terça-feira, 31 de março de 2015

Joana Marques Vidal admite existência de uma rede de corrupção instalada no Estado

Joana Marques Vidal na qualidade de PGR reconhece que o caso dos Submarinos, em função dos graves erros cometidos pelo Ministério Público, afecta a imagem do MP ... E AGORA ? “É um caso que devemos analisar com calma. Ver onde houve passos menos correctos e [fazer dele] um case study que nos permita melhorar a nossa capacidade de investigação criminal”.
“Case Study” ? E esta indefinição e recusa de assumir as consequências lógicas através de uma Reabertura do Processo, não prejudica a imagem do MP e da classe política perante o Povo Português ?
OVOODOCORVO

“Joana Marques Vidal pronunciou-se ainda sobre o defecho do “Caso dos Submarinos” e deixou críticas à forma como a Justiça se comportou. “O caso dos submarinos é daqueles que dará uma imagem não muito simpática do MP, mas que envoleu também polícia criminal, órgãos de perícia criminal e outras estruturas (…) O MP terá que reconhecer que podia ter tido um desempenho mais adequado“, confessou a PGR.
Agora, o importante é aprender  com os erros e tentar não repetir as falhadas cometidas no caso, sublinhou Joana Marques Vidal. “É um caso que devemos analisar com calma. Ver onde houve passos menos correctos e [fazer dele] um case study que nos permita melhorar a nossa capacidade de investigação criminal”.

Joana Marques Vidal admite existência de uma rede de corrupção instalada no Estado
MIGUEL SANTOS / 25/2/2015, OBSERVADOR

Joana Marques Vidal, procuradora-geral da República, admitiu esta terça-feira, em entrevista à RR e ao Público, que existe uma rede que "utiliza o aparelho do Estado para realizar atos ilícitos".

A procuradora-geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, admitiu esta terça-feira em entrevista à Renascença e ao Público, que existe “uma rede que utiliza o aparelho do Estado e outro tipo de aparelhos da Administração Pública para realizar atos ilícitos”, muitos na área da “corrupção”.

Desafiada a comentar sobre uma eventual crise de regime, depois de vários casos de corrupção terem sido tornados públicos envolvendo, alegadamente, altos quadros da classe político-económica do país, Joana Marques Vidal começou por dizer que não lhe competia “fazer análises de regime”, mas admitiu que existe uma rede de corrupção instalada no Estado. Mais: a PGR apontou as áreas da “Saúde e da contratação pública” como os terrenos mais férteis onde germinam este tipo de casos.
O “Caso Marquês” dominou também grande parte da entrevista. Joana Marques Vidal aproveitou para afastar a hipótese de o Ministério Público (MP) se sentir de alguma maneira condicionado pelas eleições legislativas que se avizinham. “O MP tem de atuar de acordo com aquilo que a lei prevê. Não há os chamados timings políticos nem os timings para as investigações”. Na prática, explicou a PGR, “se a acusação tiver de coincidir com as eleições” assim acontecerá.

As questões relacionadas com a violação do segredo justiça, não só no caso que envolve o ex-primeiro-ministro, mas também noutros, foram alvo de críticas por parte de Joana Marques Vidal. A PGR garantiu o MP está a tomar medidas para “limitar” e travar as sucessivas fugas, mas admitiu que houve “alguns deslizes” de magistrados e de outros responsáveis que conduziam investigações importantes.

Joana Marques Vidal pronunciou-se ainda sobre o defecho do “Caso dos Submarinos” e deixou críticas à forma como a Justiça se comportou. “O caso dos submarinos é daqueles que dará uma imagem não muito simpática do MP, mas que envoleu também polícia criminal, órgãos de perícia criminal e outras estruturas (…) O MP terá que reconhecer que podia ter tido um desempenho mais adequado“, confessou a PGR.


Agora, o importante é aprender  com os erros e tentar não repetir as falhadas cometidas no caso, sublinhou Joana Marques Vidal. “É um caso que devemos analisar com calma. Ver onde houve passos menos correctos e [fazer dele] um case study que nos permita melhorar a nossa capacidade de investigação criminal”.

Paulo Rangel e a (má) defesa da sua advocacia

“Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif? Será que acredita naquilo que escreveu? Se acredita, então comece já a publicar as suas declarações de interesses, de rendimentos e fiscais. Dê o exemplo do que, candidamente, prega nesta paróquia. Pode ser que o sigam!”

Paulo Rangel e a (má) defesa da sua advocacia
JORGE NUNES LOPES 30/03/2015 - PÚBLICO

Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif?

No seu artigo de 25 do corrente, neste jornal, o eurodeputado-advogado Paulo Rangel apresenta um discurso, digamos, curioso, ao tentar sustentar o impossível: que ser deputado não acrescenta influência e poder ao exercício simultâneo da advocacia. O seu artigo atenta contra a inteligência do leitor comum – e a dos advogados, em particular.

Pergunta: "se o princípio é o da desconfiança por que razão tem mais interesses 'corporativos profissionais ou particulares' um advogado do que um médico, um dirigente sindical ou um professor?" Diz, a terminar que a "obsessão com os advogados [que são simultaneamente deputados] é incompreensível", concluindo que a questão deveria ser tratada pela regulamentação do lobby, o registo de interesses, a publicidade das declarações de rendimentos e fiscais.

A primeira falácia (instrumento da arte retórica da demagogia) do eurodeputado-advogado consiste em fazer de conta que tanto um médico, um dirigente sindical ou um professor, sendo deputados, se encontram no mesmo pé de igualdade que um advogado-deputado, para rentabilizarem, em proveito pessoal, a informação privilegiada (diria, insider trading legislativo e decisório), o acesso privilegiado a decisões das Administrações nacionais e europeias, o acesso privilegiado a fontes documentais e de know-how técnico-jurídico, o acesso ao mundo subterrâneo dos interesses e decisores que transmuta os ex-governantes e deputados em ricos administradores da banca e de tudo quanto permita dar a aparência de uma honesta relação de emprego. Veja-se, neste jornal, de 26 do corrente, o estranho caso do "irmão Lello", de Miguel Tavares – e veja-se o infindável rol de casos, dos drs. e eng.ºs, que saltitam entre a res publica e a privada, tentando fazer-nos acreditar que, contrariando a sabedoria evangélica, servem bem aos dois senhores…

Porém, pela natureza das funções próprias de um médico, de um sindicalista, ou de um profissional ‘qualquer-coisa’ que não venda know-how técnico jurídico, negócios e assessorias a concursos e contratos com a Administração, não se vê como possa ele retirar vantagem económica do facto de ser deputado simultaneamente ao exercício da profissão. Mas o mesmo não se pode dizer do advogado-deputado: só por inexcedível e falsa ingenuidade se pode colocar este, designadamente quando integra uma grande sociedade de advogados, facturando milhares/milhões à Administração, no mesmo plano do que aqueles.

Aquele discurso de Paulo Rangel – numa retórica de perguntas supostamente demonstrativas de que é a mesma coisa ser-se, digamos, por exemplo dentista-deputado e advogado-deputado – torna-se despudoradamente cínico, na tentativa de tudo igualar. Basta lembra que, historicamente, tem sido evidente o exercício da advocacia ser incompatível com o exercício de muitos cargos políticos e administrativos, p. ex.: vereador, polícia, funcionário dos tribunais, militar, etc. (cfr. o art.º 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados). É assim, justamente, para impedir duas coisas: o cambão, que consiste em o cargo servir para arranjar clientela; e impedir o risco de prejuízo da coisa pública, pela tentação (a ocasião faz o ladrão – diz o ditado) em beneficiar a carreira profissional, em detrimento daquela.

O lamentável naquele artigo é ainda, Paulo Rangel simular-se desconhecedor de que, além do mais, o cargo de deputado/eurodeputado permite-lhe, como advogado, praticar uma concorrência desleal com os advogados demais colegas que, natural e logicamente, não têm acesso à informação privilegiada da Administração. Em rigor, o eurodeputado-advogado pretende fazer de conta que ignora a densidade concreta de que saber é poder…

E são ridículas as alternativas que sugere para tentar legitimar a acumulação da advocacia com o cargo de deputado/eurodeputado: mesmo que fosse instituída a publicitação das declarações fiscais e de rendimentos dos deputados, qualquer profissional conhece dezenas de esquemas de ocultar o produto de negócios ilícitos.

O Direito vive e positiva-se, também, na prevenção de perigos: daí, por exemplo, o crime de corrupção ocorrer, ainda, quando o funcionário, mesmo cumprindo correctamente os seus deveres, aceita receber prendas (cf. art.º 373.º do Código Penal – corrupção passiva para acto lícito).

Finalmente, a "obsessão" dos advogados contra a acumulação não é nova: o Bastonário Júlio Castro Caldas foi, muito antes de Marinho Pinto, um dos mais sérios defensores atacantes do despudor desta acumulação de funções. É que, na verdade, basta ser-se Advogado ou Deputado, de integridade completa e honestidade ético-intelectual em cada papel, para se compreender a necessária separação.

Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif? Será que acredita naquilo que escreveu? Se acredita, então comece já a publicar as suas declarações de interesses, de rendimentos e fiscais. Dê o exemplo do que, candidamente, prega nesta paróquia. Pode ser que o sigam!


Advogado, militante do PSD (por ser um partido liberal…)

A indiferença de Costa e a falta de diferença do PS


A indiferença de Costa e a falta de diferença do PS

JOSÉ VÍTOR MALHEIROS 31/03/2015 – PÚBLICO

Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?

Há pequenos gestos que são reveladores. Pequenos gestos que nos fazem ver as coisas de maneira diferente, que nos fazem mudar de opinião sobre uma pessoa ou sobre uma ideia, que nos alertam, que nos confirmam uma suspeita.

Um desses momentos reveladores aconteceu na semana passada com António Costa, quando lhe perguntaram o que tinha a dizer sobre a candidatura presidencial de Henrique Neto, militante e antigo deputado do PS, e quando, depois de algumas hesitações, acabou por dizer que a candidatura lhe era ”indiferente”.

