma taxa de
aprovação popular superior a 60%, Renzi está a fazer reformas em marcha
acelerada e, quando o tentam bloquear, explica que, “sem reformas, voume
embora” e os partidos terão de prestar contas aos italianos.
Assumiu o risco
de negociar com Berlusconi as reformas institucionais. A ameaça que agora
defronta é o declínio do Cavaliere, velho, em queda nas sondagens e a perder a
autoridade sobre os seus parlamentares. Os senadores da Força Itália (FI, de
Berlusconi) querem anular a reforma do Senado que lhes retirará os lugares e os
privilégios. “A anarquia na FI arrisca- se a fazer estoirar o pacto sobre as
reformas”, escreve La Repubblica. E a próxima reforma, a do mercado do
trabalho, suscita o nervosismo sindical.
A menos de 50
dias das eleições europeias, sob a ameaça de Marine Le Pen e de Beppe Grillo,
novas crises políticas seriam suicidárias. Note-se que a linha de tensão com
Bruxelas, adoptada por Roma e Paris, não se deve só às divergências sobre o
défice mas também a uma lógica eleitoral para desarmar o discurso populista e
anti-europeísta.
3.
O problema de
fundo começa no “choque com a realidade” e nas perguntas que se fazem. Por
exemplo: por que é que em toda a Europa, e não só na Europa, os partidos de
esquerda se mostram incapazes de tirar partido da maior crise económica das
últimas décadas?
Por que se torna
cada vez mais nebuloso distinguir a esquerda e a direita quando governam? Por
que é que, em muitos casos, a direita parece mais apta a responder à mudança? Por
que é que em quase toda a Europa se multiplicam movimentos de contestação, populares
e de direita?
O Monde levantava
na sextafeira uma ponta do véu sobre as ideias de Valls: “Quando fala de
economia, Manuel Valls raciocina sempre no quadro da globalização, que não
hesita em descrever como ‘uma formidável fonte de criação de riqueza’, ao
contrário, por exemplo, de um Arnaud Montebourg, chantre da ‘desglobalização’.”
Montebourg é o novo ministro da Economia.
Explica Valls, a
propósito do esgotamento do modelo social-democrata: “O pior é que a esquerda
se revela hoje incapaz de regenerar o Estadoprovidência adaptando-o às
realidades da nossa época. À falta de afrontar as consequências da globalização
e da individualização da sociedade, a esquerda fecha-se numa concepção
pessimista do mundo.”
As sociedades
ocidentais mudaram profundamente. As velhas burguesias nacionais, ancoradas na
indústria e no espaço nacional, cedem o lugar a uma burguesia financeira
transnacional que gere o seu património à escala mundial.
O quadro de
combate deixou de ser o do século XX. Interrogase Valls: o que é ser de
esquerda, hoje, num mundo globalizado e avesso às utopias? Que deve fazer a
esquerda para ser capaz de governar duradouramente?
Escrevia ontem,
no La Stampa, o politólogo Luca Ricolfi: “Há qualquer coisa de libertador no
novo curso renziano. Até ontem, a Itália era atravessada por um incrível número
de dogmas, preconceitos, mitos, fetiches, totens e tabus. (...) Renzi e os seus
estão a demolir, um após outro, os fetiches da cultura da esquerda. Por várias
razões. A primeira é que eram crianças, ou nem sequer nascidos, quando tais
fetiches foram eregidos em baluarte do mundo progressista e, portanto, não têm
o temor reverencial. A segunda é que são os próprios italianos que já não
suportam certos fetiches e certas personagens porque os vêem como causa ou
co-autores do presente desastre.”
Perante as
mutações da sociedade, “a esquerda tem medo”, escreve Renzi. “Parece que não se
dá conta de que o novo mundo em que vivemos é também fruto do sucesso das suas
próprias políticas, das mudanças ocorridas no século XX graças à sua
iniciativa. (...) Mudarmos nós mesmos é a responsabilidade mais grave de
todas.” Ironiza: “Uma esquerda que não muda é de
direita.”
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