OPINIÃO
Morte e transfiguração
M. FÁTIMA
BONIFÁCIO 18/04/2014 – PÚBLICO
As vésperas das
eleições europeias não se têm apresentado mais festivaleiras do que o costume. A
direita celebra indicadores macroeconómicos agradáveis (e inegáveis); a
esquerda desvaloriza, como lhe compete, a performance do actual Governo e
promete alegremente libertar Portugal do colete-de-forças da dívida, aumentar o
investimento público e ampliar o Estado social. O PCP, a cauda mais
reaccionária da esquerda portuguesa, promete inclusive, através de um jovem
apessoado que lançou como cabeça de lista a Bruxelas, envidar todos os esforços
para que Portugal abandone o euro, acastelando-se no escudo, na protecção
alfandegária e num plano quinquenal que supõe a nacionalização do chamado
“grande capital”. O Bloco de Esquerda, onde Francisco Louçã sabe fazer as
contas e, convenhamos, tem uma noção mais actualizada do mundo em que vivemos,
não inscreveu na sua bandeira a saída do euro. Mas nem por isso revela menor
lunatismo do que a esquerda em geral. De que nos falam o PCP e o BE? De
direitos sociais e mais direitos sociais, sem a mais leve indicação, sequer
grosseiramente quantificada, de quem os pagaria. O simples papaguear de uma
Catarina Martins, que duvido saiba ler um orçamento do Estado, é indicativo
suficiente da irresponsabilidade – para não dizer infantilidade – que se apossou
daquelas paragens políticas, a que um homem bom, o dr. João Semedo, procura em
vão conferir alguma respeitabilidade.
A esquerda
portuguesa – sim, não estou a falar de Manuel Valls ou de Matteo Renzi –
continua pateticamente mergulhada num estado de denegação, recusando ver e
reconhecer que o mundo em que nasceu, medrou e prosperou simplesmente morreu
(ou está em vias de morrer), tal como acabou também sem apelo nem agravo o
mundo pré-industrial dos luditas, que destruíam as máquinas que tornavam dispensável
o seu trabalho. Não é preciso ter uma visão teleológica da História – que não
tenho – para perceber que a globalização, enquanto estádio supremo do
capitalismo (…), erigiu o mercado num critério civilizacional. Haverá prova
mais eloquente disto do que o que se passa actualmente no mundo da criação
artística e até intelectual e filosófica? Os media, a Internet, os facebooks,
os twitters acabaram por mercantilizar tudo, tudo, e integraram-nos a todos nós
numa categoria transversal que suplantou as tradicionais clivagens sociais
expressas em termos de classe – a categoria de consumidores. As férias em
Cancún são comercializadas do mesmo modo que criações do espírito como a
American Pastoral de Philip Roth, por exemplo. A esquerda tradicional, que é a
que desgraçadamente temos em Portugal, desconhece (ou finge desconhecer) o seu
público, ou, para ser mais exacta, o seu mercado. Farejou, é claro, o apetite
dos que sonham consumir, uma aspiração que eu não tenho a mais remota
autoridade ou desejo para criticar; por isso lhes acena com mais direitos, isto
é, com mais dinheiro. Infelizmente, a classe média-média já paga 70% de
impostos, e se quiserem acabar com os verdadeiramente ricos ficarão só com
pobres.
Esta esquerda,
que promete abundância, está condenada na exacta medida em que o velho
Ocidente, prisioneiro dos seus mitos igualitários, mas economicamente
decadente, se revela absolutamente incapaz de satisfazer as aspirações
apregoadas na bandeira socialista. Seria o menos se apenas Cancún estivesse em causa.
O mais dramático é o futuro do Estado social, que todos os regimes políticos
democráticos, sejam os governos de esquerda ou de direita, juram querer
preservar. É falso. E se a esquerda amarrar o seu destino ao destino do Estado
social tal como o conhecemos actualmente pode começar a encomendar o seu
próprio funeral, pelo simples motivo de que a única maneira de conservar o
Estado-providência consiste, a prazo, em privatizá-lo, salvo, desejavelmente,
um núcleo duro da Saúde que alguém tenha coragem de definir. O futuro do Estado
social reside na sua “morte e transfiguração”. Genericamente, as decrépitas
economias europeias tornaram-se incapazes de gerar excedentes que permitam
sustentar, nos moldes actualmente vigentes, a escola pública, a Saúde pública,
a Segurança Social e as diversas e dispendiosíssimas prestações sociais
destinadas a garantir o que se convencionou chamar “coesão social”.
No caso
português, ocorre logo, além disto e antes disto, o tremendo peso financeiro do
sector administrativo de um Estado que as mais das vezes atrapalha e não ajuda,
cumpre funções que não lhe competem e se mete indevidamente nas nossas vidas
privadas. Eis-nos perante o Rubicão que ninguém se atreve a passar – e que eu,
se mandasse, também não teria a coragem de César para transpor. Toda a suposta
discussão em torno da reforma do Estado não passa de conversa fiada. Neste
ponto, esquerda e direita pouco se distinguem, pese embora a diferença dos
discursos para inglês ver. Há mil e uma boas razões para tropeçar e adiar a
reforma do Estado. Mas até hoje ninguém disse a mais óbvia – que essa reforma
exigiria, básica e essencialmente, o despedimento de dezenas de milhares de
pessoas, fosse qual fosse o eufemismo desencantado para designar tão cruel
limpeza. Qual o espanto, então, perante os cortes salariais na função pública,
se ninguém apresentou até hoje uma alternativa seriamente quantificada?!
Na
impossibilidade de proceder a uma efectiva reforma do Estado – despedindo 100
ou 150.000 pessoas – resta a solução de diminuir os gastos que ele acarreta,
quer privatizando parcial ou totalmente algumas das suas clássicas funções
sociais, quer poupando em ordenados. A esquerda que nos apregoa que todas estas
iniquidades seriam evitáveis graças a um almejado crescimento económico que a
direita, por absurda perversão e instinto suicida, impede que aconteça não
passa de um bando de vendedores de sonhos (que nem convence assim tantos
incautos, a avaliar pelos resultados eleitorais).
Historiadora
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