MANUEL CARVALHO /
P2 PÚBLICO / 27 Abril 2014-04-27
Em vésperas do
Verão Quente, António de Spínola está exilado no Brasil e sonha com um regresso
à frente de um exército invasor para expulsar os comunistas do poder. Numa
reunião secreta com altas patentes do Serviço Nacional de Informações, no Rio
de Janeiro, pede ao Brasil ajuda para preparar as suas tropas a tempo da
invasão prevista para Dezembro de 1975. Ernesto Geisel, o general que mandava
no Brasil, cortou-lhe as asas do sonho. Foi a primeira de uma série de derrotas
que acabou com o “escândalo Wallraff”. Memórias de um tempo em que Portugal
parecia um filme de James Bond.
Spínola com os
seus guarda-costas no Rio de Janeiro IN FOTOBIOGRAFIAS DO SÉCULO XX/ MARIA
INÁCIA REZOLA/ COORDENAÇÃO DE JOAQUIM VIEIRA / CÍRCULO DOS LEITORES/ ARQUIVO
DIÁRIO DE LISBOA
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Logo a seguir à
hora de jantar de terça-feira 17 de Junho de 1975, um personagem imprevisto
passava o portão de entrada da agência do Serviço Nacional de Informações do
Rio de Janeiro. Não era um espião com novidades de Cuba nem um delator de
manobras subversivas dos movimentos de guerrilha que por essa época ainda
combatiam a ditadura militar brasileira. Sob a penumbra protectora da noite, o
chefe da agência, o coronel Waldir Alves Costa Muniz, preparava-se para receber
o general português António Ribeiro Sebastião de Spínola e para ouvir e
registar uma proposta extraordinária. Na acta com a chancela “pessoal-secreto”
que Waldir redigiu e assinou dava-se conta do pedido ao Governo de “uma área de
treinamento localizada no interior do país”, que serviria de base para
“adestramento e adaptação de 600 homens” que estavam exilados no Brasil ou
viriam de Angola e de Portugal. Objectivo: preparar uma força “para invadir
Portugal e retomar o poder”.
Dois dias depois,
os serviços do SNI consideram o relatório merecedor de “tratamento especial” e
enviam-no para a agência central, em Brasília, onde a 23 se extrai uma cópia
para “conhecimento do chefe do SNI”. Daí seguiria para o gabinete do presidente
Ernesto Geisel, um luterano descendente de alemães do Rio Grande do Sul frio e
pragmático. O seu despacho manuscrito na margem esquerda do relatório é curto e
seco: “Não podemos e não devemos nos engajar”, escreveria num registo sem data.
Não se sabe como
e quando foi Spínola avisado deste despacho, se é que o foi. Mas a rejeição
liminar do seu pedido por parte de um regime militar de direita, alinhado com
as estratégias de Washington na defesa do “mundo livre”, só pode ter sido um
forte revés. Da segunda vez que se encontrou com Spínola no Rio de Janeiro,
onde se encontrava voluntariamente exilado, Adriano Moreira encontrou-o
“angustiado”. “Ele disse-me que estava muito desiludido com a falta de apoios
para as suas causas”, recorda Adriano Moreira à Revista 2.
O marechal com
amigos em Brasília IN FOTOBIOGRAFIAS DO SÉCULO
Havia três meses
que Spínola vivia o seu exílio brasileiro, forçado pelo fracasso do golpe do 11
de Março, ao qual esteve intimamente associado, e pela primeira vez conseguia
ter à sua frente interlocutores à altura das suas ambições. Além de Waldir, que
mais tarde seria secretário da Segurança do Governo do estado do Rio de
Janeiro, nessa reunião que decorreu entre as nove e as onze horas da noite de
17 de Junho estiveram também dois tenentes-coronéis e dois coronéis, entre os
quais Mário Orlando Ribeiro Sampaio, futuro comandante do Centro de Informações
do Exército e, ainda no período da ditadura, governador da 4.ª Região Militar
do Brasil. Ao longo da conversa “Espínola”, na grafia do relatório, respondeu a
uma bateria de perguntas dos membros da polícia secreta, interessados não só em
saber “as causas e consequências da actual situação lusa”, mas também quais as
suas “pretensões” sobre a criação de “um movimento que possibilite a derrubada
do actual regime português”.
É então que
Spínola expõe as suas teses, associando a “derrota em Portugal após o 25 de
Abril” à “infiltração comunista nas Forças Armadas” e à substituição de “chefes
de gabarito e competência” por “oficiais acomodados”. Com o poder militar
controlado pelos comunistas, os portugueses viram-se obrigados a votar no
socialismo (nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de
1975) “por não ter outra opção”. O sucesso da operação dirigida pelo PCP,
assinalava Spínola aos seus interlocutores, provava as dificuldades do “mundo
ocidental unido” em defender-se das “ideias” e da “penetração comunista”. Só
que pela sua experiência como líder autoproclamado do combate anticomunista,
lamentava que a defesa de Portugal da ofensiva soviética não fosse um
“imperativo” para as democracias ocidentais. Suspeitava até de que o país
estava a ser vítima de “uma estratégia na qual deixar-se-ia Portugal cair no
domínio comunista para servir de vacina e anticorpos para o mundo ocidental”.