A reacção de Costa, com a sua mal disfarçada irritação, percebe-se bem. Nesta fase, em que a questão da eleição presidencial é simultaneamente tão fundamental e tão prematura, em que o panorama político e o leque de candidatos é tão confuso tanto à esquerda como à direita, em que as presidenciais ameaçam transformar-se numa arena de primeiro plano da luta política não só entre o PS e o PSD, mas também entre as diversas forças de esquerda, em que o PS não encontra nas suas hostes (e deus sabe como procura) um candidato de jeito, em que receia perder ou ter um resultado pouco convincente com um candidato seu e em que receia tanto ou mais ganhar com um candidato que acabe por apoiar a contragosto, é natural que Costa gostasse de controlar um pouco mais os candidatos da sua área politica que entram no tabuleiro.

No entanto, a atitude de Costa, se se percebe bem, não pode deixar de cair muito mal mesmo a alguém que, como eu, nem se sente politicamente próximo de Neto, nem tenciona votar nele nas presidenciais.

Não é razoável que o secretário-geral do PS faça este tipo de comentários em relação seja a que candidato presidencial for, já que não pode ser indiferente para um líder politico saber quem está na corrida presidencial, e dizê-lo não pode deixar de ser considerado um gesto de despeito e uma manifestação de hipocrisia, para além de um sinal de desrespeito para com o processo eleitoral. Mas, se não é razoável que o comentário seja feito, não é sequer admissível que ele seja feito em relação a um militante do PS que, por acaso, até possui um currículo de actividade cívica particularmente respeitável.

Há, infelizmente, muitas pessoas no circuito dos partidos que poderiam justificar o menosprezo de Costa. Mas Henrique Neto não está nesse grupo e a arrogância de Costa fica-lhe mal. Ainda que Henrique Neto fosse um ilustre desconhecido, mandaria o mais leve verniz democrático que Costa saudasse a sua candidatura, lembrasse que as candidaturas presidenciais não passam pelos partidos e que um amplo confronto de pontos de vista só pode dignificar a eleição. (Fico com uma dúvida: se tivesse sido Miguel Relvas a apresentar a sua candidatura, Costa diria que tal candidatura não dignificava a democracia ou faria um salamaleque protocolar, em nome das relações interpartidárias?)

Há razões para Costa ter ficado irritado com a candidatura de Henrique Neto: antes de mais, o facto de ter percebido que será difícil encontrar melhor; depois, a saudável independência em relação ao aparelho do partido que o empresário sempre manifestou, o seu espírito crítico sobre o PS e a prática partidária em geral e o facto de Neto não ter procurado a sua bênção prévia. Mas Costa esquece-se de que a independência e espírito crítico que Neto exibe é algo que muitos portugueses gostariam de ver em Belém.

Depois de Costa, figuras do PS com o currículo e a autoridade moral de Augusto Santos Silva e José Lello vieram também tentar morder nas canelas de Henrique Neto: o primeiro para o classificar como um “bobo” que procura os seus 15 minutos de fama e o segundo para o considerar o “Beppe Grillo português”... Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?

Ou haverá algum rumo político que um dia vá emergir daquela amálgama? Algum pensamento que se consiga afirmar sem esperar pelo que o PSD tem a dizer e sem esperar pelo que a União Europeia queira autorizar?

A atitude de António Costa em relação a Henrique Neto alimenta as razões de descrença de muitos portugueses na política e nos políticos, reforçando a ideia de que os actuais partidos vêem a política como um couto que lhes está reservado e reagem com hostilidade a qualquer discurso crítico da sua actuação. O que é mais preocupante na reacção de Costa não é a sua indiferença, mas a sua falta de diferença.

É curioso verificar, nos comentários às notícias sobre Neto, como a honestidade e a frontalidade manifestadas pelo candidato ao longo da vida constituem as suas qualidades mais apreciadas — independentemente das propostas reais que venha agora a fazer. E como se receia, em relação a este e a outros candidatos que se perfilam, que eventuais acordos com os partidos possam ferir essa honestidade. Quando os partidos que controlam o sistema político são percebidos pelos cidadãos como os principais agentes corruptores da política, algo está podre. E quando esses partidos nem percebem isso, é urgente encontrar-lhes alternativas.


jvmalheiros@gmail.com

Lei do arrendamento é um “risco” para o pequeno comércio do Porto


Lei do arrendamento é um “risco” para o pequeno comércio do Porto
LUSA 31/03/2015 - 08:14

Futuro dos negócios tradicionais é incerto, alerta o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira

O presidente da Câmara do Porto afirmou esta terça-feira que a lei do arrendamento é um "profundo risco" para o comércio tradicional da cidade, referindo haver comerciantes que "vão ser postos fora".

Rui Moreira falava na Assembleia Municipal sobre a "gentrificação", uma questão trazida pela deputada do PSD Daniela Coutinho a respeito da reabilitação urbana em curso no centro histórico.

Daniela Coutinho disse que "a cidade vive actualmente um ‘boom' turístico", que considerou "absolutamente benéfico". Alertou, porém, haver "o risco de transformação do Porto numa cidade-hotel, virada para fora", e de assim "rapidamente" deixar de ser atractiva.

A deputada reforçou, citando a Unesco, que "as cidades e os conjuntos históricos urbanos correm o risco de se tornarem um produto do consumo turístico de massas, o que pode conduzir à perda da sua autenticidade e valor patrimonial".

Saltou depois para a noite portuense, porque "não é possível ficarmos indiferentes ao sofrimento que a mesma tem causado” aos moradores do centro histórico, "em benefício daqueles que aqui passam uns dias".

"As pessoas são a essência do fenómeno urbano. Nos centros históricos não podem ser desenvolvidas políticas e acções de segregação, mas sim de desenvolvimento social", sustentou Daniela Coutinho.

Rui Moreira salientou que "uma cidade não se gentrifica apenas pela perda dos seus habitantes tradicionais. Gentrifica-se também pela perda de actividades tradicionais".

O autarca prosseguiu dizendo que o preocupa que "a preservação que é feita na lei apenas para pequenas e microempresas com muito pouco emprego não garante a subsistência de negócios tradicionais sem os quais eu não imagino a minha cidade".

"Eu não imagino a minha cidade sem o (Café) Guarani, sem a (mercearia) Pérola do Bolhão, sem a (mercearia) Casa Chinesa, sem a Livraria Lello e tudo isto está em profundo risco com a lei do arrendamento comercial", afirmou Rui Moreira.


Acrescentou que a Câmara sabe de "vários estabelecimentos comerciais que receberam cartas de senhorios a dizer que não vão estar interessados em renovar os contratos de arrendamento", concluindo que os inquilinos "vão ser postos fora".

Lisboa é uma das cidades europeias menos empenhada na melhoria da qualidade do ar


Lisboa é uma das cidades europeias menos empenhada na melhoria da qualidade do ar
Zurique, Copenhaga e Viena ocupam o pódio do ranking divulgado ontem em Bruxelas. Pior do que Lisboa só o Luxemburgo

Apesar das medidas tomada pela câmara, Lisboa está longe de satisfazer as normas europeias

Marisa Soares / 31-1-2015 / PÚBLICO

Lisboa surge em penúltimo lugar no ranking das cidades europeias mais empenhadas em melhorar a qualidade do ar, divulgado nesta terça-feira em Bruxelas. Apesar dos esforços para diminuir a poluição atmosférica, como a criação da Zona de Emissões Reduzidas (ZER), a capital portuguesa ainda está aquém do exigido pela legislação europeia no que toca à promoção do transporte público e à renovação da frota municipal
A lista, elaborada pelas organizações não-governamentais Amigos da Terra/Alemanha (BUND) e Secretariado Europeu para o Ambiente (EEB), resulta da avaliação de desempenho de 23 cidades, de 16 países europeus, ao longo dos últimos cinco anos. O ranking Sootfree Cities, cuja primeira edição foi lançada em 2011, considera nove categorias de critérios relacionados com os transportes, como a promoção de modos suaves (pedonais ou cicláveis), a gestão do tráfego urbano, a renovação das frotas públicas ou as tarifas sobre o estacionamento.
Lisboa integra esta lista pela primeira vez e vai directa para a 22.ª posição (pior só mesmo o Luxemburgo), com valores de poluição acima dos permitidos pela União Europeia (UE), “apesar da tendência para diminuição”, notam os autores do ranking em comunicado. A criação da ZER, que proíbe a circulação de veículos anteriores a 1996 e a 2000 (consoante os eixos) no centro da cidade, pecou inicialmente por ter “critérios muito brandos e praticamente sem aplicação”, consideram as organizações europeias, assinalando porém uma evolução positiva na terceira fase, em vigor desde 15 de Janeiro deste ano, que reforça e alarga as restrições.
A gestão do estacionamento melhorou com o aumento das tarifas entre 2010 e 2012 e a Câmara de Lisboa tem tomado algumas medidas para promover a bicicleta e os transportes públicos, mas faltam iniciativas mais “ambiciosas” como a renovação da frota municipal, com a aquisição de veículos mais “limpos”.
A posição de Lisboa neste ranking não surpreende a Quercus, uma vez que a cidade apresenta “elevados níveis de poluição há vários anos”. Mas para Mafalda Sousa, do Grupo de Energia e Alterações Climáticas da associação ambientalista, “mais do que a falta de qualidade do ar, há um problema de mobilidade na cidade”, onde existe ainda uma “grande dependência do automóvel” individual. Mafalda Sousa critica a falta de fiscalização no cumprimento da ZER e a “falta de expressão” das medidas municipais para promover a mobilidade sustentável. Além disso, os ambientalistas lamentam a falta de informação sobre a qualidade do ar na cidade, uma falha também apontada pelos autores da lista.
Já este mês a Quercus interpôs uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa, devido ao incumprimento da legislação não só em Lisboa mas também no Porto. Em causa está o atraso na execução dos corredores VAO+BUS+E, para a circulação de veículos com desempenho mais ecológico, nos principais acessos a Lisboa e Porto, previstos nos planos de melhoria da qualidade do ar daquelas cidades.

