sexta-feira, 31 de maio de 2019

Contentores, barracas e caravanas: o novo caos urbanístico do Algarve



Contentores, barracas e caravanas: o novo caos urbanístico do Algarve

O Algarve, a primeira região a ter um plano regional de Ordenamento do Território, em 1991, assiste a uma nova vaga urbanística – os contentores, barracas e caravanas residenciais vieram para ficar.

Idálio Revez (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia)  31 de Maio de 2019, 6:00

Esta é a sétima de uma série de reportagens sobre habitação. Acompanhe nos próximos dias o dossier O Estado da Habitação.

Cai o sol no horizonte, as galinhas recolhem à capoeira. João Brás anda de um lado para o outro, atarefado, em busca de milho para dar aos animais no dia seguinte, ao pequeno-almoço. “Deito-me e levanto-me com as galinhas”, diz. O pedreiro – e agricultor nas horas vagas – espera há mais de uma dezena de anos pela legalização da moradia que o próprio construiu, no sítio Vale da Mó, na fronteira do concelho de Olhão com Faro. “Não fui só o pedreiro, fiz também de engenheiro e arquitecto.”

Com a entrada em vigor da segunda geração dos planos regionais de Ordenamento do Território (PROT), em 2007, os autarcas deixaram de poder usar as “razões ponderosas”, uma medida de excepção que permitia aos presidentes de câmara licenciarem construções em zona de Reserva Agrícola Nacional (RAN), locais, em princípio, vedados à edificação. Durante duas décadas, segundo os pareceres assinados pela entidade regional da RAN, foram emitidos cerca de 1300 alvarás de construção, ao abrigo do regime de excepção. Os instrumentos de ordenamento do território fecharam algumas portas, mas mantiveram escancarada a janela aos chamados “direitos adquiridos”. A herdade dos Palmares, Meia Praia (Lagos), foi o palco escolhido pelo então primeiro-ministro José Sócrates para apresentar dez projectos de potencial interesse nacional (PIN), investimento de 1500 milhões de euros, traduzidos na construção de 5400 camas. Nenhum dos potenciais investidores cumpriu as metas a que se propôs.

Lei de Bases: um retrato todos os dias
Portugal tem consagrado na sua Constituição, desde 1976, um artigo que estipula o direito à habitação, o Artigo 65.º. Foi preciso esperar 43 anos para a Assembleia da República discutir, pela primeira vez, uma lei de bases que define os princípios que vão permitir a consagração desse direito.

Esta foi uma das legislaturas em que os temas da habitação mais foram discutidos, com quase 30 iniciativas legislativas em cima da mesa. Durante esta semana, o grupo parlamentar de trabalho da habitação arrancará com a discussão e possível votação final da lei de bases, com projectos de lei do PCP, Bloco e do PS, este último com propostas de alteração também do PSD e do CDS.

A votação final foi adiada para o mês de Junho. O PÚBLICO fez ao longo da última semana, diariamente, vários retratos da habitação em Portugal. Alínea a alínea, pelos pontos que dita o texto constitucional, foi uma viagem pelos velhos problemas por resolver e uma abordagem aos novos problemas que se adensaram pelo facto de a oferta se orientar cada vez mais para o rendimento.

A voz de José Brás, alentejano, perdeu o sotaque da terra onde nasceu, Almodôvar, mas continua agarrado às raízes. “Isto é um monte à alentejana”, salienta, para justificar a linha arquitectónica da casa, edificada numa encosta perto de um ribeiro. “Do lado de lá daquela banda [concelho de Faro] construiu-se. Aqui, ao meu redor [concelho de Olhão], também fizeram vivendas – a minha ficou de fora [da legalidade].” A moradia ficou concluída em 2006, um ano antes da entrada em vigor do PROT. “Fui falar com o presidente da câmara [na altura, Francisco Leal], disse-me que mandava cá a assistente social.” Em causa estava a aplicação das “razões ponderosas” – o instrumento que permitiria ao autarca licenciar a obra, dado não possuir meios para adquirir um lote urbanizável. “Respondi que não precisava de assistente social – só quero ter uma casa para viver e continuar a trabalhar”, enfatiza. Faz-se noite, os porcos recolhem à pocilga, e o pedreiro/ agricultor deita-se preocupado: “Tenho medo que a raposa venha comer as galinhas – já levou mais de uma dezena.”

