OPINIÃO
A nova desordem mundial
TERESA DE SOUSA
20/04/2014 / PÚBLICO
1. O acordo
obtido em Genebra para travar a escalada na parte oriental da Ucrânia,
conseguido pelos chefes da diplomacia dos Estados Unidos, Rússia, Ucrânia e
União Europeia, não chegou para tranquilizar ninguém. Se alguma coisa esta
crise nos ensinou foi que Vladimir Putin a vai gerindo com uma espécie de
“quente e frio”, mantendo a aparência do diálogo à segunda-feira e elevando o
tom da ameaça militar à quinta. Manda Sergei Lavrov a Genebra para encontrar um
“compromisso”.
No terreno, faz
de conta que são os chamados “grupos de autodefesa” (na realidade controlados
por tropas especiais russas) que não querem aceitar esse compromisso. Está
preparado para um braço-de-ferro de longo prazo que vá deteriorando a situação
política e económica da Ucrânia e minando a unidade ocidental. De tal modo que,
daqui a algum tempo, não deixe aos ucranianos outra solução que não seja
aceitarem um país enfraquecido e fragmentado, disposto a inclinar-se perante a
vontade de Moscovo. A sua próxima etapa são as eleições de 25 de Maio e um
hipotético referendo sobre uma revisão constitucional que, através de um
alegado “federalismo”, consagre a divisão da Ucrânia e mantenha em Kiev um
governo sem poder. Criou uma narrativa para justificar a sua estratégia tão
distante de qualquer realidade que só mesmo os russos, dentro e fora da Rússia,
estão dispostos a aceitar: uma mistura de orgulho pátrio, de vingança, de
diabolização dos “inimigos externos” passados, presentes e futuros, que alimenta
quase todos os nacionalismos extremos. De caminho, coloca sob ameaça as antigas
repúblicas soviéticas, da Arménia à Moldova passando pela Geórgia, sobre o que
lhes poderia acontecer caso tentassem assinar com a União Europeia os acordos
de associação já negociados.
Sabemos que, no
longo prazo, o objectivo de Putin é o restabelecimento do “império”, com as
suas fronteiras difusas e a sua influência alargada. A ideia de uma grande
nação russa mais ou menos cooperante com o Ocidente não faz parte dos seus planos.
Em suma, não é preciso muito para perceber que vamos ter de conviver com uma
ameaça contante à estabilidade dos países que fazem fronteira com a Rússia. Putin
acredita que o “retraimento estratégico” americano e a eterna fraqueza europeia
acabem por oferecer-se de novo um lugar de primeiro plano num mundo em que a
força volta a determinar as relações internacionais. A sua Rússia é, portanto,
uma potência antiocidental que quer “rever” a ordem internacional custe o que
custar. “Se a escolha é entre tentar de novo que Putin saia gradualmente do
frio, ou conter os seus piores instintos em relação aos seus vizinhos europeus,
a última é a única resposta que faz sentido”, diz o director da Chatham House
de Londres, Robin Nibblet.
2. Obama, no seu
estilo frio e racional (que alguns tomam por fraqueza), sabe que as coisas
estão para durar e que qualquer sinal de cedência seria agora muito perigoso. Na
sua mais recente intervenção, quando os diplomatas estavam ainda reunidos em
Genebra, não se limitou a pôr muito pouca fé nos resultados. Putin tinha dito
que não tenciona intervir na Ucrânia a menos que houvesse uma guerra civil (é
ele que decide se, como e quando essa guerra vai acontecer, com as suas tropas
especiais sem insígnias e com as mais variadas formas de provocação). Obama
lembrou-lhe que a capacidade militar convencional da NATO é muito maior do que
a russa. Os Estados Unidos já decidiram reforçar a sua presença militar nos
Bálticos e na Polónia (mesmo que com uma deslocação de tropas muito inferior aquela
que o chefe da Diplomacia polaca, Radeck Sikorski, desejava) ao mesmo tempo que
a NATO garantia a defesa por mar, terra e ar das fronteiras da Aliança. O
Presidente americano disse que não intervirá militarmente na Ucrânia. Mas
também já disse que a NATO continua a ter no seu centro o Artigo 5.º da Carta
do Atlântico.
Em Bruxelas, os
eurocratas já começaram a reproduzir nos jornais, mesmo que sob anonimato, as
ideias-feitas do costume, que tiram sempre da algibeira em situações como esta:
que “nenhum europeu está disposto a morrer pela Ucrânia”; que, para a América,
é muito fácil adoptar sanções cada vez mais duras, porque as suas relações
comerciais com a Rússia representam apenas um décimo das europeias; que,
finalmente, existe uma dependência energética, como se fosse uma grande
novidade. Desde 2006, quando a Gazprom fechou a torneira do gás à Ucrânia e aos
países da União que dependem maioritariamente dele, que os europeus sabem o
risco que correm. Ninguém começou sequer a tentar resolver o problema a sério.
4. Durante vinte
anos a Europa e os EUA agiram em função de uma Rússia que, mesmo que cada vez
mais autoritária e nacionalista, apenas queria ser um parceiro respeitado do
Ocidente. Isso acabou. A Rússia transformou-se numa potência “revisionista” que
não aceita a ordem internacional tal como existe e que quer reestabelecer o seu
poder em confronto com o Ocidente. Essa Rússia está aqui mesmo ao nosso lado.
Os Estados Unidos sabem que é um problema que a Europa não pode resolver
sozinha. Os governos europeus, sempre preocupados com o dia seguinte ou com a
próxima eleição, raramente dizem aos seus eleitores que o mundo não de reduz ao
aumento do salário mínimo ou à redução do défice e da dívida. Vão ter de lhes
dizer que esta crise na Ucrânia pode ter consequências económicas muito mais
devastadoras do que os programas de austeridade. Basicamente, têm de explicar
que o tempo de um mundo tranquilo em que se habituaram a viver, primeiro com o
chapéu-de-chuva nuclear americano, depois com os dividendos ilusórios do fim da
Guerra Fria está a mudar aceleradamente e que isso obriga a Europa a repensar a
sua maneira de agir. Pela simples razão de que não há prosperidade sem
segurança, para os europeus ou para as suas multinacionais. A Rússia quer
puxar-nos de novo para o século XIX. A única esperança é que os EUA e a União
Europeia ainda consigam pôr de pé uma política internacional que consiga atrair
as novas potências emergentes para o século XXI. A China será o
maior dos testes.
Jornalista
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