A capa da carioca
Manchete
Era neste momento
de urgência que o ex-presidente se dispunha a actuar. Ele seria o último reduto
do combate à ofensiva patrocinada pelos soviéticos, o paladino do mundo livre. Na
sua agenda levava aos militares brasileiros a promessa de que “estão sendo
planeadas diversas actividades no sentido de se invadir Portugal”. O Movimento
Democrático de Libertação de Portugal, MDLP, que Spínola liderava e que contava
com uma organização espalhada pela Espanha (Alpoim Calvão, José Miguel Júdice,
entre outros), França (Sanches Osório) e Brasil, tinha sido já anunciado um mês
e meio antes e começava a articular-se com o Exército de Libertação de Portugal
(ELP), que unira figuras da extrema-direita, incluindo ex-elementos da PIDE,
apostadas em “limpar o país de todos os cães comunistas e traidores” e com o
Movimento Maria da Fonte, liderado pelo editor da obra de Spínola Portugal e o
Futuro, Paradela de Abreu, e por Jorge Jardim, em íntima conexão com o
Arcebispado de Braga e sectores empresariais do Norte do país.
Mais tarde, a 16
de Janeiro de 1976, Spínola diria ao jornal Tempo que “nunca esteve no espírito
ou nos planos do MDLP invadir Portugal, pela simples razão de que a sua força
de combate (…) é o povo português”. A acta assinada por Waldir Muniz mostra uma
realidade oposta. Carlos Simas, hoje coronel na reserva, foi um dos mais
colaboradores próximos de Spínola no exílio brasileiro e recorda que “a sua
ideia era entrar em Portugal num cavalo branco, levando atrás de si o
exército”. Para o general de monóculo e pingalim, cuja imagem correra as capas
de algumas das mais influentes revistas internacionais, em Junho de 1975, o
pior perigo para Portugal era a hesitação, o adiamento de decisões. Spínola
temia “a consolidação da liderança da minoria comunista” e na sua entrevista
com a secreta brasileira defendeu haver “uma grande urgência no desencadeamento
das acções”, concedendo a si próprio um “prazo máximo de seis meses” para
lançar a invasão. Pelas suas contas, bastariam “cinco mil homens bem armados e
adestrados” para “invadir Portugal com êxito”.
A capa da revista
Time de 6 de Maio de 1974
Depois de expor a
sua estratégia, Spínola faz bluff com os militares da SNI. Diz-lhes que boa
parte das forças que necessita estão já sob a sua disponibilidade em bases
africanas, nomeadamente na “Rodésia (actual Zimbabwe), África do Sul e Zaire”,
onde, asseverou o general, recebem “treinamento especial, aguardando uma fase
de adaptação a armamentos modernos e sofisticados”. Waldir “deduziu, com
relação ao armamento e equipamento, tratar-se de auxílio a ser prestado pelos
Estados Unidos”. Spínola disse que sim. Como hoje se sabe, Spínola nunca foi
capaz de mobilizar tropas em África. Nem de chamar os norte-americanos à sua
causa.
Em Angola, o
máximo que conseguiu foram duas mil espingardas obtidas já na segunda metade de
1975 numa negociação no Ambriz entre Holden Roberto, então líder da Frente
Nacional de Libertação de Angola, e Alpoim Calvão, o militar destemido que na
Guiné tinha liderado o audacioso ataque ao PAIGC em Conacri no final de 1970. A reunião fora
facilitada por Gilberto Santos e Castro, que tinha deixado a frente do MDLP em
Madrid para combater os cubanos em Luanda no Verão de 1975. Em relação aos
Estados Unidos, o aquecer do Verão Quente levara o embaixador Frank Carlucci,
que tinha via aberta para o presidente Gerald Ford através do chefe de gabinete
Donald Rumsfeld, a apostar no PS e em Mário Soares como antídoto para o avanço
do PCP. Um despacho da Associated Press de 25 de Setembro citado pelo
historiador Keneth Maxwell afirmava que a CIA estava a depositar todos os meses
nas contas do PS entre dois e dez milhões de dólares.
Alpoim Calvão
fotografado em Novembro de 2000 DANIEL ROCHA
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Fazendo vez de
forte, Spínola declarou ao SNI não necessitar de apoio financeiro do Brasil. Queria
apenas “facilidades” para a base de treino. A localização “no interior do país”
justificava-se pela necessidade de garantir “um sigilo absoluto” durante todo o
tempo da sua utilização, que o general estimava em “dois a três meses”. No seu
papel de vendedor de estratégias, Spínola insistia que o seu pedido não
“onerará o país”, até porque o transporte das tropas após o seu treino “para
uma base em algum lugar da Espanha” seria feita por sua conta em risco. Na acta,
não se explicita a data em que esse movimento seria feito. Aparece apenas uma
referência em código, com um D seguido de sete pontos. Poderia referir-se a
Dezembro, o que coincidia com o prazo máximo de seis meses que Spínola
considerava crucial para o sucesso da operação.
