Ucrânia: comentando as notícias
da semana
O Ocidente tem um problema russo e tem de repensar a sua relação
estratégica
Análise Jorge
Almeida Fernandes / 20-4-2014/ PÚBLICO
1. No dia 16 de
Abril a Ucrânia assistiu à debandada do seu Exército no Leste do país às mãos
de bandos “pró-russos”. No dia 6, estes grupos armados começaram a ocupar
edifícios públicos em cidades do Leste. No dia seguinte, os “pró-russos”
proclamaram uma “República Popular de Donetsk”, exigindo um referendo sobre a
“soberania” até 11 de Maio. Kiev ordenou uma operação “antiterrorismo” que, na
quartafeira, terminou em humilhação.
Relatou Piotr
Smolar, enviado do Le Monde, na cidade de Kramatorsk, a 100km de Donetsk: “O
sol estava esplêndido. As árvores de fruto não disfarçavam as emanações dos
velhos carros de combate BMD, de fabrico soviético. Perante centenas de
habitantes, os soldados foram forçados a intermináveis conversações. Acabaram a
infligir-se uma castração simbólica: entregaram, em sacos de plástico, os
percutores das suas espingardas, a fim de poderem passar entre a multidão.”
Outros 15 carros foram abandonados e muitos soldados entregaram as armas.
“Como qualificar
um exército que se desarma?”— pergunta o jornalista. Os seis BMD foram levados
como um troféu para Slaviansk, praça forte dos “prórussos”. Os soldados da
operação “antiterrorismo” acabaram a debandar, protegidos pelos “terroristas” —
milicianos “prórussos” que se intitulam “força de autodefesa” e que, na versão
de Kiev, são soldados de elite russos que já actuaram na Crimeia.
As acções
“separatistas” começaram por ser obra de um punhado de homens armados. A maciça
propaganda russa sobre “a agressão” aos russófonos começa a assustar e a
mobilizar mais gente.
O Presidente
Vladimir Putin cria caos e depois dramatiza a situação. Previne os ucranianos —
e os ocidentais — contra o risco de “guerra civil”, se Kiev usar a força no
Leste. Diz que espera “não ser obrigado” a enviar tropas para a Ucrânia. A
Rússia continua a ter alguns milhares de soldados na fronteira. Graças a tudo
isto, Putin está em vantagem na frente diplomática: negociar a “normalização”
da Ucrânia nos seus próprios termos — uma federalização da Ucrânia que garanta
a tutela russa.
As conversações
de Genebra (Rússia, UE, EUA e Ucrânia) começaram na quinta-feira — dia em que
escrevo este texto. Foi acordada uma “desescalada por etapas”: desarmamento dos
“grupos armados ilegais”, fim das “acções violentas e intimidações”, uma
amnistia para os implicados e um “largo diálogo nacional”. Irá à Ucrânia uma
missão da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa. Nada foi dito
sobre a articulação entre estas medidas e as eleições presidenciais de 25 de
Maio.
Comentou um
pessimista: a Crimeia é já passado e todos ficarão gratos a Putin, se não invadir
a Ucrânia.
2. De facto,
pouco mudou nestes dias. Escreveu-se no PÚBLICO a 8 de Abril: “O objectivo [de
Putin é] desorganizar e dividir a Ucrânia, de forma a impedir as eleições de 25
de Maio que, calcula, legitimariam um poder político hostil e próocidental.
(...) Impor referendos regionais que consagrariam um sistema federal e a
autonomia das regiões, inclusive em política externa, ‘balcanizando’ a Ucrânia.
Pretende acentuar a polarização entre o Leste e o Oeste e convencer os
ucranianos de que o seu modelo federal será a solução mais realista e
pacífica.”
A diferença é que
tudo se passou depressa e com mais facilidade do que se poderia prever. Os
últimos dias voltaram a ilustrar a impotência do Governo provisório de Kiev. Se
o Leste e o Sul boicotarem as eleições, os eleitores do centro e do Oeste
elegerão um poder hostil a Moscovo, que as regiões “prórussas” não
reconhecerão.
A maioria da
população do Leste e do Sul não quer ser anexada pela Rússia. É uma população
russófona, mas ucraniana — os chamados “russos étnicos” são minoritários. No
entanto, uma dinâmica de polarização pode mudar o quadro. Será um dos
objectivos do Kremlin.
Os analistas
russos chamam a atenção para o investimento pessoal de Putin, cuja popularidade
subiu acima dos 80%. Está refém desta popularidade, o que o incentiva a correr
mais riscos. As sanções ferem — se forem elevadas a nível mais alto —, mas não
serão neste caso uma arma de dissuasão. Moscovo sabe que, em nenhum caso, os
EUA usarão da força para proteger a Ucrânia. E a aparência de um “cerco da
Rússia” poderia até reforçá-lo politicamente.
Mas uma
intervenção militar russa na Ucrânia não só parece desnecessária como perigosa.
Teria efeitos diplomáticos devastadores. Moscovo dispõe de outros meios —
políticos e económicos — para enfraquecer e fazer ceder o débil e caótico
Estado ucraniano. Se a ocupação da Crimeia, com 60% de russos, foi uma operação
low cost, uma intervenção na Ucrânia, para lá do seu custo internacional,
despertaria uma resistência nacional ucraniana. Explica a analista russa Maria
Lipman: “O hard power está do lado da Rússia. Se a Rússia procurar usurpar
território ucraniano (...), conseguilo-á. Mas não poderá ter segurança perante
o ressentimento popular e a resistência.”
A ameaça de
intervenção faz parte da retórica de intimidação de Putin. É para lhe dar
credibilidade — e estimular os “pró-russos” — que tem tropas na fronteira.
Os ocidentais
equivocaram-se quanto à reacção de Moscovo, o que suscitou o esboço de uma
discussão académica, sintetizada pela historiadora Angela Stent na pergunta
“Por que é que a América não compreende Putin?”. Em parte por desconhecimento
da História russa. Mas a agressão à Ucrânia ultrapassa a dimensão regional. As
políticas de reset de Washington — o “reiniciar” da cooperação com a Rússia —
revelaram-se condenadas e vazias de sentido.
A analista russa
Lilia Chevtsova questiona a natureza do regime russo. Frisa que Putin não só
está a tentar desmantelar a ordem “pósGuerra Fria” como o que resta da “ordem
pós-Ialta” — desafiando as fronteiras internacionalmente reconhecidas. É o
significado da anexação da Crimeia. A nova “doutrina Putin” visaria “assegurar
a sobrevivência de um poder autocrático, restaurando na Rússia o militarismo e
a mentalidade de fortaleza cercada”. A Rússia não vai começar a invadir outros
países, mas “pretende criar uma perpétua atmosfera de suspense e de incerteza”.
Abriu uma fase de confronto estratégico.
O americano
Walter Russell Mead vai ao cerne da questão: “O Ocidente tem um problema russo
e é necessário repensar toda a relação estratégica com a Rússia como primeiro
passo para formular uma resposta à agressão de Putin [na Ucrânia]. É improvável
formular depressa tal política, mas não podemos ter uma política sensata na
Ucrânia sem uma séria política russa; e desenvolver uma séria política russa
requer uma estratégia euroasiática de longo curso.”
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