Os pobres de Isabel Jonet
15 de Abril, 2014
/ por Luís Osório / SOL online
Nós e os filhos
mais os que virão depois deles. Nós e os netos, nós e todos os que carregarão o
apelido mas que não conheceremos a cara, o cheiro ou a voz… Um dia
escrever-se-á que, a partir de nós, cada vida passou a gerir uma agência
noticiosa. Temos os que abraçamos, mas passámos a ter os amigos de redes
virtuais a quem tocamos de uma outra maneira, uma maneira nova e estranha. Tocamos
e somos tocados. Passámos a ter uma rede que nos ocupa uma parte do que
pensamos e sentimos. Morrem-nos mais pessoas, há mais notícias felizes e
tristes, gente a quem passámos a acompanhar, a vida passou a ser uma avenida
mais larga onde temos as ficções que consumimos, as notícias do mundo e do país
e as do nosso mundo privativo, de um país que é apenas nosso e do qual
desenhamos a primeira página. Nuns dias tornamos a ficção realidade, noutros a
realidade ficção.
Mas a vida lá
fora continua. E nós continuamos a ser estes e não outros. Bichos complicados,
cobertos de paradoxos e certezas, prontos a tudo por fracos motivos e, muitas
vezes, prontos a nada quando o assunto é sério. Capazes também de actos
grandiosos, de ímpar generosidade e de uma heroicidade comovente.
A semana passada,
por exemplo.
Um taxista trazia
um saco de plástico pousado no banco ao seu lado. Um ritual, contou-me. Todas
as madrugadas, antes de ligar o taxímetro, passa por uma padaria e às quatro ou
cinco carcaças que compra junta bocadinhos de frango, fiambre desfiado, atum e
o que a sua mulher lhe deixa. Embrulha-as em papel e coloca-as no saco. Depois,
ao longo do dia e da cidade, cruzando-se com quem precisa, distribui o que tem.
Tínhamos
discutido minutos antes - a propósito de angolanos e brasileiros criticara-lhes
o carácter, a postura e aprestava-se para chegar à cor da pele, o que não me
apeteceu permitir, reagi. Perto da Praça de Espanha, já calmos, num semáforo
vermelho, um homem sorriu-lhe e ele retribuiu-lhe com um pão embrulhado. Foi
então que me disse...
Voltas para
chegar a Isabel Jonet.
Que fez nascer o
maior projecto de solidariedade social, o Banco Alimentar Contra a Fome,
organização que apoiou em 2013 quase meio milhão de pessoas. Isabel tem crédito
para dizer o que lhe apetecer, mas lamentavelmente aquilo que defende afasta
apoios e isso não é inteligente. Porque o Banco Alimentar era ideologicamente
transversal. Progressistas, liberais e conservadores apoiavam sem
constrangimentos, mas as constantes declarações da fundadora acerca da forma
como vê o mundo e o país, sem ganho nenhum visível (a não ser que pense numa
candidatura à Presidência da República), tornou tudo mais complicado. É que
Isabel Jonet aproveitou o sucesso do seu projecto para explicar aos portugueses
que a culpa de tudo isto é dos que, sabendo não poder 'comer bife' todos os
dias, ousaram fazê-lo. Ou que os desempregados, em vez de gastarem o seu tempo
em redes sociais, deviam deixar de ser inúteis e fazer voluntariado - suponho
que no Banco Alimentar.
A senhora não é
tola. Ao contrário do bom taxista que, sendo racista, ajuda os pobres, Jonet
acredita no que diz por motivos ideológicos. Nos primeiros anos manteve-se
silenciosa, mas com o projecto sedimentado e uma posição relevante na
sociedade, fez passar a mensagem.
Uma mensagem
simples e conservadora: acredita na tradição, na continuidade e no status quo. A
questão de existirem ou não pobres é para si pueril, existem e existirão
sempre. Como as boas famílias que herdam, de geração para geração, os bons
costumes, a ordem moral e uma superioridade (único progresso possível) que deve
ser respeitada e preservada. Qualquer mudança deverá conter estes 'escolhidos',
pessoas que têm a experiência e os genes que, Darwin ou a Bíblia reconheceriam,
são os mais preparados para fazer face aos problemas.
Para Isabel Jonet
os pobres e excluídos são os pobres e os excluídos. Devem ser auxiliados pelos
nobres, pela aristocracia e pelo clero, ajudados de uma maneira não hipócrita;
o que faz a burguesia quando deixa para o Estado a resolução das desigualdades
e para o mercado a ilusão de que os pobres, em algum momento, podem deixar de o
ser. Uma ilusão que os cega e baralha a ordem natural das coisas.
Para os
conservadores, e para a sua porta-voz, não há nada pior do que a burguesia. Regaram
o mundo com dinheiro e sonhos de autodeterminação, rebentaram a pirâmide social
e tornaram o mundo um lugar onde todos parecem poder chegar a todos, onde não
há respeito pela origem, pelo que se construiu ou pelas tradições. Uma
sociedade de inúteis que pensa ter poder na sua rede social privada, na sua
página de facebook ou a sonhar com uma vida melhor.
Continuarei a
ajudar nas campanhas do Banco Alimentar, mas Jonet faz-me hesitar. Porque ela é
um livro de história que, ancorada por um mundo tão desesperadamente volátil, encontrou
a motivação para, a pouco e pouco, defender o mundo em que acredita. Faz bem.
As pessoas devem fazê-lo. E ela tem crédito. Mas o mundo que defende é tão ou
mais tenebroso do que este que temos.
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