As figueiras plantadas no quintal já dão sinais de que se aproxima a época dos santos populares. “Pelo S. João tenho aqui uns figos que são uma maravilha”, prevê. Porém, sabe que não vai comê-los sozinho: “Os papa-figos pulam-se na fruta, mal começa a amadurecer, e não desaparecem daqui. Mas não é isso que o aflige. “Vivo sozinho e os pássaros fazem-me companhia.”


Casas sobre rodas

Por toda a região, o número de casas pré-fabricadas, contentores e caravanas, implantadas em zonas de reserva agrícola e reserva ecológica, cresce às vistas e às claras. “Basta ir ao Google Maps e comparar o antes e depois da aprovação do PROT, de 2007”, desafia o responsável regional pela entidade regional da Reserva Agrícola Nacional (RAN), Fernando Vargues, seguindo as imagens das edificações não autorizadas. Junto à estrada de Estoi para Moncarapacho estão instaladas nove caravanas, logo seguidas de mais sete casas pré-fabricadas. Saltando para o outro lado do Algarve, na Fonte Louzeiros (Silves) outras 14 edificações, implantadas em solo rural. Na zona centro, na Ataboeira (Albufeira) repete-se o cenário: 18 habitações instaladas em zona RAN. Para os lados da costa vicentina, por entre matos e árvores, não faltam outros exemplos vindos a público. “Nós não somos entidade fiscalizadora, apenas emitimos pareceres quando nos é solicitado”, diz Vargues, lembrando o que diz o PROT: “É proibida a construção dispersa em meio rural.” Porém, são permitidas “edificações isoladas” na zona do barrocal desde que integradas numa “exploração agrícola economicamente viável”. A mesma medida de excepção aplica-se em parcelas de cinco hectares, se for na zona serrana.

O abutre está de bico virado para a estrada, no sítio do Vale Formoso (Loulé). O animal, esculpido numa peça metálica, encontra-se pousado em cima de uns muros altos que escondem o que se construiu no interior de uma espécie de condomínio de barracas e outras construções precárias. O ladrar dos cães, sempre que alguém se aproxima, afasta os forasteiros. Ao dobrar da curva à esquerda, no limite da linha que o Plano Director Municipal (PDM) define como zona urbana, um cidadão inglês construiu uma moradia que valerá 1,5 a 2 milhões de euros, enquadrada por um enorme jardim. Os vizinhos estão de costas voltadas e vivem em mundos à parte.

Vale Formoso, como o próprio nome sugere, é um dos sítios mais cobiçados da região pelas vistas que daí se alcançam sobre o mar. Por isso, não é de estranhar que, de forma legal ou irregular, as edificações se tenham multiplicado nesta zona utilizando os “buracos” que a lei confere ou a falta de fiscalização permite. A divisão de fiscalização da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR) – a entidade que tem a responsabilidade de inspeccionar o cumprimento do disposto quanto à Reserva Ecológica Nacional (REN) – chegou a ter mais de uma dezena de pessoas, mas está agora reduzida a um técnico. Não será por acaso que foi o Algarve a primeira região do país a aprovar um PROT em 1991, para tentar pôr ordem numa região que cresceu ao sabor dos interesses imobiliários. Na altura, recorde-se, o mar já ameaçava derrubar vivendas em empreendimentos turísticos como Vale do Lobo, com vivendas suspensas nas arribas.

O presidente da CCDR, Francisco Serra, reconhece a “falta de recursos humanos” para exercer todas as competências que lhe estão atribuídas, mas recusa a ideia de falta de capacidade de intervenção para travar a construção de casas ilegais, sejam elas moradias ou simples barracas. “Temos um protocolo de colaboração com o Sepna [Serviço de Protecção da Natureza e Ambiente], que actua de forma eficaz”, enfatiza. No entanto, esta força da GNR não tem competência para embargar construções, limita-se a lavrar os autos. A propósito das edificações que se “afiguram ilegais”, Francisco Serra destaca: “O fenómeno da construção clandestina e da utilização e ocupação ilegal do território sob múltiplas formas está longe de ter o Algarve como exemplo da sua maior expressão.”