Zurique, na Suíça, surge em primeiro lugar na tabela por ter atingido valores que ultrapassam os exigidos pela legislação europeia. “O mais interessante é que a política de qualidade do ar é parte de um esforço de planeamento urbano alargado e coerente”, destacam as organizações. A cidade tem boas notas na promoção do transporte público e na redução dos níveis de poluição emitida pelos transportes: por exemplo, a frota municipal tem obrigatoriamente que ser equipada com filtros de partículas poluentes.

O desemprego que veio para ficar / Para milhares de portugueses a recuperação da economia não quer dizer absolutamente nada.

Os Cofres estão CHEIOS ? Mas ...
A População desempregada aumentou 1,7%
Subida foi mais expressiva entre os jovens ... “Emigrem” !?
OVOODOCORVO

EDITORIAL
O desemprego que veio para ficar
DIRECÇÃO EDITORIAL / PÚBLICO 30/03/2015 -

Para milhares de portugueses a recuperação da economia não quer dizer absolutamente nada.

“Em sua opinião, nos próximos 12 meses, o desemprego no país, irá: 1. Aumentar muito; 2. Aumentar um pouco; 3. Ficar na mesma; 4. Diminuir pouco; 5. Diminuir muito; 6. Não sabe.” Muitos portugueses a quem foi feita esta pergunta nas últimas semanas mostraram-se bastante optimistas e optaram pela opção 5. Esta é uma das perguntas que o Instituto Nacional de Estatística (INE) faz mensalmente para construir o índice de confiança dos consumidores. E a confiança voltou a subir em Março, sobretudo porque as famílias estão bastante mais optimistas em relação à evolução da variável desemprego.

As estatísticas do INE mostram que os consumidores estão mais optimistas em relação à situação económica do país, do seu próprio agregado familiar, projectando ainda um aumento do consumo, nomeadamente de bens duradouros. E, como tal, é natural que essas mesmas famílias projectem para o futuro uma quebra do desemprego, uma evolução, aliás, normal para uma economia que está em recuperação, ou seja, se a economia está a crescer, o desemprego deveria estar a cair. No entanto, os números do próprio INE contrariam esta tese ou esta percepção.

Depois de vários meses em queda, o desemprego parou de cair na recta final do ano passado e nos primeiros meses de 2015 mostra inclusive uma tendência de subida, tendo a taxa de Fevereiro aumentado para 14,1%. A estabilização que se assiste na taxa de desemprego em valores acima dos dois dígitos é preocupante numa altura em que a economia começa a dar sinais de alguma retoma. Muito provavelmente será a constatação daquilo que instituições como a OCDE e o Banco de Portugal têm antecipando, ou seja, a subida em flecha do desemprego estrutural em Portugal.

O desemprego estrutural é aquele que vai ficar, mesmo depois da inversão do ciclo económico. Um fenómeno que provavelmente levará muitos anos a debelar. São pessoas que estão sem trabalho e não têm perspectiva de regressar ao mercado. Têm qualificações (normalmente baixas) que já não são procuradas pelas empresas, estão em concorrência com jovens 20 anos mais novos e, como explicava esta segunda-feira o presidente do IEFP em entrevista ao PÚBLICO, é bastante moroso o processo de reconversão profissional de quem tem 40 e muitos ou 50 anos e está arredado do mercado.


Provavelmente a antecipar estes números, o primeiro-ministro, em meados deste mês, alertava em Valongo para o caso de pessoas, sobretudo da área da construção civil e das obras públicas, “que continuarão a não ter oportunidades de emprego”. Não basta lamentar. E não se trata de um problema deste ou daquele governo. Seja através de uma reconversão profissional mais agressiva, seja através de uma reafectação de verbas comunitárias, ou de um maior apoio ao auto-emprego ou ao acesso de soluções de microcrédito, este é um problema que tem de ser enfrentado de frente. Não é justo que para mais de 10% da população activa a recuperação da economia seja apenas um número que não quer dizer absolutamente nada.

Os desejos perigosos da maioria absoluta


Os desejos perigosos da maioria absoluta
Por Luís Rosa
publicado em 31 Mar 2015 in (jornal) i online

No domingo em que teve  a sua primeira derrota como líder do PS, António Costa produziu um soundbyte antes de as urnas fecharem:o PS precisa de ter uma maioria absoluta em Outubro, não “pela mesquinha vontade de [ter] mais deputados do que os outros”, mas “porque [quer] que o governo seja formado por decisão dos portugueses e não pelos jogos políticos na Assembleia da República ou condicionado pelo Presidente da República”. O líder do PS sente que o partido está a ser empurrado para coligações pós-eleitorais e quer evitá-las.

Obviamente que o soundbyte tentou fazer uma espécie de controlo de danos preventivo. Pressentindo a derrota na Madeira, o líder socialista tentou apagar o efeito negativo que uma derrota dos socialistas madeirenses podia ter na onda vitoriosa que António Costa quer criar no país. Mas revelou duas questões preocupantes.

A primeira foi mais um ziguezague estratégico depois do amor à primeira vista dedicado ao Syriza.

É bom recordar que no final do ano passado Costa já pedia a maioria absoluta quando era uma espécie de D. Sebastião, mas admitia coligações com praticamente toda a gente, à excepção do PSD de Passos Coelho: a extrema--esquerda doPCP e do Bloco Esquerda, a novidade do Livre e da Plataforma Tempo de Avançar e até mesmo Marinho e Pinto – pelo meio ainda houve o epifenómeno mediático de uma putativa coligação PS/CDS. Convenhamos que passar de uma espécie de coligação salada de frutas para a recusa de qualquer coligação é uma mudança algo radical em menos de um ano.

Olado mais preocupante, contudo, é outro: o perigo de alguém pensar que conseguirá a maioria absoluta em Outubro. As sondagens mostram um PS estagnado, com poucos pontos de vantagem face à actual maioria – como mostra uma insatisfação latente com a política da coligação PSD/CDS. A pouco mais de seis meses das eleições legislativas é pouco provável que os socialistas ou a coligação governamental consigam a maioria absoluta – mas quem fale com os dirigentes de um e outro lado percebe que o sentimento dos partidos que podem aspirar à vitória é que tal objectivo está perfeitamente ao seu alcance.


A ambição da maioria absoluta, normal em política, pode ser potencialmente perigosa tendo em conta o grau de conflitualidade política que se perspectiva até Outubro. Em primeiro lugar, existem vários casos judiciais em curso, como o caso Sócrates e o dos vistos gold, com informação política muito sensível que pode ser utilizada facilmente contra o PS ou a maioria PSD/CDS. A utilização de tal informação poderá legitimar uma concentração excessiva numa política de casos, em vez do debate em redor das ideias que poderão promover o desenvolvimento económico e social de que o país tanto precisa. Se a maioria PSD/CDS e o PS não o perceberem, podemos preparar-nos para uma votação histórica do partido de Marinho e Pinto e dos restantes partidos anti-sistema em Outubro. Na Madeira, os desconhecidos Juntos Pelo Povo já mostraram o que podemos esperar em Outubro: 10% dos votos na sua primeira eleição.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Henrique Neto. De criança que devorava livros a homem que “ralhava” / OBSERVADOR



 Henrique Neto. De criança que devorava livros a homem que “ralhava”

29 Março 2015
RITA DINIS / OBSERVADOR

Comunista pela necessidade de ação, palmilhava Leiria atrás da liberdade. Foi nos moldes que viu o futuro, nos livros a saída. E a política? Um desvio. Uma espécie de amor-ódio. Hoje é candidato.

 “Ouvi falar dele pela primeira vez em 1969, na Marinha Grande. Eu tinha uns oito anos [ele mais de 30] e fui pela mão do meu pai levar-lhe roupas à prisão, nas Caldas. Não o conhecia, e nem falámos nessa altura, mas lá estava o Henrique Neto, preso por andar a distribuir propaganda”.

A prisão não durou mais do que uns dias e, em todo o caso, foi rara no seu percurso pelos meandros da oposição ao regime salazarista. Mas naquele dia, durante a campanha eleitoral, encabeçava um grupo que andava a colar cartazes pelos muros da Marinha Grande e lá acabaria por passar umas noites atrás das grades.

— Andam a arranjar uma rica vida, andam.

Era Adriano Roldão, o “galifão lá do sítio”, presidente da câmara e um homem da situação. Tinha-os apanhado em flagrante. Mas Henrique Neto até estava responsável pela campanha e tinha autorização para colar um cartaz ou outro. Passou. “Depois fomos para as Caldas da Rainha distribuir os panfletos e foi aí que veio a polícia e apanhou-os a todos sem exceção. Eu vinha no grupo de trás, escapei”.

É aqui que chegamos à visita na prisão. Quem conta a história é Amílcar Martinho, colega de infância de Henrique Neto, que acabaria por partilhar consigo alguns dos tempos mais quentes da juventude irrequieta passada no Movimento de Unidade Democrática, depois no Partido Comunista – o único onde havia ação (“quem queria fazer oposição ao regime naquela terra ia para o PCP”) – e no Sport Operário Marinhense, onde se lia os livros proibidos e se aprendia o inglês. Pela mão, Amílcar levava o filho, Jorge, que naquele dia ouvia pela primeira vez falar no nome que depois seria tantas vezes repetido. Henrique Neto acabaria por ser libertado um ou outro dia depois, por força do Dr. José Vareda, formado em Direito e um dos homens mais influentes do seu tempo na Marinha Grande, com quem Neto se aconselhava amiúde. Os restantes infratores, os que eram considerados “mais agressivos ao regime”, ficariam presos até à Revolução.

