OPINIÃO
Colecção Miró: aumentam as
interrogações
GABRIELA
CANAVILHAS 24/04/2014 – PÚBLICO
Barreto Xavier
será recordado apenas por ter defendido e autorizado a extradição ilegal de 85
obras de Miró.
Desde Janeiro que
se abriu em Portugal um inesperado debate sobre venda de Património Cultural do
Estado, desencadeado pelo anúncio do leilão da coleção Miró (detida pela
Parvalorem SA) na Christie’s, em Londres, às ordens do Governo de Passos
Coelho. Desde então temos assistido ao desenrolar das várias fases deste
processo, bastante extraordinário, que revela muito sobre a mentalidade de quem
hoje conduz o país.
Este assunto tem
vários ângulos de análise. Centremo-nos nos mais evidentes: o da política
cultural e o da eficácia administrativa. Em ambos, a ação do Governo tem sido
displicente, demagógica, manipuladora e, felizmente (no plano administrativo),
incompetente. Um terceiro ângulo, o judicial, será aquele que acabará por
encerrar este lamentável episódio da história da cultura portuguesa, episódio
que vai perdurar na memória futura como exemplo da pobreza do pensamento
político, da ausência de estratégias em prol dos portugueses, da
insensibilidade e da ignorância destes governantes, que, por má sorte, vieram
acrescentar a uma grave crise económica uma profunda crise de valores.
1. No plano
cultural, o não reconhecimento da importância da manutenção da coleção Miró em
Portugal comprova a inexistência duma política cultural no Governo. Se a
houvesse, esta coleção de arte já paga pelos portugueses e constituída por
várias dezenas de obras de um dos maiores artistas mundiais do século XX, Joan
Miró, deveria ser considerada uma oportunidade de enriquecermos o nosso acervo
patrimonial e a nossa oferta turística, e uma oportunidade de podermos reaver o
investimento já feito por todos nós na coleção aquando da nacionalização do
BPN. As receitas da sua exibição ao longo das próximas décadas – mantendo-se ao
serviço do enriquecimento cultural dos portugueses–- encarregar-se-iam disso.
Em 2008, o então ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, avisou, por
ofício, os gestores do BPN recém-nacionalizado de que nenhum destino poderia
ser dado à coleção de arte do banco sem conhecimento prévio do Ministério da
Cultura. Mas isso era quando havia tutela para a cultura. Com este Governo,
logo que as obras passaram finalmente para a titularidade do Estado, em 2012,
as Finanças apressam-se a anunciar a sua venda. Resta-nos a Lei de Bases do
Património Cultural, que protege os bens culturais móveis, independentemente de
serem ou não classificados, tal como previsto na Convenção da UNESCO, na
Convenção da Unidroit e nos regulamentos e diretivas da União Europeia sobre
circulação de bens culturais. Lei que o secretário de Estado da Cultura
atropela, em atos “manifestamente ilegais”, para facilitar a venda da coleção.
Será só por ausência de pensamento estratégico para a cultura ou será por outra
razão?
2. No plano
administrativo, as irregularidades de procedimentos, ou melhor, a série de
episódios rocambolescos que levaram a Christie’s a abortar o leilão em
Fevereiro, incluíram a extradição de obras de arte sem autorização legal e a
circulação internacional das obras sem as respetivas guias de transporte. A
muito custo e graças às diligências parlamentares de deputados, hoje já se
conhece um pouco mais dos contornos processuais desta venda, muito embora o
clima de opacidade, de meias-verdades e de enganos permaneça no discurso das
entidades responsáveis (por ex., o contrato entre a Parvalorem e a Christie’s
continua sob sigilo, sem que haja base jurídica para tal). Mas da análise
possível dos documentos que já se conhecem, tudo indicia que a Parvalorem já
terá vendido à Christie’s a coleção Miró por 35 milhões de euros, aos quais
acrescerão 13,5% das mais-valias que a Christie’s vier a obter na revenda em
leilão. Só assim se explica a recusa do primeiro-ministro em vender a coleção
ao empresário Rui Costa Reis, que ofereceu 44 milhões (e a manteria no Porto) e
a recusa em autorizar uma exposição das obras em Portugal sem autorização da
leiloeira. Mais grave ainda é este negócio, a ser uma venda encapotada, ter
acontecido sem concurso público e sem visto do Tribunal de Contas. A serem
verdadeiros estes contornos, terá sido incompetência ou será por outra razão?
3. Resta o ângulo
judicial e a memória futura: decorrem ainda providências cautelares no Tribunal
Administrativo e descobriu-se a prova que o secretário de Estado da Cultura, a
secretária de Estado do Tesouro e o diretor-geral do Património Cultural (DGPC)
falsearam informações à Assembleia da República: afinal, 41 Mirós estão em
Portugal desde 2003, portanto, têm que ser obrigatoriamente classificados pela
DGPC. Mas o secretário de Estado da Cultura já anunciou que irá autorizar a exportação
das obras e o leilão continua inexplicavelmente marcado para Junho. É
provocação ao tribunal ou será outra coisa?
Sousa Lara foi um
secretário de Estado da Cultura cujo nome hoje é recordado apenas por ter
censurado um livro de Saramago em 1992; no futuro, Barreto Xavier será
recordado apenas por ter defendido e autorizado a extradição ilegal de 85 obras
de Miró.
Deputada do PS,
ex-ministra da Cultura
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