quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morte e transfiguração


OPINIÃO
Morte e transfiguração
M. FÁTIMA BONIFÁCIO 18/04/2014 – PÚBLICO

As vésperas das eleições europeias não se têm apresentado mais festivaleiras do que o costume. A direita celebra indicadores macroeconómicos agradáveis (e inegáveis); a esquerda desvaloriza, como lhe compete, a performance do actual Governo e promete alegremente libertar Portugal do colete-de-forças da dívida, aumentar o investimento público e ampliar o Estado social. O PCP, a cauda mais reaccionária da esquerda portuguesa, promete inclusive, através de um jovem apessoado que lançou como cabeça de lista a Bruxelas, envidar todos os esforços para que Portugal abandone o euro, acastelando-se no escudo, na protecção alfandegária e num plano quinquenal que supõe a nacionalização do chamado “grande capital”. O Bloco de Esquerda, onde Francisco Louçã sabe fazer as contas e, convenhamos, tem uma noção mais actualizada do mundo em que vivemos, não inscreveu na sua bandeira a saída do euro. Mas nem por isso revela menor lunatismo do que a esquerda em geral. De que nos falam o PCP e o BE? De direitos sociais e mais direitos sociais, sem a mais leve indicação, sequer grosseiramente quantificada, de quem os pagaria. O simples papaguear de uma Catarina Martins, que duvido saiba ler um orçamento do Estado, é indicativo suficiente da irresponsabilidade – para não dizer infantilidade – que se apossou daquelas paragens políticas, a que um homem bom, o dr. João Semedo, procura em vão conferir alguma respeitabilidade.

A esquerda portuguesa – sim, não estou a falar de Manuel Valls ou de Matteo Renzi – continua pateticamente mergulhada num estado de denegação, recusando ver e reconhecer que o mundo em que nasceu, medrou e prosperou simplesmente morreu (ou está em vias de morrer), tal como acabou também sem apelo nem agravo o mundo pré-industrial dos luditas, que destruíam as máquinas que tornavam dispensável o seu trabalho. Não é preciso ter uma visão teleológica da História – que não tenho – para perceber que a globalização, enquanto estádio supremo do capitalismo (…), erigiu o mercado num critério civilizacional. Haverá prova mais eloquente disto do que o que se passa actualmente no mundo da criação artística e até intelectual e filosófica? Os media, a Internet, os facebooks, os twitters acabaram por mercantilizar tudo, tudo, e integraram-nos a todos nós numa categoria transversal que suplantou as tradicionais clivagens sociais expressas em termos de classe – a categoria de consumidores. As férias em Cancún são comercializadas do mesmo modo que criações do espírito como a American Pastoral de Philip Roth, por exemplo. A esquerda tradicional, que é a que desgraçadamente temos em Portugal, desconhece (ou finge desconhecer) o seu público, ou, para ser mais exacta, o seu mercado. Farejou, é claro, o apetite dos que sonham consumir, uma aspiração que eu não tenho a mais remota autoridade ou desejo para criticar; por isso lhes acena com mais direitos, isto é, com mais dinheiro. Infelizmente, a classe média-média já paga 70% de impostos, e se quiserem acabar com os verdadeiramente ricos ficarão só com pobres.

Esta esquerda, que promete abundância, está condenada na exacta medida em que o velho Ocidente, prisioneiro dos seus mitos igualitários, mas economicamente decadente, se revela absolutamente incapaz de satisfazer as aspirações apregoadas na bandeira socialista. Seria o menos se apenas Cancún estivesse em causa. O mais dramático é o futuro do Estado social, que todos os regimes políticos democráticos, sejam os governos de esquerda ou de direita, juram querer preservar. É falso. E se a esquerda amarrar o seu destino ao destino do Estado social tal como o conhecemos actualmente pode começar a encomendar o seu próprio funeral, pelo simples motivo de que a única maneira de conservar o Estado-providência consiste, a prazo, em privatizá-lo, salvo, desejavelmente, um núcleo duro da Saúde que alguém tenha coragem de definir. O futuro do Estado social reside na sua “morte e transfiguração”. Genericamente, as decrépitas economias europeias tornaram-se incapazes de gerar excedentes que permitam sustentar, nos moldes actualmente vigentes, a escola pública, a Saúde pública, a Segurança Social e as diversas e dispendiosíssimas prestações sociais destinadas a garantir o que se convencionou chamar “coesão social”.

No caso português, ocorre logo, além disto e antes disto, o tremendo peso financeiro do sector administrativo de um Estado que as mais das vezes atrapalha e não ajuda, cumpre funções que não lhe competem e se mete indevidamente nas nossas vidas privadas. Eis-nos perante o Rubicão que ninguém se atreve a passar – e que eu, se mandasse, também não teria a coragem de César para transpor. Toda a suposta discussão em torno da reforma do Estado não passa de conversa fiada. Neste ponto, esquerda e direita pouco se distinguem, pese embora a diferença dos discursos para inglês ver. Há mil e uma boas razões para tropeçar e adiar a reforma do Estado. Mas até hoje ninguém disse a mais óbvia – que essa reforma exigiria, básica e essencialmente, o despedimento de dezenas de milhares de pessoas, fosse qual fosse o eufemismo desencantado para designar tão cruel limpeza. Qual o espanto, então, perante os cortes salariais na função pública, se ninguém apresentou até hoje uma alternativa seriamente quantificada?!

Na impossibilidade de proceder a uma efectiva reforma do Estado – despedindo 100 ou 150.000 pessoas – resta a solução de diminuir os gastos que ele acarreta, quer privatizando parcial ou totalmente algumas das suas clássicas funções sociais, quer poupando em ordenados. A esquerda que nos apregoa que todas estas iniquidades seriam evitáveis graças a um almejado crescimento económico que a direita, por absurda perversão e instinto suicida, impede que aconteça não passa de um bando de vendedores de sonhos (que nem convence assim tantos incautos, a avaliar pelos resultados eleitorais).


Historiadora

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