"Sempre teve uma necessidade de fazer obra, mostrar que era capaz. Como empresário movia-se pelo lucro, claro, mas não era só o dinheiro. Tinha um certo jeito 'naif' de conseguir os seus objetivos."
Jorge Santos, empresário e presidente da Nerlei

Jorge Santos, o menino de oito anos, hoje tem 54. Fez-se empresário da indústria dos plásticos e presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei). Depois desse dia na prisão só se voltaria a cruzar e a conhecer verdadeiramente Henrique Neto décadas mais tarde, nas andanças da vida empresarial, nomeadamente nos congressos e fóruns de discussão da indústria de moldes. Nunca trabalhou diretamente com ele, mas sempre partilhou o ramo e por isso as conversas – e o associativismo, que lhes corre nas veias. “Toda a gente sabia quem ele era porque intervinha sempre, onde quer que vá o Henrique Neto tem de intervir”, é ponto assente, diz. Era assim na década de 1980, quando estava no seu auge enquanto empresário, como é hoje, no auge da sua reforma. Pelo meio, e apesar de ter nascido no seio de uma família pobre de operários vidreiros, “conseguiu estar sempre uma data de quilómetros à frente dos outros”, resume o pai Amílcar, hoje com 79 anos.

Mas esta história que se tenta contar é longa e com cabelos brancos. Tem precisamente 79 anos. Mete a luta contra o salazarismo, o alistamento no Partido Comunista, as reuniões clandestinas (sem nunca o serem) na sua casa da Marinha Grande, e muito mais tarde a chegada ao Partido Socialista, pela mão do advogado e amigo Jorge Sampaio. Mas também mete muitos livros consumidos pelo canto do olho no chão da Bertrand ou no jardim da Estrela, e o sonho de trabalhar nos moldes – que eram o futuro. Mete um “sopro de sorte” que o faz voar para os EUA, voltando um dos empresários com mais sucesso do seu tempo. Um dos mais ricos e também um dos que mais “ralhava” com os operários.

Começa em 1936, no Beco do Carrasco, bem no centro de Lisboa. Podia começar na Marinha Grande, onde provavelmente se fez, mas quis o destino que fosse nascer à capital...

O pai sempre fora operário vidreiro mas depois da tropa vai parar a Lisboa e arranja trabalho como polícia na esquadra da Boavista. É nessa altura que nasce o primeiro e único filho, num quarto alugado no Poço dos Negros. Os primeiros três anos de vida, o pequeno Henrique vive-os ali. No mesmo andar, no lado esquerdo, vivia a tia Júlia, com a filha – que viria a trabalhar na Bertrand do Chiado. Depois, foi sempre entre cá e lá. Aos três anos a família volta para a Marinha Grande, porque o pai arranja novo emprego. Mas não fica muito tempo. No final da terceira classe, já a saber ler e escrever, volta para Lisboa, pela mão do pai que arranja novo trabalho como vidreiro na 24 de julho. Acaba a quarta classe e vai parar à Escola Industrial Fonseca de Benevides, porque “o liceu era para meninos ricos”. Mas só fica na capital dois anos letivos, no curso de serralharia – o terceiro, quarto e quinto anos vai acabá-los à Marinha Grande.

Nessa altura, com 14 anos, começa a trabalhar numa caixotaria do tio, e a continuar os estudos à noite. Ajudava a fazer os caixotes de madeira e depois a sua função era entregá-los, de burro pela mão, nas fábricas da zona. Sem irmãos, trabalhou cedo “porque era assim que tinha de ser”. “E mesmo assim não foi tão cedo quanto isso, o meu pai começou aos oito”, conta. Chegava a casa e dava o dinheiro todo à mãe – “não era aos meus pais, era à minha mãe” – para ajudar nas despesas. Foi assim “até vir da tropa e casar”. Deixou os caixotes aos 16 anos para ir atrás do que sempre quis, a indústria dos moldes. O padrinho pô-lo como aprendiz de serralheiro na maior fábrica da Marinha, a Aníbal Abrantes, e depressa subiu ao primeiro andar e passou a desenhador, depois a diretor e mais tarde a proprietário. Mas já lá vamos.

O pai, presente mas ausente, foi possivelmente o fio condutor dos primeiros capítulos desta história. Há quem diga que há uma idade a partir da qual nenhuma realidade supera a memória. Talvez por isso os mais velhos falem pouco e fiquem horas virados para dentro. O pai de que se lembra era assim mesmo. Só tinha a quarta classe, mas lia que se fartava. Sobre política, sobre tudo. Lia mais do que conversava. Aliás, raro era conversar com o filho. Tanto melhor, o silêncio era uma espécie de anuência. E não precisavam de trocar muitas palavras para o pai influenciar o filho em (quase) tudo. Tanto na quietude com as leituras, como na permanente inquietude com o trabalho e a vida. A política anti-regime, mais do que uma influência do pai, revolucionário do 18 de janeiro de 1934, foi uma herança da família paterna, toda ela oriunda da tão politizada Marinha Grande.

Reuniões clandestinas na casa da Marinha Grande

Aos 15 anos já estava alistado no MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática) “porque toda a miudagem na Marinha Grande se alistava, menos os filhos das classes mais altas, dos médicos e advogados, esses talvez não”. Depois, já em idade adulta, entra para o PCP, mais ou menos pelos mesmos motivos.

"Conheci-o quando ele chega com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17 anos, junto às obras da capela da Amieira, para recolher assinaturas para a libertação de Mário Soares."
Amílcar Martinho, amigo de infância

Amílcar Martinho, que acabaria por ser contabilista até aos dias de hoje, fazia parte dessa miudagem e mantém a memória fresca. Ao Observador, o marinhense conta como conheceu Henrique Neto nessa tenra idade de adolescentes:

“Andava-se a construir a capela da Amieira, ali ao pé da Marinha Grande, e chega ele [Henrique Neto] com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17, a recolher assinaturas para a libertação de Mário Soares. Eu assinei, e até me lembro que depois foram dizer ao meu patrão que me devia demitir por causa disso (mas não demitiu). Foi assim que o conheci”, recorda. No mesmo dia, se a memória não lhe estiver a pregar partidas, os rapazes seguiram para Amor, uma terra perto de Leiria, para continuar o trabalho “e o padre de lá mandou chamar a polícia”. Foi um susto, mas nenhum dos dois foi dentro.

Segundo bem se recorda Amílcar Martinho, “o Henrique Neto foi sempre líder naqueles tempos do PCP da Marinha Grande” e com vontade de ver as coisas feitas. Lembra-se do tempo em que iam “fazer cópias dos cadernos eleitorais à Câmara Municipal” ou do tempo em que Henrique Neto se dava com “os Ministros”, o Carlos, o Vítor e o Lenine Ministro, “todos rapazes muito para a frentex, que acabaram por ter as suas fábricas”. E lembra-se das reuniões, supostamente secretas, que havia entre 1969 e 1973, na casa de Henrique Neto na Marinha. Na altura, Neto já estava na direção comercial da Aníbal Abrantes e já ganhava muito dinheiro, por isso a casa já nada tinha a ver com a casa modesta onde tinha crescido. “Esta era uma bela casa”, Amílcar Martinho recorda-se bem.

As reuniões serviam para discutir ideias e planear estratégias. “Nunca podia ir muita gente porque eram clandestinas, mas ia alguma. Até termos vindo a saber que um dos homens que frequentava as reuniões era ‘bufo’ e contava tudo ao sr. Adriano Roldão, o galifão lá do sítio”, conta Amílcar Martinho. Em 1969, Henrique Neto chegou a ser candidato pela Oposição Democrática e durante mais de um ano andou a caminhar pelo distrito de Leiria, principalmente rumo ao norte, que era a zona mais rural, para politizar os menos instruídos, fazer debates, distribuir cartazes. Fazia-se política como se podia, mas o PCP da Marinha Grande era, ainda assim, muito virgem. “Fala-se muito mas depois cada um ia para sua casa e não aplicava nada”, diz.

Bate com a porta do comunismo em 1975, ainda a poeira da Revolução de abril não tinha assentado, por uma conjugação de dois fatores. Primeiro, por desacordo: “houve uma noite em que reunimos até às 4h00 da manhã para discutir a questão dos SUV – Soldados Unidos Venceremos. Queriam armar os soldados (não os capitães), porque o PCP tinha perdido um certo poder no Conselho da Revolução, e eu achei que isso podia dar origem a uma guerra civil. Bati-me por aquilo a noite toda, quando vi que não conseguia, fui-me embora”. Depois, por uma questão de timing. É que Neto tinha acabado de formar a sua própria empresa na indústria dos moldes, a Iberomoldes, e tinha de fazer escolhas. “Provavelmente se não tivesse acontecido aquele episódio eu tinha continuado a fazer coexistir o mundo empresarial e a política”, mas aconteceu. Daí até 1993 manteve-se afastado da atividade política.

Bem disposto, mal disposto, bem disposto, mal…

Funda a Iberomoldes em 1975, a empresa que começou com quatro pessoas e que chega ainda hoje às 1400. Sempre disse que não tinha ambição de ter uma empresa sua porque já estava num cargo de topo da Aníbal Abrantes, levava muito dinheiro para casa, casado e com dois filhos, e “não tinha ambição para ter mais”. De todo o modo, já tinha chegado mais longe do que alguma vez pensaria. Diz que nunca foi o dinheiro que o moveu, mas sim a vontade de fazer obra. A verdade é que foi quando a nova administração da Aníbal ameaçou cortar-lhe o ordenado – “dois sujeitos de Cascais, do regime, pouco competentes, ficaram medrosos com a crise e quiseram reduzir os ordenados…” – que bateu com a porta. “Disse que não, não há cá cortes. E fui embora”.

Reza a lenda que o anúncio da sua saída foi feito numa reunião plenária, com todos os trabalhadores da empresa, e que Henrique Neto terá dito: “Só volto cá no dia em que for para comprar isto”. Neto ri-se e diz que isso é “romance”, “típico dos meios pequenos”. Mas Salomé Rios, hoje com 60 anos, estava lá e jura a pé juntos que aconteceu. “Na altura ninguém fez caso disso, não parecia possível ou plausível sequer. Passado uns 12 anos o que é certo é que comprou a empresa”, em jeito de expansão do seu império no setor dos moldes.

No trabalho só se falava de trabalho. Uma vez fui ao Algarve com a família e chegámos a passear no veleiro dele. E ali era completamente diferente, sempre bem disposto, o trabalho não entrava. E eu pensava, a brincar, "Por que é que não é sempre assim?"
Salomé Rios

Salomé Rios secretariava a direção comercial da Aníbal Abrantes desde os seus 19 anos, logo, trabalhava diretamente com Henrique Neto. E quando em 1986 a Iberomoldes adquire a Aníbal, Salomé passa a secretariar a direção da casa-mãe. Durante mais de 20 anos foi assistente de Henrique Neto e conhece-o como poucos. Conhece-o, imagine-se, pelo caminhar.

