Costa sustentou
em tribunal, sem sucesso, que a revelação do relatório punha em causa autonomia
do poder político
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Relatório mantido secreto durante
três anos levou a Câmara de Lisboa a tomar medidas
JOSÉ ANTÓNIO
CEREJO 28/04/2014 - PÚBLICO
Longe de serem uma bomba, os documentos que a autarquia recusou ao PÚBLICO
desde 2011 confirmam apenas que a contratação de obras se fazia em águas
turvas. Mas mostram que alguma coisa foi feita. Só não explicam as razões do
segredo.
Foram precisos mais de três anos e quatro decisões judiciais, duas das
quais do Tribunal Constitucional, para que o presidente da Câmara de Lisboa,
António Costa, revelasse um relatório extremamente crítico das práticas
municipais em matéria de contratação de obras.
Os documentos e
as explicações agora fornecidos ao PÚBLICO mostram, porém, que a câmara até
levou a sério as críticas então feitas.
Não é
propriamente uma novidade o conteúdo do relatório elaborado em Novembro de 2010
por Francisco Brandão, um adjunto de Fernando Nunes da Silva, o então vereador
que deu a cara pelo documento. Muito do que lá se diz já se depreendia da
recomendação que, com base nele, a Comissão para Promoção das Boas Práticas do
município dirigiu a António Costa, cinco meses depois, e que o PÚBLICO
divulgou. Foi essa recomendação, aliás, que levou este jornal a requerer ao
presidente da Câmara, em Outubro de 2011, os documentos disponibilizados no mês
passado.
No essencial, o
relatório faz um ataque cerrado ao funcionamento da Direcção Municipal de
Projectos e Obras (DMPO), que centraliza as empreitadas, sugerindo a existência
de vícios no seu seio e o favorecimento de fornecedores — bem como a excessiva
autonomia daquela estrutura técnica, relativamente aos decisores políticos
eleitos.
O poder dos empreiteiros
Resumindo-se a
meia dúzia de páginas e alguns anexos, o documento sustenta que a direcção
política do sector de obras se limitava à definição de “grandes objectivos
pontuais (...) permitindo que a intervenção seja ‘conduzida’ pelos empreiteiros”.
Em concreto, o
documento diz que a DMPO privilegiava o recurso aos ajustes directos e à figura
do “estado de necessidade” — que permite fazer todo o tipo de obras por ajuste
directo com base na urgência e nos riscos para a segurança de pessoas e bens. Dois
terços das adjudicações correspondiam por isso a ajustes directos, grande parte
deles com consulta a um único fornecedor, e só um terço a concursos públicos.
Além disso, os
contratos concentravam-se num “reduzido universo de empreiteiros”, traduzindo-se
esta situação numa “forma de actuação adulterada”.
A prática
descrita vinha de longe e permitia “todas as possibilidades de desvirtuação”. O
“modelo de gestão” em vigor privilegiava “fornecedores instalados” e fazia com
que, em média, o custo das obras feitas por ajuste directo ultrapassasse em 35%
o custo que teriam se houvesse concurso público.
Por outro lado,
as “insuficiências dos projectos” e os frequentes “complementos” de obra
solicitados pelos serviços ou pelos vereadores acarretavam trabalhos adicionais
e o arrastamente das empreitadas por vários anos, com as consequentes revisões
de preços e juros de mora, que chegavam a atingir 30% do custo inicial.
O poder dos políticos
Face à avaliação
feita pelo gabinete de Nunes da Silva, o director municipal de Projectos e
Obras, José Silva Ferreira, e os directores dos departamentos de Construção e
Conservação de Habitação e de Construção e Conservação de Equipamentos, Manuel
Ferreira e Mónica Ribeiro, reagiram com indignação.
Em documentos
separados, além de responsabilizarem os vereadores e o presidente da câmara por
muitos dos problemas identificados, atribuíram outros às leis em vigor,
sutentando que tudo era feito no estrito cumprimento do Código dos Contratos
Públicos.