O bluff de
Spínola era premeditado. Ele soubera por intermédio de Adriano Moreira que os
americanos não estariam dispostos a envolver-se nos seus planos de invasão. Moreira,
que era docente de Direito na Universidade Católica do Rio de Janeiro e no
Instituto Superior de Defesa, tinha-se encontrado com Arthur Moura, o adido
militar de Washington em Brasília, que era de ascendência portuguesa, e ficara
a saber quais eram os planos norte-americanos para Spínola. “Uma vez almoçámos
e ele disse-me que não acreditava no apoio dos Estados Unidos a um possível
transporte de tropas para Portugal. Depois estive com o general Spínola e
disse-lhe que o Governo americano não tinha grande apreço pela intervenção
dele”, lembra Adriano Moreira.
O relatório do
SNI que prova a existência de negociações para a organização de uma força
militar destinada a abrir uma frente de luta armada contra o regime em Portugal
é desconhecido das principais obras de referência dedicadas ao spinolismo ou ao
período pós-25 de Abril. Aparece citado na monumental obra que o jornalista
Elio Gaspari dedicou à ditadura militar brasileira (1964-1985), a tetralogia As
Ilusões Armadas. Sanches Osório, nomeado por Spínola como o representante do
MDLP para os assuntos internacionais, desconhecia a sua existência e nunca
ouvira falar da diligência junto do SNI. Leu esse documento há duas semanas, em
Lisboa, com um sorriso nos lábios e repetidas exclamações: “É engraçadíssimo. É
engraçadíssimo”, dizia. Carlos Simas tem presente os devaneios de um general
que já não tinha tropas desde a Guiné e dá como natural a existência do pedido
ao SNI. “Eu disse-lhe muitas vezes: general, isso da invasão é um sonho.” Em vão.
Antigo armazem de
armamento do MDLP em Quintanilha, Bragança. Aqui estavam guardadas armas para
apoiar uma eventual "invasao" a Portugal ADELINO MEIRELES
O exílio
Spínola não teve
uma entrada fácil no Brasil. A sua fuga de helicóptero de Tancos no final do
dia 11 de Março para a base aérea espanhola de Talavera la Real, perto de
Badajoz, criou um problema diplomático que as autoridades de Madrid se
apressaram a resolver, reenviando o general e a sua tropa para o outro lado do
Atlântico. Três dias depois do golpe falhado, o general, a sua mulher e 19
oficiais portugueses embarcaram num voo comercial da Ibéria. A celeridade com
que o caso foi despachado permitiu ao ministro da Informação e Turismo espanhol,
León Herrera, citado na biografia que Luís Nuno Rodrigues dedicou ao general,
dispor de uma “prova evidente de que o Governo espanhol pretende manter as
melhores relações a todos os níveis com Portugal”. Spínola nem sequer é
autorizado a falar com os jornalistas antes de embarcar.
Quem não gostou
da ousadia foi o Brasil, que através do seu ministro das Relações Exteriores,
Azeredo da Silveira, censurou o facto de o seu Governo não ter sido “consultado
em nenhum momento sobre a decisão espanhola”. Acto contínuo, o desembarque de
Spínola no Brasil não é autorizado. O general e a sua comitiva são obrigados a
voar para sul, em direcção a Buenos Aires, onde o Governo argentino lhe concede
asilo durante um “período de trânsito”. Na América do Sul do tempo das
ditaduras militares, Augusto Pinochet, fresco no cargo, é o único a abrir-lhe
as portas. Só no final do dia 15 Spínola recebe de Brasília o estatuto de
exilado. Para o confirmar, assina uma declaração de renúncia a actividades
políticas no território brasileiro.
Nessa noite,
Spínola aterra em Guarulhos, o aeroporto internacional de São Paulo. Aí ficaria
duas noites hospedado no Hotel Hilton, no centro da cidade, até que a 19 de
Março viajou para o Rio de Janeiro, o epicentro da concentração dos exilados
portugueses depois do 25 de Abril. “Um grupo de portugueses influentes no Rio,
entre os quais Tomé Feteira, dispuseram-se a levar-nos para lá”, recorda Carlos
Simas. Spínola chegou ao aeroporto do Galeão “sem abandonar o monóculo,
encaixado no olho direito e envergando um elegante fato castanho”, relataria o
Diário de Notícias. A sua base no Rio seria o Hotel Apa, no bairro de
Copacabana, uma unidade de três estrelas que ainda hoje tem as portas abertas.
Quando Sanches
Osório se deslocou à base de comando do MDLP, no princípio de Maio, não pôde
deixar de reparar que a paixão do general pelos hábitos das casernas não tinha
desaparecido. “Ele tinha montado um quartel no hotel, com um oficial de dia e
tudo.” Carlos Simas confirma só em parte esse relato. “O general ocupava um
andar do hotel, onde vivia com a mulher, onde estava também a sua secretária e onde
nos reuníamos para trabalhar. Mas nunca houve um oficial de dia”, diz. Enquanto
a maior parte dos oficiais que o acompanharam acabou por ter de alugar
apartamentos nas redondezas, Spínola ficou hospedado no Apa até ao final do seu
período brasileiro.