“Bastava vê-lo entrar no escritório de manhã para perceber se estava de bom ou mau humor”, conta ao Observador. “Às vezes pensava ‘hoje não abro a boca, só respondo ao que ele perguntar’, porque já sabia que tinha dias em que não valia a pena insistir, era esperar que a tempestade passasse. Quando se conhece bem uma pessoa sabe-se estas coisas”. Enfurecia-se quando o trabalho corria mal, quando havia erros nos moldes e a peça, que custava milhares de euros, tinha de ir direitinha para o lixo. E então aí “ralhava, ralhava muito porque não gostava que os erros resultassem da falta de atenção ou descuido dos operários”. Salomé, apesar de não ter a ver com o assunto, estava mesmo ali ao lado e acabava por levar por tabela. É a lei da vida.

Os funcionários tinham medo do patrão? “Não, não, sabiam que ele tinha razão! Tinham era muito respeito. Era como um professor daqueles antigos, não batia, claro, mas impunha respeito”, diz. “Defendia muito o rigor e a inovação, por isso tínhamos de estar sempre à frente dos outros”.

Quando Henrique Neto se aproximava da fabricação, punham-se todos quase em sentido. “Vem aí o patrão, vem aí o patrão”. “E todos rezavam para que estivesse tudo bem, porque se não estivesse sabiam que ele ia notar. Não se conseguia esconder nada, porque conhecia o trabalho dos operários como a palma das suas mãos”. Os rostos e os nomes dos mais de mil funcionários é que não podia conhecer, por isso Salomé lembra-se de como todos ficavam “envaidecidos” quando Henrique Neto os cumprimentava à passagem pelos corredores. “Admiravam-no. Ainda hoje todos gostam dele, dava pica trabalhar para uma pessoa assim”, conta Salomé.

Pendurado no elétrico a caminho da Bertrand

Se tiver de escolher um ponto de partida para chegar à pessoa que acabamos de descrever, talvez os livros não sejam má ideia. “Os livros…foram a minha grande vantagem”. “E obsessão”. A constatação é do próprio Henrique Neto, com os olhos postos no passado.

Ainda que naquela altura de miudagem, a leitura fosse quase uma competição – “quantas páginas leste hoje? 300 e tu? 350, ganhei” – a sua obsessão era tal que não passou despercebida a Aquilino Ribeiro, o próprio. Andava ali muitas vezes pela Brasileira, Chiado, e quando parava na Bertrand, raro era o escritor não encontrar o miúdo sentado no chão a espreitar pelos livros a dentro. A espreitar sim, porque os livros estavam fechados e só quem os comprasse podia cortar e abrir a primeira página. Então espreitava-se, e Henrique Neto lia quanto podia. Aquilino Ribeiro, e outros que tais, lá lhe batia na cabeça: “Então rapaz o que é que andas a ler hoje? Epá isso é muito para ti, não é para a tua idade”.

Pôs a terceira e última filha na escola alemã. Porquê? "Porque há 20 anos achei que a cultura alemã, não só a língua, como também a disciplina e metodologia, iam ser muito importantes no futuro das pessoas"
Henrique Neto

Os Miseráveis, por exemplo, diz que os leu com oito ou nove anos. Um ofício que aprendeu quase sozinho, na Candidinha, uma espécie de pré-escola na Marinha onde uma professora ensinava uma dúzia de meninos a ler. Aos quatro começou, aos seis ou sete já lhe tinha tomado o gosto e já entrava nas competições. Entre os nove e os 12, “como só tinha aulas de manhã, vinha por aí fora, às vezes pendurado no elétrico, passar as tardes na Bertrand [onde a prima trabalhava]. Ali é que eu tinha livros com fartura”, conta. Se não tinha tempo de ir para o Chiado, ficava-se pelo jardim da Estrela ou pelo jardim de Santos, onde uma senhora abria uma estante de ferro e aço cheia de livros e jornais para as pessoas lerem.

Na juventude, a leitura e o cinema continuaram a ser os seus entreténs prediletos. Hoje, no escritório que comprou no coração do Chiado, com vista para o Castelo de São Jorge e para as luzes da cidade, as paredes falam por si, à imagem e semelhança de quem as decorou: de um lado os DVD, muitos e empilhados, do outro os livros, que já têm de se amontoar no chão à falta de prateleiras vazias; e ao meio os jornais. Nas estantes, as biografias de Álvaro Cunhal aparecem ladeadas da obra de Mário Soares, à direita, e da biografia de Steve Jobs, à esquerda. Ironias da vida. Isso, e os quadros de Fernando Pessoa, um deles bem grande a denunciar a admiração de sempre, fazem a decoração.




No se escritório, no Chiado. Com os livros em pano de fundo

Foi, aliás, um livro que influenciou a sua forma de ver a vida. “O Choque do Futuro”, de Alvin Toffler. Leu-o talvez no início da década de 80, ou antes, e “ficou obcecado”. A tese era de que a sociedade humana tinha uma dificuldade de adaptação crescente às transformações – o que antigamente acontecia em 50 ou 100 anos (“as pessoas viviam num sítio e morriam nesse sítio, se eram pedreiros eram pedreiros para a vida, e por aí fora”), passava a acontecer em 10 anos, e dali a 20 anos, já passava a acontecer em cinco anos. A transformação é veloz e a necessidade de adaptação tinha de ser constante. “Uma pessoa já não podia ter uma empresa para se limitar a fazer uma coisa, porque essa coisa ia mudar nos próximos cinco ou dez anos, mas ia mudar para o quê? Essa ideia atormentava-se e comecei a ficar obcecado com o tema do futuro”, confessa.

De repente tudo o que importava era ter uma “visão de estratégia”. E até em casa tentava aplicar essa regra, apesar de não se considerar um pai austero e demasiado rígido. Pai de três, dois de um primeiro casamento aos 27 anos, e uma terceira filha, fruto da união com a companheira de há 30 anos, Henrique Neto optou por pôr o mais velho e a do meio na escola pública, mas com a benjamim (hoje com 28 anos) o pensamento foi outro. “Esta já vai para a escola alemã. Porquê? Porque há 20 anos achei que a cultura alemã, não só a língua, como também a disciplina e metodologia, iam ser muito importantes no futuro das pessoas”.

A obsessão ficou.

Um sopro de sorte

A história não se fez, contudo, sem um sopro de sorte. Quando era um jovem desenhador de moldes na Aníbal Abrantes não fazia como os outros que, na hora de almoço, pegavam na bicicleta e iam até casa. Levava uma sandes e uma merenda e comia ali mesmo. “Em dez minutos estava despachado e depois não tinha nada que fazer, então descia ao piso de baixo e andava pela fábrica a ver como estavam os moldes que andávamos a desenhar”. Todas as semanas aparecia o senhor Tony Jongenelen, o holandês responsável pelas exportações, que ia à fábrica ver em que pé estava o progresso para fazer o contacto com os clientes americanos e estrangeiros, em geral.

"Quem vai é o Henrique", terá ordenado o holandês. Tinha aprendido inglês no Sport Operário Marinhense e lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA.

“Chegava e ia direto ao engenheiro, diretor-geral da empresa. Mas às vezes o engenheiro não sabia bem das coisas e eu, como sabia, metia-me na conversa”, conta. Às tantas já não era ao engenheiro que se dirigia – “bem, em vez de falar com o engenheiro falo mas é com este gajo, é mais credível”.

Depois pronto, a sorte de uns é o azar de outros. Quando o holandês adoeceu, depois de um enfarte, foi o jovem Henrique, de 25 anos, e não o sobrinho do patrão, de 45, que o foi substituir no mundo das exportações. “Quem vai é o Henrique”, terá ordenado Tony Jongenelen. Tinha aprendido inglês no Sport Operário Marinhense e lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA. “Foi uma chance, um salto inegável na carreira, foi o que me permitiu ter percorrido o mundo inteiro ao longo de 40 ou 50 anos”, diz hoje, com os pés assentes no coração de Lisboa. Só aos EUA foi uma centena de vezes e, feitas as contas de cabeça, pode dizer que conhece todos os Estados e grandes cidades daquele país, à exceção de Seattle. “Nunca calhou, mas é pena”.

"As pessoas aqui na terra admiravam-no. Andar com a mala na mão, a correr países, a falar línguas que ninguém conhecia..."
Amílcar Martinho, amigo de infância

O desencanto e a amargura

Sempre em viagens entre a Marinha e o resto do mundo, não lhe sobrava muito tempo para a política. Desde a saída do PCP, em 75, escolheu sempre as empresas. Como a relação com Mário Soares foi sempre “up and down, up and down” até hoje (mais down do que up), só voltaria a alinhar por um partido em 1993, a pedido especial de Jorge Sampaio – velho amigo dos tempos do Dr. José Vareda. “Não estava com vontade de fazer fosse o que fosse, mas como era amigo dele e ele tinha acabado de se tornar secretário-geral e queria alargar o partido disse ‘tudo bem'”.

É com António Guterres que chega à primeira linha do Partido Socialista. Começou por ser seu porta-voz para a Indústria, ainda na oposição, e uma espécie de conselheiro. Escrevia-lhe documentos de uma página – “nunca mais de uma página” – sobre o que pensava e como pensava que devia agir, primeiro enquanto líder da oposição depois já enquanto primeiro-ministro. “Por acaso tenho ai umas cópias bem giras”. E ele dava-lhe ouvidos? “Não, nunca!”.


No dia da apresentação oficial da candidatura a Belém, rodeado da família e velhos amigos

Gostou dos primeiros dois anos, talvez, quando Sousa Franco estava no Governo. “Porque ainda estavam relativamente vivos os Estados Gerais, havia idealismo, pensava-se que a educação ia resolver os problemas do mundo, já havia vícios, mas não tantos”. De resto, dos tempos da governação guterrista guarda sobretudo um pensamento: “foi a maior perda de oportunidade do país desde o 25 de abril”.