O ex-secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades João Ferrão, responsável pelo PROT-Algarve (2007), considera que o povoamento disperso, por si só, não é uma questão irresolúvel: “O problema é quando não está ligado a qualquer actividade produtiva ou aos recursos endógenos.” O actual professor da Universidade de Lisboa, geógrafo, traça o triângulo que considera ser essencial para a sustentabilidade do planeta – sociedade, economia, ecologia. E o que é que nós temos nesta época moderna? “A tal visão moderna achou que a economia prescinde da ecologia, e agora, nos últimos tempos, até prescinde do social.” Sobre a ocupação turística da zona do barrocal comenta: “O encher o barrocal de casas, com pessoas que gostam de ter vista para o mar, é muito interessante para as pessoas que aí vivem, mas isto não alimenta o triângulo economia, ecologia, social.”

A invenção das ruínas
Os planos directores municipais (PDM) permitem construir em zonas REN ou RAN, desde que haja ruínas no local. O princípio serviu às mil maravilhas os interesses de alguns proprietários, que transformaram solo rural em urbano. O antigo chefe das Finanças de Loulé José Cabrita recorda: “Detectámos a simulação de uma ruína no sítio da Cabanita [na encosta acima da cidade de Loulé].” “[Para atestar a existência da suposta casa antiga] arranjaram uma porta velha, instalaram no telhado paus cheios de caruncho e até um zambujeiro (oliveira-brava) foi transplantado para o local.” O que é que falhou? “Os materiais eram actuais e a pedra não era da zona.”

Os lotes de terreno para a construção urbana, até 31 de Dezembro de 1988, refere, “não tinham inscrição material”. O modelo 129, criado pela administração fiscal para prédios urbanos novos, melhorados ou reconstruídos, sublinha, “resolvia quase todos os problemas”. O fisco cobrava os impostos e a câmara emitia as licenças. Assim nasceu uma região que tem a encosta, situada a norte da Via do Infante (VI), “salpicada” de casas com vista para o mar, em solos classificados de REN. Nalguns casos, haveria ruínas que foram reconstruídas e ampliadas, noutros talvez não. No sítio de Alfarrobeira, mesmo por cima da VI, onde ainda existe um moinho de vento desactivado, foi construído um castelo moderno sobre os escombros da casa do moleiro.

A situação actual é bem diferente. As câmaras dispõem de aplicações informáticas que lhes permitem reconstituir o historial da evolução do território desde 1951. Mas quando se fazem construções clandestinas, regra geral, só são detectadas quando há denúncias. O combate ao fenómeno da clandestinidade, sublinha Francisco Serra, “será tão mais eficaz quanto maior for a consciência da sociedade acerca da importância de um correcto ordenamento do território”.

A revisão dos PDM deverá estar concluída até 2021. A luta das autárquicas, tal como já se verificou no passado, vai ser o procurar alargar os perímetros urbanos. A CCDR-Algarve, por solicitação do PÚBLICO, esclarece que vai pôr um travão. “Só para a faixa dos 500 metros da linha de costa, fora das cidades e vilas litorais, a ocupação urbano-turística prevista em planos territoriais vigentes e não executados está estimada em cerca de 20 mil camas”, adverte. Embora a região disponha de 385 mil alojamentos, segundo o INE, para uma população de 451 mil habitantes, continua a faltar casas para pessoas de menores recursos. O arquitecto Nuno Cavaco, em Vilamoura, contrapõe: “O preço dos terrenos inviabiliza a habitação social.” E lembra que há mais vida económica para além do turismo. A renda de um apartamento T1, em Loulé, numa causa restaurada, exemplifica, custa 750 euros/mês. Por outro lado, a aquisição de imóvel de 100 metros quadrados, próximo da praia, na zona de Vilamoura, vai para meio milhão de euros.