Sanches Osório
foi ao Brasil, onde passou “dois ou três dias” e levou o projecto de estatutos
do MDLP. O coronel na reserva não se lembra se foi esse o principal propósito
da visita. Do que se lembra é de um clima de cortar à faca no “quartel-general”
de Spínola. “Mal cheguei, o general disse-me: ‘Ainda bem que já cá está. Vamos
almoçar a Petrópolis com o Carlos Lacerda’, que tinha sido governador do estado
do Rio de Janeiro. Mas o Carlos Simas chegou ao pé de mim e disse: ‘Não fales
com o general antes de falares comigo.’ Já estavam todos zangados uns com os
outros e todos com Spínola”, recorda Sanches Osório. Carlos Simas lembra-se de
um desses momentos de tensão, quando o general admitiu a possibilidade de sair
do Brasil clandestinamente (só recebeu o seu passaporte brasileiro no final de
Maio de 1975). “Imagine o que seria um ex-Presidente da República ser detido
por um guarda fronteiriço”, diz Simas. “Aí, eu disse-lhe: ‘Se tentar fazer
isso, eu denuncio-o.’ Ele pôs-me na rua, mas passado umas horas deu-me o braço
e disse que eu tinha razão.”
No meio da
barafunda, da nostalgia de um país que acreditavam estar a caminho de uma
ditadura comunista e da solidão, Spínola e a sua equipa trataram desde os
primeiros momentos dar músculo à intenção de abrir uma frente armada para a
“libertação” de Portugal. A ditadura militar brasileira parecia ser um bom
começo para angariar meios. Militares costumam ter afinidades com militares. A
26 de Março, uma semana depois de aterrar no Brasil, Spínola escreve ao
Presidente Geisel agradecendo-lhe a “fidalga hospitalidade” na “hora difícil
que a pátria portuguesa atravessa”. A simpatia, porém, não deu frutos. “Ele
nunca conseguiu falar com o general Geisel. Teve contactos apenas com o João
Baptista Figueiredo, que também era da arma da cavalaria e tinha muita
influência nesse tempo”, recorda Carlos Simas — Figueiredo sucederia a Geisel
na presidência em 1979.
O grande aliado
do general foi Carlos Lacerda, um destacado político da direita brasileira que
Salazar condecorara com a Grande Cruz de Cristo. Nas páginas do seu jornal, o
Tribuna da Imprensa, Lacerda especializara-se desde 1949 nos apelos a golpes
militares. As acusações que faz de corrupção à classe política brasileira,
raramente fundamentadas, fazem parte do puzzle que levou ao suicídio do
Presidente Getúlio Vargas, em 24 de Agosto de 1954, e à demissão do Presidente
Jânio Quadros em 1963. Lacerda tinha atingido o seu auge político quando se fez
eleger para o Governo do estado do Rio (na época Estado de Guanabara), em 1960.
Apoiante do golpe militar dos generais em 1964, tinha-se incompatibilizado com
o regime. Em 1967, viu os seus direitos políticos suspensos por dez anos.
Por coincidência,
Lacerda tinha lido Portugal e o Futuro, o livro no qual Spínola expunha as suas
ideias sobre os limites do regime e projectava um cenário federal para o
Império. Estava em Lisboa em Fevereiro de 1974 quando a obra foi publicada e
deu “um máximo de quatro meses de sobrevivência ao Governo de Marcello
Caetano”. Errou por excesso. De regresso ao Rio, publica o livro na sua editora
Nova Fronteira, o que renderia a Spínola 34 mil cruzeiros (5200 dólares no
câmbio da época) em direitos de autor no momento. Profundo conhecedor de
Portugal, que num artigo publicado na revista Manchete em Maio de 1974
definiria como “um país afogado pela História”, apareceria na imprensa
brasileira como o principal intérprete da revolução dos cravos. “Spínola
deu-lhe a oportunidade de voltar a escrever nos jornais. Ele tinha os direitos
políticos cassados, mas podia escrever sobre Portugal, sobre a descolonização,
etc”, diz Simas, que se tornou seu amigo até à data da sua morte, em 1977.
Spínola em
Düsseldorf após o encontro com o jornalista Gunter Wallraff, à esquerda AFP
Como
contrapartida, Lacerda tornou-se um dos principais conselheiros do general.
Spínola recusa a designação de Frente de Salvação Nacional e opta pelo conceito
de “movimento democrático de libertação” depois de o assunto ter sido
“largamente meditado e resolvido com base no conselho do Dr. Carlos Lacerda,
homem de excepcional experiência política”, de acordo com uma carta dirigida a
Alpoim Calvão citada por Eduardo Dâmaso no seu vívido livro-reportagem
publicado em 1994 A
Invasão Spinolista.
Além das ligações
literárias e ideológicas, a aproximação de Lacerda a Spínola faz-se com a ajuda
de Luís Forjaz Trigueiros, que era primo afastado do político brasileiro.
Trigueiros fora um jornalista militante do Estado Novo e dirigira a editora
Bertrand até 1974, quando teve de se exilar. No Rio, prosseguiria a sua
carreira na editora Nova Fronteira, de Lacerda. Trigueiros, Spínola e, entre
outros, Carlos Simas, reuniam-se em fins-de-semana no sítio do Rocio, em
Petrópolis, a 44 quilómetros do Rio, que era propriedade de Lacerda, ou
participavam em jantares promovidos por Adolpho Bloch, o patrão da poderosa revista
Manchete. Entre os brasileiros que participavam nestes encontros, estavam
também Nina Ribeiro, deputado federal do partido dos generais no poder, e
Armando Falcão, futuro ministro da Justiça da ditadura.
