OPINIÃO
Virtudes e defeitos de Abril (1)
JOÃO MIGUEL
TAVARES 22/04/2014 - PÚBLICO
Se há coisa em
que os norte-americanos são realmente bons é a criar heróis e memoriais. Toda a
sua mitologia está assente na figura do homem normal que em momentos
extraordinários se consegue superar a si próprio, seja ele Abraham Lincoln,
Rocky Balboa ou Chesley Sullenberger, o comandante do avião que em Janeiro de
2009 conseguiu amarar nas águas geladas do rio Hudson, salvando todas as
pessoas a bordo.
Por muito filme
de Hollywood que a gente veja, nós não temos essa cultura em Portugal, nem,
segundo parece, esse tipo de herói. Já desde os tempos da padeira de
Aljubarrota que o herói português é invariavelmente do tipo relutante, mais
dado à astúcia do que à coragem desabrida. É como nas velhas anedotas do
português, do inglês e do francês – o português sai-se sempre melhor, mas nunca
por fazer uso de qualquer espécie de heroísmo espampanante; sai-se melhor
porque é o chico-esperto, o manhoso, o campeão dos improvisadores.
Recentemente, o
PÚBLICO divulgou um longo excerto do texto que Adelino Gomes escreveu para o
óptimo livro Os Rapazes dos Tanques, centrado na figura do cabo apontador José
Alves Costa, que na manhã de 25 de Abril de 1974 se recusou a disparar sobre a
coluna de Salgueiro Maia, mesmo após o brigadeiro Junqueira dos Reis lhe
ordenar directamente “dá fogo já a direito”. O que é extraordinário na
descrição de Adelino Gomes não é a recusa em si – já antes o alferes Fernando
Sottomayor havia feito o mesmo, recebendo ordem de detenção –, mas sim a forma
tão portuguesa como Alves Costa resolveu o imbróglio que tinha à sua frente.
Em primeiro
lugar, explicou ao brigadeiro que não percebia lá muito de tanques. “Fui
improvisado para aqui. Sei pouco trabalhar com isto. Vou ver se consigo, mas eu
não sei”, desculpou-se. E quando o brigadeiro o ameaçou “ou dá fogo ou meto-lhe
um tiro na cabeça!”, Alves Costa decidiu-se por um desenrascanço 100% nacional:
enfiou-se dentro da torre e trancou a porta. “Eu, fechando-me dentro do carro,
ninguém abre, porque aquilo é blindado, entende?” E assim se fez Abril.
Nós somos o povo
para quem Herman Melville criou, sem saber, o seu Bartleby, o desconcertante
escrivão que fazia da passividade uma filosofia existencial. A tudo o que lhe
era pedido Bartleby respondia: “Preferiria não o fazer.” Também José Alves
Costa preferiria não atirar sobre os revoltosos de Santarém. E não atirou. No
entanto, nunca afrontou de forma directa o seu superior: “A gente sabia o
regime que tinha. Se calhava as coisas não correrem bem, a minha vida podia ir
para o maneta”, explicou a Adelino Gomes.
É certo que o
espírito luso-bartlebyano, na mão de burocratas, é de modo a conduzir qualquer
alma ao desespero – como pode comprovar quem já passou dias numa repartição
pública. No ramerrão diário, “preferiria não o fazer” é um inferno paralítico,
que nos faz sonhar com as virtudes da disciplina teutónica. Mas na Alemanha
dificilmente haveria um 25 de Abril com cravos enfiados nos canos das
espingardas, porque um qualquer Alves Costa da Baviera nunca mandaria o seu
brigadeiro dar uma curva enquanto fingia cumprir ordens. Para citar José Gil, a
não-inscrição chega ao próprio heroísmo – o cabo apontador que impediu que a
revolução se tornasse num banho de sangue viveu 40 anos no anonimato de uma
aldeia da Póvoa de Varzim. Afinal, ele não fez nada. O que é tão absurdo quanto
comoventemente português.
Jornalista, jmtavares@outklook.com
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