sexta-feira, 25 de abril de 2014

Um céu de cravos e o preço da “conivência”


OPINIÃO
Um céu de cravos e o preço da “conivência”
DIRECÇÃO EDITORIAL 26/04/2014 - PÚBLICO
Houve sol e cravos, mas Portugal anoiteceu mergulhado nas dúvidas da véspera.

Nos seus 40 anos, o 25 de Abril viu-se carregado de metáforas florais. Não bastasse a profusão desmesurada de cravos, oferecidos por jornais e revistas, multiplicados por mãos e lapelas e ainda despejados de helicóptero do céu sobre o Terreiro do Paço, numa chuva verde e vermelha que pôs centenas de cidadãos de cócoras a recolher quantos podiam, também o primeiro-ministro, Passos Coelho, recorreu à metáfora floral. Disse ele, perante um grupo de jovens dirigentes associativos, que “a democracia e a liberdade têm que ser regadas com muito cuidado todos os dias”. Senão, a sociedade “estiola”.


Vasco Lourenço, que no seu discurso preferiu frutos a flores (dizendo que os militares não podem ser apenas olhados como a “cereja” em cima do bolo dos “políticos”), usou o discurso público que prometera para acusar, sobretudo, Cavaco. Por ser “conivente” com a actual situação, mantendo um governo que, no entender de Lourenço, “tem de ser apeado sem hesitação” se insistir na mesma política. Ora no Parlamento Cavaco ouviu aplausos apenas da maioria (confirmando a tal “conivência” de que foi acusado) e foi ignorado pela oposição, isto enquanto tentava, mais uma vez, traçando um quadro negro da situação social, apelar a um entendimento que já todos sabemos ser impossível. Ouvidos os apelos, revisitada a retórica, pouco ou nada sobrou do estranho casamento entre a imensidão de cravos e a volatilidade dos discursos. Porque se Cavaco sublinhou o “agudizar de situações dramáticas de exclusão e de solidão”, não deve certamente ignorar que elas se devem, em primeiro lugar, a uma austeridade “cega”, mas feliz no que essa “cegueira” traz de conforto para quem não sofre. Nas ruas, as vozes que se ouviram misturaram saudosismo com desencanto, frustração e dor. Houve sol e cravos, é verdade, mas Portugal anoiteceu mergulhado nas mesmas dúvidas da véspera. Às quais nem o atento regador de Passos Coelho valerá, no médio prazo.

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