João Ferrão remata: “Os PDM têm uma componente estratégica, eu acho que a gente esquece isso. E nós vamos sempre para a questão dos regulamentos. O que vale a parte regulamentar, se eu não tenho uma visão estratégica para aquele território”? Por isso, defende uma “discussão séria do modelo de desenvolvimento que queremos para o território, e moldar ou condicionar os apoios públicos a esse modelo”.

Caravana residencial
Instalar uma caravana residencial em solo agrícola passou a ser uma alternativa para quem não possui outra forma de ter direito a uma casa digna. As dificuldades surgem, sobretudo, quando no sítio não existe ligação à rede eléctrica e água potável. Porém, desde que entrou em vigor a liberalização da distribuição de energia, as coisas tornaram-se mais flexíveis. O regulamento das relações comerciais para o sector energético – supervisionado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) – define as condições do fornecimento de energia destinada ao comércio, indústria, habitação e “outros” fins que podem ser simplesmente uma exploração agrícola. O abastecimento de água, regra geral, faz-se por furos artesianos, cisternas ou depósitos. Assim, nos últimos tempos, o número de stands de venda deste tipo de habitações sobre rodas ou suportadas por pés metálicos não pára de crescer junto à Estrada Nacional (EN), principalmente no troço compreendido entre a Guia-Albufeira e as Quatro Estradas/Quarteira. “Não carece de licença”, proclamam os vendedores.

Numa das raras iniciativas dos municípios em defesa da Reserva Agrícola Nacional, a Câmara de Olhão ordenou a retirada de uma caravana habitacional que se encontrava instalada numa propriedade agrícola. O dono interpôs uma providência cautelar, e o Tribunal Central Administrativo Sul, num acórdão de 14/7/2011, considerou que a estrutura não colocava “em perigo” o potencial agrícola do terreno. A caravana, lê-se no despacho, “encontra-se elevada relativamente ao solo e suportada em pés metálicos que assentam em bases de betão”. O munícipe alegou não possuir qualquer outro local onde possa viver e o tribunal fez prevalecer o direito à habitação, ordenando a suspensão do despacho autárquico. Do ponto de vista da administração fiscal, o código do IMI estabelece, no Artigo 2º, nº.3, que este tipo de bens móveis podem ser considerados “imóveis” decorrido um ano. “Presume-se o carácter de permanência, quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.” Uma vez efectuada a declaração, é-lhes atribuído um número matricial, mas não dá direito à legalização. Por isso, quando alguém vende um terreno rústico, com casa não passível de licenciamento em cima, o comprador leva como “bónus” a habitação, mas não a pode registar na conservatória predial.

O que prevê a Lei de Bases da Habitação
A garantia do direito à habitação pressupõe “a definição pública das regras de ocupação, uso e transformação dos solos”, regras essas que deverão estar inscritas quer na Estratégia Nacional de Habitação, quer no Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) que, diz a proposta de Lei de Bases da Habitação entregue pelo Partido Socialista, “devem ser articulados entre si, garantindo um compromisso recíproco de integração e compatibilização das respectivas prioridades, objectivos e metas, e o respeito das obrigações do Estado em matéria de direito à habitação, desenvolvimento sustentável e coesão territorial”.

A proposta de LBH define alguns aspectos que devem ser seguidos da política de solos, não só mantendo que as restrições especiais ao direito à propriedade privada e demais direitos relativos aos solos devem estar sujeitas "ao pagamento de justa indemnização”, como defendendo que as áreas urbanas de génese ilegal ou núcleos de habitação precária “susceptíveis de reconversão ou regeneração” devem ser alvo de uma “regularização patrimonial e cadastral”.

Ainda no âmbito da política de solos, a proposta socialista prevê que nas “operações de loteamento e operações urbanísticas de impacto relevante”, as cedências gratuitas para o domínio privado municipal, que estão previstas por lei, “podem ser afectas a programas públicos de habitação ou realojamento”.

A proposta de lei é também bem clara relativamente ao direito de preferência que as entidades públicas podem exercer na aquisição de património, referindo que este “não prejudica o direito de preferência dos arrendatários na compra e venda ou dação em cumprimentos do locado onde residam, cabendo à lei estabelecer a respectiva graduação”.
tp.ocilbup@zeveri

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