As pontes
políticas que Spínola tinha construído no Rio não bastavam porém para lhe abrir
as portas do auxílio aos seus planos conspirativos. A 13 de Maio, consegue uma
reunião com o director e o vice-director do Centro de Informações da Marinha.
Numa acta dessa reunião, citada por Luís Nuno Rodrigues na sua biografia de
Spínola e que se encontra nos arquivos da Fundação Getúlio Vargas, o general
proclamou que queria levar a cabo “um projecto de características
revolucionárias, cujo propósito seria a derrubada do actual Governo português”.
Pretendia desencadear “uma acção subversiva, nos mesmos moldes daqueles
preconizados pela União Soviética, podendo até chegar à acção de guerrilha”.
Spínola mostrou-se agastado com o Governo do Brasil. Sentia-se “completamente
isolado, em posição de verdadeiro cativeiro” por não ter ainda acesso a um
passaporte, o que travava “a imperiosa necessidade de deslocar-se para
contactos com representantes de governos estrangeiros em carácter absolutamente
sigiloso”.
O seu passaporte
seria emitido em 23 de Maio e uma semana depois está em Nova Orleães por duas
semanas. Em meados de Junho, volta aos EUA e passa no México em “negócios”. Em
Julho voa para Paris, tendo passado antes por Genebra, onde se reuniu com um
grupo de políticos portugueses à direita do PS. Em Setembro, regressa à Europa
e a 17 Novembro parte para os Estados Unidos a convite “de associações de
americanos de origem portuguesa”. Na Universidade de Connecticut, profere a
conferência O Declínio do Ocidente. Discursa depois no prestigiado Council of
Foreign Relations. A destruição da democracia em Portugal seria um passo para a
destruição da liberdade no Ocidente, insiste. No dia 19, reúne mais de quatro
mil pessoas num evento em Newark. Quatro dias depois está no Canadá, falando
para 800 pessoas numa sala. A imprensa relata que duas a três mil tinham ficado
sem lugar no exterior.
Numa das suas
visitas a Paris, instalou-se numa casa de um construtor civil português, “o
senhor Antunes”, e, como era seu hábito, “transformou-a no seu quartel”, conta
Sanches Osório. Mário Soares admitira que o Presidente francês Giscard
d’Estaing lhe dissera no Verão de 1975 que Portugal era um caso perdido e que o
que faria sentido era “ajudar Spínola e as forças que se encontravam no exterior
do país”. Essa leitura da situação ajuda a explicar o encontro que Sanches
Osório conseguiu entre Spínola e o conde Alexandre de Marenches, chefe da
secreta militar francesa, a SDECE. “Pareceu um filme da CIA. Entrámos num
carro, a secretária de Spínola noutro e cada um seguiu o seu caminho. Ela foi
para a minha casa e nós para a sede do SDECE. Tivemos de mudar de carro duas
vezes pelo caminho”, recorda Sanches Osório. Mas o que começou como uma fita da
série B acabou numa trágico-comédia.
“Foi um desastre”,
lembra Osório. “Ele acabou por dizer ao conde o que disse aos militares
brasileiros e está no relatório da reunião no SNI”, acrescenta. Os planos
“irrealizáveis” de Spínola serviram apenas para que os franceses se afastassem
de qualquer plano de apoio ao seu movimento. Para agravar o desastre, um
encontro com capitalistas portugueses na casa de Manuel Boullosa, em Neully,
para garantir financiamentos, correu ainda pior. Participaram, além de
Boullosa, Manuel Quina e António Champalimaud, que, de acordo com o relato do
jornalista Eduardo Dâmaso, acusou o general de andar a “ver navios” depois do
25 de Abril e de ser um “fantoche”. Champalimaud disse que só financiaria o
general se “ficasse ele como estratega e orientador político do MDLP, porque
não acreditava no general Spínola”. Spínola nem ficou para o almoço.
Numa segunda
viagem à Europa, já em 1976, as coisas ainda correram pior. Spínola desembarcou
em Paris com um passaporte em nome de António Ribeiro e foi bloqueado em
Perpignan, quando se preparava para entrar em Espanha. No regresso, Sanches
Osório vai esperá-lo ao aeroporto de Orly, onde um major da secreta francesa o
incumbe de realizar uma ordem do ministro do Interior, o príncipe Michel
Poniatowski: Spínola tinha 24 horas para deixar a França. “Dei-lhe o recado e
ele respondeu: ‘Vou mandar o meu chefe de gabinete falar com o ministro’”,
recorda Sanches Osório. A megalomania do general permanecia intacta. Acabaria
por rumar para Genebra, com o seu sonho de invasão cada vez mais remetido para
a os confins da sua imaginação.
