terça-feira, 31 de março de 2015

Paulo Rangel e a (má) defesa da sua advocacia

“Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif? Será que acredita naquilo que escreveu? Se acredita, então comece já a publicar as suas declarações de interesses, de rendimentos e fiscais. Dê o exemplo do que, candidamente, prega nesta paróquia. Pode ser que o sigam!”

Paulo Rangel e a (má) defesa da sua advocacia
JORGE NUNES LOPES 30/03/2015 - PÚBLICO

Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif?

No seu artigo de 25 do corrente, neste jornal, o eurodeputado-advogado Paulo Rangel apresenta um discurso, digamos, curioso, ao tentar sustentar o impossível: que ser deputado não acrescenta influência e poder ao exercício simultâneo da advocacia. O seu artigo atenta contra a inteligência do leitor comum – e a dos advogados, em particular.

Pergunta: "se o princípio é o da desconfiança por que razão tem mais interesses 'corporativos profissionais ou particulares' um advogado do que um médico, um dirigente sindical ou um professor?" Diz, a terminar que a "obsessão com os advogados [que são simultaneamente deputados] é incompreensível", concluindo que a questão deveria ser tratada pela regulamentação do lobby, o registo de interesses, a publicidade das declarações de rendimentos e fiscais.

A primeira falácia (instrumento da arte retórica da demagogia) do eurodeputado-advogado consiste em fazer de conta que tanto um médico, um dirigente sindical ou um professor, sendo deputados, se encontram no mesmo pé de igualdade que um advogado-deputado, para rentabilizarem, em proveito pessoal, a informação privilegiada (diria, insider trading legislativo e decisório), o acesso privilegiado a decisões das Administrações nacionais e europeias, o acesso privilegiado a fontes documentais e de know-how técnico-jurídico, o acesso ao mundo subterrâneo dos interesses e decisores que transmuta os ex-governantes e deputados em ricos administradores da banca e de tudo quanto permita dar a aparência de uma honesta relação de emprego. Veja-se, neste jornal, de 26 do corrente, o estranho caso do "irmão Lello", de Miguel Tavares – e veja-se o infindável rol de casos, dos drs. e eng.ºs, que saltitam entre a res publica e a privada, tentando fazer-nos acreditar que, contrariando a sabedoria evangélica, servem bem aos dois senhores…

Porém, pela natureza das funções próprias de um médico, de um sindicalista, ou de um profissional ‘qualquer-coisa’ que não venda know-how técnico jurídico, negócios e assessorias a concursos e contratos com a Administração, não se vê como possa ele retirar vantagem económica do facto de ser deputado simultaneamente ao exercício da profissão. Mas o mesmo não se pode dizer do advogado-deputado: só por inexcedível e falsa ingenuidade se pode colocar este, designadamente quando integra uma grande sociedade de advogados, facturando milhares/milhões à Administração, no mesmo plano do que aqueles.

Aquele discurso de Paulo Rangel – numa retórica de perguntas supostamente demonstrativas de que é a mesma coisa ser-se, digamos, por exemplo dentista-deputado e advogado-deputado – torna-se despudoradamente cínico, na tentativa de tudo igualar. Basta lembra que, historicamente, tem sido evidente o exercício da advocacia ser incompatível com o exercício de muitos cargos políticos e administrativos, p. ex.: vereador, polícia, funcionário dos tribunais, militar, etc. (cfr. o art.º 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados). É assim, justamente, para impedir duas coisas: o cambão, que consiste em o cargo servir para arranjar clientela; e impedir o risco de prejuízo da coisa pública, pela tentação (a ocasião faz o ladrão – diz o ditado) em beneficiar a carreira profissional, em detrimento daquela.

O lamentável naquele artigo é ainda, Paulo Rangel simular-se desconhecedor de que, além do mais, o cargo de deputado/eurodeputado permite-lhe, como advogado, praticar uma concorrência desleal com os advogados demais colegas que, natural e logicamente, não têm acesso à informação privilegiada da Administração. Em rigor, o eurodeputado-advogado pretende fazer de conta que ignora a densidade concreta de que saber é poder…

E são ridículas as alternativas que sugere para tentar legitimar a acumulação da advocacia com o cargo de deputado/eurodeputado: mesmo que fosse instituída a publicitação das declarações fiscais e de rendimentos dos deputados, qualquer profissional conhece dezenas de esquemas de ocultar o produto de negócios ilícitos.

O Direito vive e positiva-se, também, na prevenção de perigos: daí, por exemplo, o crime de corrupção ocorrer, ainda, quando o funcionário, mesmo cumprindo correctamente os seus deveres, aceita receber prendas (cf. art.º 373.º do Código Penal – corrupção passiva para acto lícito).

Finalmente, a "obsessão" dos advogados contra a acumulação não é nova: o Bastonário Júlio Castro Caldas foi, muito antes de Marinho Pinto, um dos mais sérios defensores atacantes do despudor desta acumulação de funções. É que, na verdade, basta ser-se Advogado ou Deputado, de integridade completa e honestidade ético-intelectual em cada papel, para se compreender a necessária separação.

Será que Paulo Rangel é um recém-chegado à advocacia? Ou será um eurodeputado político naif? Será que acredita naquilo que escreveu? Se acredita, então comece já a publicar as suas declarações de interesses, de rendimentos e fiscais. Dê o exemplo do que, candidamente, prega nesta paróquia. Pode ser que o sigam!


Advogado, militante do PSD (por ser um partido liberal…)

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