Quanto ao alegado
recurso excessivo ao “estado de necessidade”, por exemplo, José Ferreira
escreveu que das 53 obras feitas ao abrigo daquela figura, entre 2005 e 2010,
46 foram ordenadas por diferentes vereadores, com destaque para Nunes da Silva
(13), Manuel Brito (10) e Manuel Salgado (9). Também no que respeita aos
restantes ajustes directos, o então director afirmou que “um número
significativo” tinha a ver com “urgências manifestadas pelos serviços” e com a “formalização de situações que as
diversas tutelas determinam”, impondo “prazos de execução irrealistas”.
Ainda sobre a realização
de ajustes directos em vez de concursos públicos, José Ferreira argumentava com
o “factor tempo”, referindo que este era imposto aos serviços como
“determinante na resolução das mais variadas questões”. E o exemplo apontado
era o das obras feitas nos Paços do Concelho por ocasião das comemorações do
centenário da República, em Outubro de 2010.
Manuel Ferreira,
por seu lado, empurrava também para os decisores políticos muitas das anomalias
identificadas no relatório. “Quando o presidente quer transferir o seu gabinete
para o Intendente em dois ou três meses é claro que é uma opção política. Quando
assim acontece com certeza que se privilegiam os fonecedores (empreiteiros)
‘instalados’. São os únicos que avançam sem terem um processo concursal preparado.
O que está mal é os serviços serem confrontados com este tipo de exigências que
antes de mais violam a lei”, salientava o director de departamento. E ia mais
longe: “Os vereadores que se contenham. Que programem, Que amadureçam os
processos. Que acabem com as ‘urgências’ como método.”
Mais detalhada
foi a então responsável pela Construção e Conservação de Equipamentos. Em 15
densas páginas, Mónica Ribeiro rebateu a análise de Francisco Brandão. Os
empreiteiros que “mais usualmente” trabalhavam com o seu departamento,
explicava, eram cerca de 30, o que poderia confirmar a tese de que havia
empresas privilegiadas. Mas não era esse o seu entendimento.
“[Essas empresas]
têm vindo a demonstrar a experiência, capacidade profissional e robustez
financeira necessária para colaborar na execução de pequenas obras (...)
cumprindo integralmente os objectivos pretendidos”, justificava. “Muitos desses
empreiteiros disponibilizam-se para executar os trabalhos de imediato,
aguardando a posterior regularização” do contrato, acrescentava.
O despacho de António Costa
Confrontado com o
relatório e com as novas regras propostas por Nunes da Silva para a contratação
de empreitadas, António Costa pediu ao director municipal e aos dois directores
de departamento que comentassem aqueles documentos. Os memorandos dos três
dirigentes foram-lhe entregues a 24 de Janeiro de 2011 e o presidente da câmara
tomou uma decisão no dia seguinte.
De acordo com o
despacho que então proferiu e cuja transcrição o seu gabinete transmitiu ao PÚBLICO
na semana passada, António Costa parece ter alinhado pela posição de Nunes da
Silva, nada dizendo sobre o contraditório dos directores. Sem se pronunciar
sobre o relatório em si, nem sobre as novas regras propostas, determinou apenas
que a parte referente aos ajustes directos devia ser seguida no caso das “obras de reabilitação” e das intervenções
nas escolas.
Desta formulação,
Nunes da Silva, a quem António Costa retirou o pelouro das obras meses depois,
deduziu, conforme agora disse ao PÚBLICO, que o chefe do executivo ratificava
todas as outras medidas propostas, as quais, garante, foram imediatamente
postas em prática. No mesmo despacho, Costa ordenou que o relatório e os
restantes documentos fossem enviados “à Comissão de Boas Práticas e ao Departamento
de Auditoria Interna para apreciação”.
Em abono da ideia
de que o presidente da câmara decidiu romper com as “situações anómalas”
existentes na DMPO, Nunes da Silva refere que, uma semana depois, a câmara
aprovou a cessação das funções do seu director por proposta de António Costa,
fundamentada na “necessidade de imprimir nova orientação à gestão dos
serviços”.
Na mesa altura,
aliás, a directora do Departamento de Construção e Conservação de Equipamentos,
que tinha sido a mais veemente crítica daquele relatório, deixou também o lugar
que ocupava. Mas com uma diferença: fê-lo a seu pedido. Só que, no mesmo dia,
António Costa nomeou-a directora do Departamento de Empreitadas, Prevenção e
Segurança de Obras, um serviço fundamental no sector da contratação, em
substituição da anterior responsável.
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