As bombas vistas
de Copacabana
À margem do
vaivém do general, o Verão Quente de 1975 aquecia. Com o terreno ocupado pelo
ELP e, principalmente, pelo Movimento Maria da Fonte, o MDLP conquista espaço à
custa do prestígio e simbolismo de Spínola. Paradela de Abreu, que juntamente
com Jorge Jardim e o cónego Eduardo Melo são os principais rostos da
insurreição conservadora e católica que estala no Norte, dizia que “o povo
organizado para uma revolta tinha de ter um chefe”. E Spínola tinha as
condições ideais: era um “general clandestino, guerrilheiro” e não estava
“ostensivamente ligado a nenhum partido”. Mais difícil seria uma união de facto
com o ELP, que se inspirava em figuras da elite militar ainda mais à direita,
com destaque para Kaúlza de Arriaga.
Spínola, porém,
mantém reservas face a estes movimentos basistas. “Ele dizia para não se fazer
nada, para se esperar pelo seu regresso”, recorda Carlos Simas. Com o
directório em Madrid a esboroar-se em divergências políticas, com o desgaste
que Spínola ia sofrendo no plano internacional, a acção do MDLP fazia-se no
terreno sem que houvesse uma voz de comando centralizada, sem uma estratégia
definida. Carlos Simas deixa o Brasil em Setembro e segue por sua conta e risco
para a raia, entrando em Portugal clandestinamente para apoiar acções como os
cortes de estrada em Rio Maior. Sanches Osório permanece em Paris, onde tenta
encontrar meios para comprar armas. No Norte, Alpoim preserva a sua aura de
guerreiro corajoso e, depois de Agosto de 1975, junta-se sem equívocos à rede
bombista que destrói sedes e mata figuras ligadas ao PCP. No Rio, Spínola dava
folga ao desdém crescente dos operacionais. “Ele gostava mais de conspirar em
Copacabana”, diria depois Paradela de Abreu.
Mesmo que
verdadeira, essa profissão tornava-se cada vez mais árdua para o general que
acreditara liderar uma campanha internacional para livrar Portugal e as
colónias do veneno soviético. A cada mês que passava, o cerco em que vivia
apertava-se. Em Espanha, Franco, que morreria em Novembro de 1975, concedia
facilidade para treinos de guerrilha no Vale dos Caídos e fechava os olhos aos
movimentos dos bombistas na raia, mas recusava ter no seu solo um emblema tão
brilhante da oposição à jovem democracia como Spínola. Em França, o seu delírio
tornara-o uma anedota. Os americanos apostavam em Soares. E, com o tempo, até o
Brasil dos generais começou a ficar cansados das diatribes.
Em Agosto de 1975, a hipótese de
Portugal se tornar um país controlado pelo Partido Comunista era mais real do
que nunca. O segundo Governo de Vasco Gonçalves tomara posse a 8 e, apesar de
terem obtido 64% dos votos nas eleições para a Assembleia Constituinte no dia
25 de Abril, o PS e o PSD estavam na oposição. Numa entrevista à jornalista
italiana Oriana Fallaci, Álvaro Cunhal tinha posto as cartas na mesa: “Os
comunistas não aceitam o jogo das eleições (…) Se pensa que o PS com os seus
40% e o PSD com 27% constituem a maioria, engana-se. (…) As eleições não têm
nada, ou têm pouquíssimo a ver com a dinâmica revolucionária (…) Portugal não
deve ser um país de liberdades democráticas e de monopólios. Não deve ser um
companheiro de viagem das democracias burguesas, porque não o permitiremos.”
O país partia-se
em dois, seguindo uma linha que passava por Rio Maior onde, a 13 de Julho, o
assalto violento à sede do PCP inicia a agitação do Verão Quente. O PCP promete
erguer uma “verdadeira muralha de aço” em torno da capital. Num comício em
Lisboa o PS reúne 200 mil pessoas que pedem a demissão do Governo de Vasco
Gonçalves. O Norte agita-se insuflado pelo protesto da Igreja. Entre 29 de
Julho e 5 de Agosto, Alpoim Calvão conta no seu livro de memórias De Conakry ao
MDLP: Dossier Secreto “27 incidentes [dos grupos de direita], desde assaltos a
sedes, incêndios e sabotagens e actos bombistas” que muitas vezes ocorriam
“depois de manifestações de apoio ao bispo local”. A 7 de Agosto, militares
moderados como Melo Antunes, Vasco Lourenço e Vítor Alves anunciam o Documento
dos Nove, que acusava o MFA de manter um projecto político “que não
correspondia à sua vocação original nem ao papel que dele esperava a maioria do
país”. Para Soares, o MFA cedia a uma minoria “arreigadamente totalitária e de
vocação suicida”. Nada que impedisse a tomada de posse do V Governo no dia
seguinte.
No seu andar no
Apa, Spínola assistia à vertigem de um país a caminho de uma guerra civil e
decide quebrar o compromisso de renúncia à intervenção política. A 11 Agosto,
numa entrevista ao jornal belga Het Belare van Limburg, diz que “espírito
inicial do 25 Abril” tinha sido “completamente traído, frustrando as
expectativas da maioria do povo português”. Dias depois, a 18, sobe o tom e
torna pública uma carta ao Presidente Costa Gomes, na qual lhe perguntava:
“Para onde leva Portugal?” Aí, considerava confirmadas as expectativas que o
levaram a “advertir os portugueses para as consequências da criminosa política
de ‘terra queimada’ que um grupo de traidores tinha em mente realizar para
sobre as ruínas de Portugal implantar um Estado comunista”.