“Pode dizer-se que outros fizeram pior, claro, mas aquela era a altura em que o professor Cavaco tinha saído, os erros eram evidentes, o Guterres sabia qual era a acusação que se fazia aos governos de Cavaco. E quando chega ao poder não faz senão continuar a política do betão, para dar uma casa a cada português, como costumava dizer”.

“E depois foi muito influenciado por um pequeno grupo que o rodeava, o Pina Moura, o Jorge Coelho e todos os seus interesses…”. “Mudou muito”, diz.

Desencantou-se. Os papéis de uma página que costumava escrever a Guterres, no ano de 2000 passaram a uma carta de quatro páginas. “Disse-lhe tudo. Que estávamos a endividar-nos, que estávamos sem estratégia para a economia, os negócios eram mais do que muitos, o Pina Moura fazia o que queria no Governo”. Depois vem José Sócrates, o “vendedor de automóveis”, a pessoa mais criticada de sempre por Henrique Neto.

"Gostava de concorrer contra Guterres nas Presidenciais"
Henrique Neto

Hoje, à distância dos acontecimentos, diz que tem muitos amigos à direita, na cena política, mais agora que está reformado. E elogia aquilo que o fez gostar de Guterres, antes de se virar para o lado dos críticos. “Ele era um organizador do pensamento, tem uma capacidade intelectual que eu nunca vi em ninguém, tem uma memória, uma organização mental que é um caso raríssimo”. Mas os elogios não chegam para retirar a sua candidatura caso António Guterres avance para Belém. Antes pelo contrário.

“Se fosse a minha escolha, Guterres seria aquele com quem em gostaria de concorrer nas Presidenciais”. Como não é…veremos.

Em 2009 Henrique Neto sai da Iberomoldes, porque a relação com o sócio entrou numa fase de rutura. Hoje diz que não gosta de sustentar conflitos, “daqueles que já se sabe à partida que não têm solução”, e agora sabe que foi por isso que saiu. Não dava mais. “Além de que estava cansado. Tinha trabalho 59 anos sem parar, sempre a viajar muito, talvez até tenha batido o recorde dos descontos para a Segurança Social”, diz em jeito de brincadeira para a seguir deixar uma nota mental: “quando for Presidente da República hei de mandar alguém lá ver isso da Segurança Social, se bati recordes”.

O motivo foi, por isso, de divergência, mas a saída foi discreta. “Na empresa nunca se notou que a saída era por atrito um com o outro. Foi tudo sereno, sem tragédia, sem ninguém perceber. O sr. Henrique mandou um comunicado para todos os funcionários a dizer que já trabalhava há quase 60 anos e que era altura de acalmar. Todos compreenderam e a empresa continuou o seu rumo”, recorda Salomé.

"Agora só o vejo de vez em quando. No Operário [Sport Operário Marinhense], que agora é um clube de elite, ou em São Pedro de Moel. Mas só o cumprimento na rua, com 'olá, passou bem'"
Amílcar Martinho, amigo de infância

Passados seis anos, o empresário garante que não ficou nenhum “vazio”. Até porque a vida é um comboio em constante movimento, com várias estações e apeadeiros. Tudo o que começa, acaba. A genética da irrequietude do pai. Saiu quando teve de ser e aproveitou para se dedicar às suas outras paixões: os livros e a escrita, o veleiro no Algarve, a família, os netos, a casa de Miraflores e de São Pedro de Moel, as tertúlias de pensadores, e, por fim, o reencontro de papel passado com a política.

Mas naquele último dia, quando fechou a porta do gabinete na Iberomoldes e se despediu da sua secretária de uma vida, apercebeu-se de que aquela era uma estação das grandes que ia perder de vista assim que soasse o apito do comboio. This is it. “Porque eu simbolizava o último adeus. Já tinha tratado de tudo, já tinha arrumado tudo, preparava-se para fechar a porta do gabinete pela última vez…”. E ali estava Salomé. Naquela altura, Henrique Neto já não foi capaz de falar nem de manter a serenidade e discrição que tinha pautado o seu processo de despedida. E chorou.

Ainda hoje, seis anos depois, o seu gabinete continua intacto, com todas as suas coisas, tal e qual as deixou. Salomé Rios continua a trabalhar exatamente no mesmo sítio, algures entre as duas portas que separavam os dois sócios, uma à esquerda, outra à direita. Com a diferença de que já não o vê entrar e caminhar pelo corredor para adivinhar se vem bem ou mal disposto. Ainda hoje aquela porta da direita (ou seria a da esquerda?) é o “gabinete do sr. Henrique”. “E duvido que algum dia deixe de ser”.


P.S. – Tire-se-lhe de vez o título de doutor, engenheiro ou arquiteto. Não tem nenhum curso superior e faz questão de o dizer. Foi Mário Soares quem lhe acrescentou certa vez o ‘arquiteto’, já que teimava em não ser nenhum dos outros dois. Mas não. Comendador até é, mas também não gosta. Lembra-lhe Eça. Henrique Neto, apenas. Esclarecido?

Sarkozy saboreia vingança de uma vitória, Le Pen quase lhe sente o gosto / FN não vingou nem no Sudeste mais à direita, nem no Norte mais social


Sarkozy saboreia vingança de uma vitória, Le Pen quase lhe sente o gosto

CLARA BARATA 29/03/2015 – PÚBLICO

Centro-direita ganhou mais de metade dos departamentos na segunda volta de umas eleições com leitura nacional. Socialistas esperam que recuperação económica faça esquecer maus resultados.

O vencedor da noite da segunda volta das eleições departamentais francesas foi a UMP de Nicolas Sarkozy e sentia-se que estava a saborear a vingança de ter sido derrotado pelo socialista François Hollande nas presidenciais de 2012.

“Nunca uma política tinha encarnado tanto o fracasso a todos os níveis. Do Governo aos executivos governamentais, foi a mentira, a negação, a impotência que foram castigadas”, declarou, abrindo claramente a campanha para as eleições que contam mesmo: as presidenciais de 2017.

Os receados ganhos da Frente Nacional (FN) foram, talvez, sobrestimados - está afastada a possibilidade de conquistar a direcção de um departamento, um nível intermédio da administração territorial francesa. Mas também Marine Le Pen diz que antes de mais, este resultado é “uma plataforma para futuros resultados eleitorais”, a pensar nas presidenciais. Em média, disse ela, os candidatos da FN tiveram “cerca de 40%” dos votos e falharam a vitória por pouco. No total, o partido de Le Pen disputou 834 duelos e 273 disputas a três nesta segunda volta e conseguiu eleger, pelo menos, 50 conselheiros gerais a nível nacional. Nas palavras do secretário-geral do Partido Socialista, “a FN implanta-se sem triunfar”.

Mas, pelo menos no Vaucluse e no Aisne, os dois departamentos onde tinha mais hipóteses de ganhar, parece colocar-se a hipótese daquilo que os analistas designavam como “uma terceira volta”. Isto significa que nenhum partido terá maioria absoluta - essencial para aprovar orçamentos. Ou seja, esta distribuição de forças nos Conselhos Gerais pode torná-los ingovernáveis e a FN desempenhará o papel de fazedor de reis.

Hollande perde em casa
O Partido Socialista, que controlava 61 departamentos, deverá ficar, no final da contagem, com 26 a 30. Mas sofre derrotas humilhantes, passagens de poder para a UMP de Sarkozy que têm um forte valor simbólico, como os departamentos pelos quais são eleitos o Presidente François Hollande (Corrèze), o primeiro-ministro Manuel Valls (Essone), a presidente da Câmara de Lille e ex-dirigente máxima do PS, Martine Aubry (Norte). 

Sarkozy regozijou-se e enterrou a faca com gosto, sublinhando erros tácticos dos socialistas: “Ao anunciar, antes das eleições, que o vosso voto não mudaria nada, o Executivo escolheu ignorar o voto dos franceses”, afirmou o ex-Presidente, referindo-se às notícias dizendo que Hollande não tinha intenção de remodelar o Governo nem de mudar políticas. “Não se muda de Governo a cada eleição”, dizia o Le Monde, citando fontes próximas do Presidente.

Manuel Valls confirmou essas notícias saídas, levantando o véu sobre medidas que o seu Governo vai tomar nos próximos tempos, que se centrarão na retoma económica e na criação de emprego. Reconheceu, no entanto, que se verificou uma “viragem duradoura na paisagem política francesa, com a “incontestável vitória da direita republicana” e “o resultado demasiado elevado da extrema-direita”.

A resposta socialista, no entanto, não passa por inflectir caminho, mas por depositar toda a esperança no crescimento da economia. Pois como diziam fontes do Eliseu ao Le Monde, estes resultados não deixam entrever uma vontade no eleitorado de viragem à esquerda, antes pelo contrário.

Concluindo, uma sondagem para a televisão iTelé mostra que 67% dos franceses considera que Manuel Valls sai enfraquecido destas eleições e Marine Le Pen reforçada. Quanto a Sarkozy, curiosamente, apenas 46% acreditam que sai desta votação mais forte.

A posição do ex-Presidente não é assim tão segura na UMP: ele impôs uma lógica eleitoral de não apoiar candidatos da FN nem do PS da segunda volta. Mas obteve esta vitória concorrendo aliado a um partido do centro, a União de Democratas e Independentes. Isto parece dar razão à estratégia de alargamento a outro partido do centro, o MoDem, defendida por Alain Juppé, o seu rival nas primárias para escolher o candidato da UMP às presidenciais de 2017.

 
Marion Maréchal-Le Pen

FN não vingou nem no Sudeste mais à direita, nem no Norte mais social

CLARA BARATA 29/03/2015 - PÚBLICO

Diferenças na retórica do partido dos Le Pen têm-lhe permitido aumentar o eleitorado.

