sexta-feira, 18 de abril de 2014

Os pobres de Isabel Jonet


Os pobres de Isabel Jonet
15 de Abril, 2014 / por Luís Osório / SOL online



Nós e os filhos mais os que virão depois deles. Nós e os netos, nós e todos os que carregarão o apelido mas que não conheceremos a cara, o cheiro ou a voz… Um dia escrever-se-á que, a partir de nós, cada vida passou a gerir uma agência noticiosa. Temos os que abraçamos, mas passámos a ter os amigos de redes virtuais a quem tocamos de uma outra maneira, uma maneira nova e estranha. Tocamos e somos tocados. Passámos a ter uma rede que nos ocupa uma parte do que pensamos e sentimos. Morrem-nos mais pessoas, há mais notícias felizes e tristes, gente a quem passámos a acompanhar, a vida passou a ser uma avenida mais larga onde temos as ficções que consumimos, as notícias do mundo e do país e as do nosso mundo privativo, de um país que é apenas nosso e do qual desenhamos a primeira página. Nuns dias tornamos a ficção realidade, noutros a realidade ficção.
Mas a vida lá fora continua. E nós continuamos a ser estes e não outros. Bichos complicados, cobertos de paradoxos e certezas, prontos a tudo por fracos motivos e, muitas vezes, prontos a nada quando o assunto é sério. Capazes também de actos grandiosos, de ímpar generosidade e de uma heroicidade comovente.

A semana passada, por exemplo.

Um taxista trazia um saco de plástico pousado no banco ao seu lado. Um ritual, contou-me. Todas as madrugadas, antes de ligar o taxímetro, passa por uma padaria e às quatro ou cinco carcaças que compra junta bocadinhos de frango, fiambre desfiado, atum e o que a sua mulher lhe deixa. Embrulha-as em papel e coloca-as no saco. Depois, ao longo do dia e da cidade, cruzando-se com quem precisa, distribui o que tem.

Tínhamos discutido minutos antes - a propósito de angolanos e brasileiros criticara-lhes o carácter, a postura e aprestava-se para chegar à cor da pele, o que não me apeteceu permitir, reagi. Perto da Praça de Espanha, já calmos, num semáforo vermelho, um homem sorriu-lhe e ele retribuiu-lhe com um pão embrulhado. Foi então que me disse...

Voltas para chegar a Isabel Jonet.

Que fez nascer o maior projecto de solidariedade social, o Banco Alimentar Contra a Fome, organização que apoiou em 2013 quase meio milhão de pessoas. Isabel tem crédito para dizer o que lhe apetecer, mas lamentavelmente aquilo que defende afasta apoios e isso não é inteligente. Porque o Banco Alimentar era ideologicamente transversal. Progressistas, liberais e conservadores apoiavam sem constrangimentos, mas as constantes declarações da fundadora acerca da forma como vê o mundo e o país, sem ganho nenhum visível (a não ser que pense numa candidatura à Presidência da República), tornou tudo mais complicado. É que Isabel Jonet aproveitou o sucesso do seu projecto para explicar aos portugueses que a culpa de tudo isto é dos que, sabendo não poder 'comer bife' todos os dias, ousaram fazê-lo. Ou que os desempregados, em vez de gastarem o seu tempo em redes sociais, deviam deixar de ser inúteis e fazer voluntariado - suponho que no Banco Alimentar.

A senhora não é tola. Ao contrário do bom taxista que, sendo racista, ajuda os pobres, Jonet acredita no que diz por motivos ideológicos. Nos primeiros anos manteve-se silenciosa, mas com o projecto sedimentado e uma posição relevante na sociedade, fez passar a mensagem.

Uma mensagem simples e conservadora: acredita na tradição, na continuidade e no status quo. A questão de existirem ou não pobres é para si pueril, existem e existirão sempre. Como as boas famílias que herdam, de geração para geração, os bons costumes, a ordem moral e uma superioridade (único progresso possível) que deve ser respeitada e preservada. Qualquer mudança deverá conter estes 'escolhidos', pessoas que têm a experiência e os genes que, Darwin ou a Bíblia reconheceriam, são os mais preparados para fazer face aos problemas.

Para Isabel Jonet os pobres e excluídos são os pobres e os excluídos. Devem ser auxiliados pelos nobres, pela aristocracia e pelo clero, ajudados de uma maneira não hipócrita; o que faz a burguesia quando deixa para o Estado a resolução das desigualdades e para o mercado a ilusão de que os pobres, em algum momento, podem deixar de o ser. Uma ilusão que os cega e baralha a ordem natural das coisas.

Para os conservadores, e para a sua porta-voz, não há nada pior do que a burguesia. Regaram o mundo com dinheiro e sonhos de autodeterminação, rebentaram a pirâmide social e tornaram o mundo um lugar onde todos parecem poder chegar a todos, onde não há respeito pela origem, pelo que se construiu ou pelas tradições. Uma sociedade de inúteis que pensa ter poder na sua rede social privada, na sua página de facebook ou a sonhar com uma vida melhor.


Continuarei a ajudar nas campanhas do Banco Alimentar, mas Jonet faz-me hesitar. Porque ela é um livro de história que, ancorada por um mundo tão desesperadamente volátil, encontrou a motivação para, a pouco e pouco, defender o mundo em que acredita. Faz bem. As pessoas devem fazê-lo. E ela tem crédito. Mas o mundo que defende é tão ou mais tenebroso do que este que temos.

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