Os ecos da carta
chegam a Washington, que através da sua embaixada em Brasília pergunta ao
Governo se o Itamaraty [sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros] iria
“molestar” Spínola por causa da divulgação da carta. Um adido responde-lhe que
a carta fora emitida a partir de França. A embaixada portuguesa protesta,
lembrando que quando concederam asilo a Spínola o fizeram na condição de “não
estarem dispostas a permitir (…) quaisquer actividades ou tomadas públicas de
posição”. O Governo brasileiro, porém, tergiversa. Se saudara com entusiasmo o
novo regime e, principalmente, a descolonização que lhe abria as portas para
uma maior liberdade de movimentos em África, um ano depois a condescendência
com a “Estação Lisboa”, que reunia os opositores à ditadura militar exilados
eram acolhidos com aplauso, causava tensão nas relações bilaterais.
Numa declaração
proferida a 23 Agosto, o ministro dos Estrangeiros do Brasil, Azeredo da
Silveira, lembrava que o princípio da “não intervenção” era apenas uma das
facetas do problema. O outro era o respeito. Não podia “ser respeitado quem não
respeita” nem “reclamar contra a ingerência quem intervém”. Na capital
portuguesa, estavam nessa altura, entre outros, o almirante Cândido Aragão, um
dos expoentes do nacionalismo militar dos anos 60, Maurício Paiva, guerrilheiro
do Vanguarda Popular Revolucionária, o jornalista escritor Márcio Moreira Alves
ou Diógenes Arruda, um dos cérebros do Partido Comunista do Brasil (maoísta) —
em 1978 chegaria Leonel Brizola. Intelectuais como Miguel Urbano Rodrigues ou
César Oliveira criaram o activo Comité Pró-Amnistia Geral no Brasil, em 30 de
Maio de 1975. Lisboa não podia exigir silêncio a Spínola depois de dar albergue
a tanto ruído de oposicionistas brasileiros.
No terreno, o
braço operacional do MDLP avança com actos de sabotagem e de bombismo.
Militares juntam-se a milícias populares e fornecem técnicas de combate e
comando. No Outono de 1975, Alpoim e os seus homens estão na linha da frente.
No dia 4 de Outubro, uma denúncia leva a polícia a entrar de surpresa no
Seminário de Braga, onde prende o tenente Benjamim Abreu (o “lendário
combatente da Guiné”, segundo Alpoim) e o major Mira Godinho, o oficial da
Força Aérea que tripulara o helicóptero que levara Spínola de Tancos para a
Espanha nesse fatídico dia 11 de Março de 1975. Paradela de Abreu e Alpoim
Calvão também se encontravam no Seminário, mas puderam escapar a tempo. Foram
“onze horas de espera que aproveitei para dormir”, escreveria Alpoim no seu
Dossier Secreto.
Os sinais da
irreversibilidade da implantação comunista esmorecem em Setembro, quando
Pinheiro de Azevedo substitui Vasco Gonçalves no Governo, mas nem esse
inesperado ar de apaziguamento evita os rumores de que Spínola dava os últimos
passos para a tão anunciada invasão. Uma entrevista ao Expresso, que acabaria
por ser publicada na revista carioca Manchete, fundamentava esses rumores: se
não fossem dadas “possibilidades às massas populares de se manifestarem
pacífica e ordeiramente contra a violência praticada contra elas, outro caminho
não lhes resta senão responder à violência comunista com a violência
anticomunista”, dizia Spínola.
Para o MDLP, os
dias de glória estariam para chegar. Esses dias de agitação eram aproveitados
para dinamizar grupos no terreno, obter financiamentos de empresários, para
criar condições logísticas e operacionais. Em Espanha, o avanço comunista
assustava o Governo de Franco. A revolução estava “a ser vista como um cavalo
sem freio que se precipitava inexoravelmente para o abismo, pelo que a
ditadura, por todos os meios, tentou fazer com que a Espanha não fosse
arrastada nessa louca corrida”, escreveu o historiador Josep Sánchez Cervelló.
Um barco carregado com 26 toneladas de armas e munições fornecidas por Holden
Roberto estava para chegar às praias da Galiza com a cumplicidade da Guardia
Civil espanhola. Uma operação que, segundo Eduardo Dâmaso, “credibilizou
significativamente o MDLP aos olhos dos refugiados que ali se encontravam”.
O 25 de Novembro
seria para muitos o canto do cisne dessa tentação contra-revolucionária. A
derrota do PCP era a prova de força dos militares moderados. Sanches Osório e
Carlos Simas, entre muitos outros militares do círculo próximo de Spínola,
mudam de vida. Alpoim Calvão diria numa entrevista ao PÚBLICO em Fevereiro de
1994 que após o 25 de Novembro se afastou. “Antes disso, podem dizer que fui eu
que as mandou pôr [as bombas], a todas, que eu não desminto. Depois disso, nem
uma! Bem, as coisas foram-se resolvendo pelo tempo e pelo diálogo, embora,
dentro daquilo que restava do MDLP, houvesse ainda quem continuasse a pôr
bombas quase por profissão”, afirmou.