Marion Maréchal-Le Pen, a loura neta de Jean-Marie Le Pen, esperava ser uma das protagonistas da noite. Vaucluse, o departamento do Sudeste francês pelo qual é deputada, era um dos departamentos que a Frente Nacional (FN) mais esperanças tinha de conquistar, pois estas terras provençais foram dos primeiros territórios a renderem-se ao discurso nacionalista do partido. Não conseguiu uma vitória, mas criou um conselho geral ingovernável, onde a palavra da FN terá de ser levada em conta.

“Não baixamos os braços quando se trata de defender o nosso território e nosso país”, afirmou combativa, a mais jovem do clã Le Pen, dada como próxima da linha mais à direita do avô – “Daddy”, como ela lhe chama – que é a que tem vingado nesta zona de França. É no Sul que que se concentram muitos franceses que foram forçados a regressar da Argélia após a independência. Jean-Marie Le Pen, que combateu na ex-colónia, e esteve ligado aos meios anti-independência, tem aí o seu meio natural.

“Houve três etapas na construção eleitoral da FN. A primeira foi a do Sudeste, com a direita radicalizada e o voto pé-negro [a expressão que designa os ‘retornados’ da Argélia], disse ao “Le Monde” o investigador Pascal Perrineau, do Instituto de Ciências Políticas de Paris. Por isso, tradicionalmente, os eleitores da FN do Sudeste são mais à direita, e o Departamento de Vaucluse era apontando como o que o partido conquistaria mais facilmente. Mas houve mobilização dos eleitores da direita tradicional e até do PS suficiente para impedir a maioria da FN.

No Norte e no Leste, os novos territórios que se deixaram cativar pelo discurso mais social de Marine Le Pen, a tia de Marion e líder da FN, o partido avançou entre os eleitores que, nas palavras de Perrineau, usam o seu voto “em protesto contra a sociedade pós-industrial”, que encerrou as grandes fábricas e as minas, e os deixou sem empregos. Muitos vivem “uma ressurgência do nacionalismo ferido”, culpando a União Europeia, a “mundialização”, a imigração, por essa vida que deixou de ter horizontes, e seguem o discurso da Frente Nacional.

“Passámos de Jean Jaurès” a Jean-Marie”, afirmou ao “Le Monde” o dono de uma papelaria em Libercourt, no Departamento do Norte, evocando o nome de um famoso líder socialista, assassinado no início da I Guerra Mundial e o disparar da popularidade da FN naquela zona, pela qual Marine Le Pen passou a candidatar-se. Ali, tal como no Leste do país, o discurso do partido de extrema-direita “insiste na ameaça da ‘mundialização’, com um vocabulário socializante que poderia ter sido usado por George Marchais [dirigente histórico do Partido Comunista Francês, de 1972 a 1994]”, explicou ao “Libération” a investigadora da Universidade de Stanford (EUA) Cécile Alduy.


A diferença de discurso entre Norte e Sul – onde continua influenciado pela descolonização, e procura dirigir-se aos pequenos comerciantes e a centrar-se na imigração – tem permitido à FN adaptar-se e crescer. No Centro e no Oeste, tem também feito conquistas, aproveitando-se da crise rural e das zonas intermédias, diz Pascal Perrineau, onde “a crise rural e das zonas intermédias alimenta o voto frontista de uma população que perdeu as suas referências”.

domingo, 29 de março de 2015

O delírio das PPP no seu esplendor / Barcelos: Factura de 172 Milhões / Contrato ruinoso de água ameaça afundar Câmara de Barcelos


O delírio das PPP no seu esplendor / Barcelos: Factura de 172 Milhões / Contrato ruinoso de água ameaça afundar Câmara de Barcelos
Previsões de consumo irrealistas, decisões sem ponderação e contratos sem estudo tornaram as concessões de abastecimento de água dos municípios num pântano de suspeitas e prejuízos. O Tribunal de Contas anda há anos a denunciar o mal e a pedir ao Governo

De acordo com o “caso-base”, em Barcelos viveriam 122.096 habitantes. Errado: eram apenas 120.391. E estimava-se que o consumo médio rondava os 114 litros/dia, mas, hoje, esse valor está 50,1% abaixo das previsões

Manuel Carvalho / 29-3-2015 / PÚBLICO

A paisagem verde que se estende pelo concelho de Barcelos transmite a sensação de fertilidade e de abundância de água. Mas sob a capa dos prados, das vinhas, dos rios ou dos intermináveis poços particulares, essa abundância agrava o clamoroso fracasso do contrato de concessão da exploração e do abastecimento público de água que a câmara celebrou há quase uma década com uma empresa do universo Somague

O contrato cumpriu as formalidades do Tribunal de Contas e da entidade reguladora das águas e saneamento, mas o seu irrealismo em relação às previsões de aumento da população ou do consumo de água per capita era tão evidente que bastaram quatro anos para que se tornasse um desastre de enormes proporções. Agora, o negócio está desfeito, pedidos de condenação e de nulidade do contrato arrastam-se em tribunal, funcionários e o ex-presidente da autarquia Fernando Reis foram constituídos arguidos por suspeitas de crimes graves, e a Câmara de Barcelos arrisca-se a pagar uma indemnização de 172 milhões de euros que ameaça a sua solvabilidade. “É o meu maior pesadelo”, reconhece Miguel Costa Gomes, o actual presidente da câmara.
Ler com detalhe todas as peças deste negócio é por isso regressar a um tempo de irresponsabilidade, laxismo e desrespeito pelo interesse público que marcou o auge das parcerias público-privadas (PPP). A concessão a privados do abastecimento público de água deu origem a um enorme pântano que já fez e desfez candidatos a presidente de câmara um pouco por todo o país e já levou o Tribunal de Contas (TC) a pedir ao Governo a revisão do regime jurídico dos serviços municipais que o gerem. Em Janeiro deste ano, uma auditoria de seguimento do tribunal acusava o Governo de não ter acolhido a sua orientação, mantendo um regime legal que “não acautela” o interesse público “ao salvaguardar elevadas margens de rentabilidade dos investimentos accionistas de grupos económicos privados”.

Os primeiros passos
As concessões do abastecimento público de água e a gestão do saneamento tornaram-se uma moda depois do ano 2000, mas foi em Paços de Ferreira, Gondomar, Marco de Canavezes e, principalmente, em Barcelos que os contratos atingiram o limiar máximo de desprotecção
do interesse público. Na cidade minhota, o negócio surgiu como uma inevitabilidade e uma boa intenção, mas depressa se transformou num pesadelo. “Nos anos 1990 só havia água e saneamento na cidade, não havia uma estação de tratamento de águas residuais, ia tudo parar ao rio”, explica Fernando Reis, presidente da autarquia eleito pelo PSD entre 1989 e 2009. “E como nós não tínhamos dinheiro para satisfazer as necessidades do concelho, tínhamos como alternativa a concessão, que foi o que fizemos”, acrescenta o ex-autarca.
Até aqui nada de diferente do que acontecia já noutros municípios. Os problemas, porém, começam quando a câmara decide avançar com o concurso público internacional para concessionar a exploração e o abastecimento de água num regime de parceria público-privada. Este passo fez-se de um modo que mereceu a censura do TC. Por duas ordens de razões: por não ter sido precedido de um estudo de viabilidade económica e “por não se ter elaborado o comparador público”, ficando-se “sem meios de saber, como a lei preconiza, se a constituição da parceria públicoprivada que o contrato concretiza é a solução mais adequada”. A comparação seria, na óptica do TC, “uma exigência material que decorre, aliás, do cumprimento do dever da boa administração”.
Com a decisão política tomada, o processo começa a avançar e logo no início surgem sinais de proximidade entre o executivo municipal e a empresa que viria a ganhar o concurso. Documentos colhidos pelo TC ou transcritos no acórdão do Tribunal Arbitral que em 2012 tentou solucionar o diferendo entre a concessionária e a autarquia deram como provados contactos prévios de uma empresa da Somague, a AGS, com os serviços da autarquia, que indiciam um grau de proximidade que eventualmente outros concorrentes não teriam. Um fax de 18/02/2002 dirigido a Perfeita Fernandes, a técnica que geria a área do ambiente do município, pede informações sobre água e saneamento com vista à “obtenção de um modelo que dê resposta às questões levantadas pelo Senhor Presidente da Câmara”. Perfeita Fernandes declararia aos auditores do TC não saber “qual o objectivo do fornecimento dos dados solicitados”, lembrando apenas que cumpriu ordens de Fernando Reis. Mas admitiu que pudessem estar relacionados com a exploração, por parte da AGS em consórcio com a Efacec, da ETAR de Barcelos.

Os mistérios do contrato
Um ano mais tarde, o contrato é lançado e, no relatório de análise das propostas, surge mais um mistério. A parte essencial do relatório foi feita em exclusivo por Perfeita Fernandes, quando a lei determinava a constituição de uma comissão para esse fim. Na teoria, dois quadros dos serviços jurídicos da autarquia foram chamados a integrar a comissão, mas o seu papel foi de simples figurante. Perfeita apresentou parte do relatório “tendo os outros dois elementos se limitado a assiná-lo, nunca tendo havido qualquer reunião daquela comissão para aquele fim”, nota o Tribunal de Contas. Depois, a análise do item “solidez da estrutura financeira e contratual proposta”, que valia 6% na decisão, foi entregue por Fernando Reis, e Perfeita Fernandes limitou-se a juntá-la ao processo. Reis explica o que aconteceu com recurso a experiências anteriores. “Peguei nos relatórios de outros municípios e adaptei-os à nossa realidade”, explica. “Por que razão havia de ter de gastar dinheiro com advogados se eles acabariam por me entregar o mesmo?”, pergunta.
No final de 2003 já se sabia que o consórcio Águas de Barcelos, composto pela AGS (com 75% do capital) e pela empresa de construção local Alexandre Barbosa Borges, tinha ganho o concurso. Faltava redigir o contrato, tarefa a que quer a câmara quer o concessionário eleito se dedicaram depois de Dezembro de 2003. A peça crucial do processo, a definição de um “caso-base” que servisse de parâmetro para eventuais compensações da câmara se houvesse desvios na água facturada, por exemplo, foi completamente entregue ao consórcio. Ou seja, a autarquia abdicou de formular as regras do jogo, embora se tenha empenhado em discutir as que o parceiro privado lhe apresentou. Seriam os números inscritos no “caso-base” que levariam à ruína do contrato e do negócio.
De acordo com os dados inscritos no “caso-base”, em Barcelos viveriam em 2001, o ano de referência para a elaboração dos cenários demográficos e do consumo de água, 122.096 habitantes. Errado: eram apenas 120.391. Previa-se uma taxa anual de crescimento da população em 1%, o que nunca aconteceu — depois de 2007, a população do concelho seguiu a tendência nacional e começou a diminuir em consequência da emigração. Estimava-se que em 2001 o consumo médio por pessoa em Barcelos rondava os 114 litros, um valor que, de acordo com o “caso-base”, cresceria três litros por dia por habitante até 2018, o que se veio a provar ser um delírio — até 2011 o consumo
per capita estava 50,1% abaixo das previsões do “caso-base”.