A rede bombista
ganhara vida própria. Deixara de propor um combate de ideias e de lutar pelo
espírito inicial do programa do MFA e derivara para a delinquência. Nos primeiros
meses de 1976, o rebentamento de bombas e os atentados contra bens e pessoas
aumentaram, apesar dos crescentes sinais de estabilização política. Em Braga, a
noite de 29 de Janeiro de 1976 foi o “pandemónio”, com sete rebentamentos
simultâneos. “Aquela malta começou a fugir em todas as direcções. Pum dum lado,
pum do outro!”, afirmou no seu depoimento à Polícia Judiciária Ramiro Moreira,
um dos condenados no processo da rede bombista.
Numa declaração
registada pelo jornalista alemão Gunter Wallraff, o assessor político de
Spínola José Valle de Figueiredo explicaria o lugar onde estava o MDLP nessa
nova fase do processo político: “Nós não podemos confessar que recomendamos
acções militares e as executamos. Para o exterior, temos de parecer pacíficos.
E por isso nunca confessamos que essas acções são nossas. E como toda a gente
julga que tais ataques só podem ser do ELP, deixamos as coisas correr.” Na
prática, o MDLP tinha-se diluído no devaneio bombista, inorgânico e difuso, sem
sentido político e prestes a ajustar contas consigo mesmo. Os assassinatos em
Vila Real do padre Maximino Sousa e da estudante Maria de Lurdes Pereira, em
Fevereiro de 1976, e três anos mais tarde do empresário Joaquim Ferreira
Torres, que integrava o MDLP, são a prova deste estertor de uma guerra contra
sedes de partidos e pessoas do PCP ou da extrema-esquerda.
E Spínola? Apesar
de ter reconhecido a bondade do 25 de Novembro (“os comunistas fracassaram em
Portugal e o país talvez possa encontrar em breve o caminho para a democracia”,
afirmou então), não desistiu das suas ideias de invasão. Seguindo o seu destino
em busca da glória perdida, Spínola é um derrotado em desespero quando, em
Março de 1976, o jornalista alemão Gunter Wallraff se lhe apresenta como
delegado de um movimento europeu da direita interessado em financiar as suas
actividades. Wallraff fizera a rota do bombismo pelo Norte de Portugal,
conhecendo operacionais no bar Ideal em Braga ou financiadores no restaurante
Pelintra na Póvoa de Varzim. No dia 25 de Março de 1976, pouco mais de um ano
após a sua fuga de Tancos, o general reúne-se com o jornalista no restaurante
Schnellenburg, em Dusseldorf. Spínola pede verbas para a propaganda e para
armas.
O escândalo
rebenta em Portugal nas páginas do Diário Popular, a 1 de Abril. Spínola
desmente tudo, mas sete dias mais tarde a revista alemã Stern publica uma
reportagem com fotografias. A armadilha foi de duvidosa deontologia, mas de uma
eficácia terrível. Spínola tinha acabado. No Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa
decretou “o fim da sua carreira política”. E Vicente Jorge Silva denunciou a
deriva de um ex-Presidente “megalómano e senil”. Dia 15, “por imperativo de
consciência”, Spínola decreta a suspensão do MDLP. E diz esperar pelas eleições
legislativas de Abril, que colocariam o PCP com menos votos do que o CDS, e as
presidenciais de Junho, ganhas por Ramalho Eanes, para decidir sobre o seu
futuro.
Regressaria a
Lisboa em 10 de Agosto vindo de Nova Iorque. Em vez de um povo reconhecido,
esperava-o a prisão de Caxias, onde após dois dias de detenção foi libertado
por “falta de indícios suficientes de culpabilidade”. O país exausto após um
ano de guerra fria ansiava pela normalidade. Spínola seria depois reintegrado
nas Forças Armadas em 1978, em 1981 recebe o título de marechal e em 1987 o
Presidente Mário Soares atribui-lhe a Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e
Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
O “De Gaulle”
português, que destapou com um livro a tampa de um regime caduco, que foi o
primeiro Presidente do novo regime, que tentou a todo o custo evitar uma
descolonização feita à medida dos interesses soviéticos, que lutou contra a
ascendência do PCP e da extrema-esquerda no seio do MFA talvez fosse “um bom
militar e um mau político”, como mais tarde o recordaria Costa Gomes. “Spínola
cometeu muitos erros, foi ingénuo politicamente, deixou-se muitas vezes
conduzir pela sua ambição e pela sua vaidade”, diria Nunes Barata, chefe de
Gabinete na Guiné e na Presidência da República, num depoimento colhido pela
historiadora Maria Inácia Rezola.
Foi essa vaidade
e ambição temperada pelo sentimento de dever para com o país que o levaram na
noite de 17 de Junho à sede do SNI. Para ele, transformado num ícone do
guevarismo conservador tão útil ao Ocidente no auge da Guerra Fria, o apoio do
Brasil, da França ou da América era uma questão de pura racionalidade. Errado o
alvo, deixou-se mergulhar em delírios e em ciladas. Tornou-se uma caricatura de
si próprio. Ou, como afirmou em Dezembro de 1995 ao Diário de Notícias,
sentiu-se “uma sombra, uma sombra do passado”. Morreu em Lisboa, vítima de
embolia pulmonar, às 3h30 do dia 13 de Agosto de 1986.
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