O custo do “caso-base”
“O contrato não está sustentado em nada, padece de má-fé”, queixa-se o actual presidente da autarquia. O Tribunal de Contas corrobora: “Não se fez nenhum estudo que suportasse” os aumentos de consumo, sublinha o tribunal. Fernando Reis, por seu lado, garante que “se fosse hoje fazia tudo na mesma”, deixando no ar a ideia de que era impossível prever uma queda tão abrupta dos níveis de consumo, que a fixação do valorpadrão obedeceu aos requisitos da legislação e que os seus termos foram aprovados pela entidade reguladora do sector, na época o Instituto Regulador das Águas e Resíduos (IRAR).
Como corolário do “caso-base”, vinham as consequências se por alguma razão as metas desenhadas pelo concessionário e acordadas por Fernando Reis não fossem cumpridas. Se houvesse um desvio de 20% na média de consumo de água prevista no “caso-base”, seria accionada uma cláusula de reequilíbrio financeiro que obrigava a autarquia a responsabilizar-se pela quebra do negócio da concessionária — à partida, nos termos do contrato, a Águas de Barcelos tinha garantida uma taxa de rentabilidade de 10,3% do seu volume de negócios, pelo que, quanto mais facturasse, mais aumentava os seus lucros.
Não foi preciso muito para se perceber que a câmara estava condenada a suportar pesados encargos com um contrato baseado em pressupostos errados. Como diz Miguel Costa Gomes, “a especificidade do município” não foi tida em conta, principalmente a sua faceta rural. Para começar, os habitantes das freguesias torceram o nariz à ideia de que teriam de pagar pela água que consumiam, eles que desde tempos ancestrais abasteciam as suas necessidades através de furos à porta de casa. Para muitos, a ideia de dispor de uma rede de saneamento era atractiva, mas os custos com a instalação de ramais até casa (1500 euros, actualmente) dissuadiu muitos de aderir — apesar de a lei obrigar a ligação doméstica aos serviços públicos sempre que haja redes nas imediações.
Face à reduzida adesão dos barcelenses, a câmara decide entrar em cena. Numa deliberação que mereceu a abstenção do PS, a autarquia dispôsse a assumir metade dos custos da instalação dos ramais e a pagar na íntegra as ligações nos casos de famílias sem recursos. Para Fernando Reis, havia necessidade de garantir o serviço público e, ao mesmo tempo, de salvar o mais possível um contrato condenado a causar avultados prejuízos ao município. A verdade é que, com ou sem ajuda pública, a rede foi crescendo: até final de 2009, a Águas de Barcelos investiu 74,6 milhões de euros para construir 481km redes de água, 458km redes de saneamento, 11.503 ramais de água e 11.505 ramais de saneamento.
Boicote à moda do Minho
Mas se o número de contadores crescia, o mesmo não acontecia com o consumo. Uma grande parte da população usava o sistema público para as suas descargas de águas residuais e continuava (e continua) a usar águas dos poços para cozinhar e tomar banho. A concessionária tinha pesados encargos a gerir os resíduos sem poder facturar pela venda de água. É por isso que se introduz uma alteração destinada a penalizar o não consumo. Se um cliente não utilizasse nenhuma água, pagava 14 euros; mas se consumisse até cinco metros cúbicos, pagava menos do que isso. “Para evitar despesas, os emigrantes mandaram os seus familiares abrir a torneira todos os meses, o que é um enorme desperdício”, lamenta o presidente da câmara.
Nem o financiamento de ramais nem a penalização do não consumo foi no entanto capaz de evitar o desastre financeiro da concessão. Com o aumento do número de clientes que usavam pouco (ou não usavam de todo) a água da rede pública, o consumo per capita ficou cada vez mais longe do previsto. Em 2005, estava nos 112 litros por pessoa/dia; no ano seguinte recuou para 90 litros; e em 2009, cada barcelense consumia 75 litros de água por dia, quando o “caso-base” apontava para 138 litros. Quando este desvio se começa a tornar visível, a câmara dispõe-se a negociar aditamentos e mostra-se receptiva a fazer obras que, pelo caderno de encargos, cabiam à concessionária. Pelo meio, tem também de concordar com sucessivos aumentos de preços que suscitam ainda mais hostilidade à população.
Em 2009, acontece o inevitável: a Águas de Barcelos reclama um aumento imediato do preço da água em 38% e requer a aplicação da cláusula de reequilíbrio financeiro para ser compensada pelo enorme desvio dos consumos de água em relação ao “caso base”. Mas 2009 é um ano de eleições. “Eu não tinha condições políticas para aprovar o aumento do preço”, reconhece Fernando Reis. E ainda menos para avançar com uma compensação para o reequilíbrio financeiro da sociedade. Na campanha autárquica desse ano, a água estava no centro da polémica. Uma carta aberta do PS acusava: “A única cobertura política que Fernando Reis promove é para beneficiar uma empresa privada, permitindolhe agir com impunidade, tratando os cidadãos de Barcelos de forma autoritária e arrogante.” Um cartaz do PS advertia: “Se conduzir... não beba água de Barcelos. Já basta o preço dos combustíveis.” Um outro, precisava: “E tudo a água levou. O preço da água em Barcelos aumentou 80% em cinco anos.”
A questão da água está no princípio do fim do longo reinado de Fernando Reis em Barcelos. Miguel Costa Gomes é eleito com uma diferença de 972 votos, depois de prometer baixar o preço da água, de acabar com o “desrespeito” da concessionária pelos barcelenses e de denunciar uma alegada “má-fé” e “nulidade” do contrato das águas. Depois de chegar à câmara, não tem recuo: tinha de se preparar para uma luta com a concessionária na qual tinha poucas hipóteses de vencer. A Águas de Barcelos recorre, nos termos do contrato, a um tribunal arbitral, formado por dois juízes indicados pelas partes e um juiz presidente por eles cooptado, e perde em toda a linha — o acórdão que a condena foi votado por unanimidade.
Mesmo que no contrato estivesse previsto que as partes se abstinham de recorrer das decisões do tribunal arbitral, Miguel Costa Gomes não se conforma. Protesta contra a impossibilidade de recurso (“todos os contratos desta natureza são assim”, justifica Fernando Reis), queixa-se do facto de a sede do tribunal ter sido fixada em Lisboa (“uma ninharia”, continua o ex-autarca), mantém que o contrato tem vícios que apontam para a sua nulidade e avança para os tribunais administrativos. Em Abril do ano passado, o Tribunal Administrativo do Norte confirmou a sentença do tribunal arbitral e condenou a Câmara a pagar 24,6 milhões de euros pelo reequilíbrio financeiro de 2005 a 2009, 11,8 milhões pelos anos de 2010 e 2011 e 5,9 milhões por ano até ao final da concessão, em 2035. Feitas as contas, a factura que espera a câmara eleva-se a 172 milhões de euros, ou seja, mais de três anos de receitas da autarquia.
Crime, suspeita a IGAL
No meio de todos estes revezes, Miguel Costa Gomes recebeu o apoio dos auditores do Tribunal de Contas, que arrasam o contrato, e de uma inspecção da IGAL (Inspecção-Geral da Administração Local), que em 2011 detecta ilícitos de natureza administrativa, contra-ordenacional e criminal por parte do anterior presidente e da técnica Perfeita Fernandes. O resultado da inspecção é remetido para o DCIAP, que abre um processocrime para averiguar suspeitas de crimes de falsificação de documentos, tráfico de influências, participação económica em negócio, corrupção passiva em acto ilícito. Fernando Reis desvaloriza o relatório e o processo. A auditoria do TC “é uma manobra política do PS”, diz, acusando os seus autores de não o terem ouvido (Reis recusou prestar declarações no edifício da câmara). Depois, quanto ao processo, “isso está parado há quatro anos”. Sobre este impasse, o actual autarca formula um desejo: “Espero que não haja a tentação de deixar prescrever o processo.”
A Miguel Costa Gomes resta apenas a possibilidade de haver uma sentença favorável no Supremo Tribunal Administrativo ou a declaração por parte da justiça criminal da nulidade do negócio. “Podemos chegar ao ridículo de termos de avançar com a indemnização e depois haver uma decisão judicial sobre a nulidade do contrato. Mas aí haverá capacidade para nos pagarem?”, questiona o autarca. Para Fernando Reis, a câmara “está condenada a perder, o que será um enorme prejuízo para os barcelenses”.


Para pagar os valores já em dívida, a câmara precisava de um ano das suas receitas, que rondam os 52 milhões de euros. E depois ficaria presa a um encargo anual de enorme impacto durante anos. Face a esse cenário negro, a câmara está a negociar a recompra da concessão com a Somague, que declarou ao PÚBLICO não querer pronunciar-se sobre a questão de Barcelos. Miguel Costa Gomes, que se reelegeu em 2013 com 46,4% dos votos, diz ter apoio de um banco para realizar um negócio até cem milhões de euros. “O problema é que a concessão não vale cem milhões”, diz. Ainda assim, esse pode ser o cenário mais benevolente para o futuro da autarquia. E a última factura a pagar de um tempo em que as concessões estavam na moda, quando o profissionalismo das empresas impunha severas derrotas ao facilitismo dos organismos do Estado.