José Pedro Teixeira Fernandes
Opinião / Europeias 2019
O que está errado nas eleições europeias?
Tal como estão configuradas, as eleições para o Parlamento
Europeu são as principais responsáveis pelo desinteresse dos eleitores.
21 de Maio de 2019, 7:00
1. Comecemos pelo que deveria ser óbvio para toda a classe
política que se lamenta da elevada abstenção: tal como estão configuradas, as
eleições para o Parlamento Europeu são as principais responsáveis pelo
desinteresse dos eleitores. Imaginemos uma eleição onde a maioria dos eleitores
conhece mal, ou desconhece de todo, aquilo em que é suposto votar, onde os
candidatos a chefiar um governo são praticamente desconhecidos dos eleitores e
os temas mais tratados durante a campanha eleitoral pelos partidos políticos
concorrentes não coincidem, minimamente, com o objectivo principal das
eleições.
Absurdo? Bem-vindo ao mundo surreal das eleições para o
Parlamento Europeu. Pode ser observado ao vivo em todos os Estados-membros da
União Europeia até 26 de Maio. Imaginemos, agora, que os actuais “partidos
políticos europeus” — na realidade meros agrupamentos de partidos nacionais —
constavam dos boletins de voto para as eleições para o Parlamento Europeu, em
vez dos partidos nacionais. E que no boletim apareceriam, também, os nomes dos
candidatos de cada “partido político europeu” a chefiar o governo (leia-se
Comissão Europeia). Resultado mais provável: a maioria dos eleitores não conseguiria
identificar correctamente a força política em que pretendia votar.
Uma eleição que, na prática, contém tais distorções acaba
por levar a uma perversão da lógica para a qual foi criada. Leva ao
desinteresse e abstenção ou então a que os eleitores julguem politicamente o
governo nacional. Mas, para isso, já temos as eleições legislativas nacionais.
Assim, nem a União Europeia, nem os Estados-membros, nem a democracia ganham
nada com um acto eleitoral desvirtuado.
2. A primeira entorse nas eleições para o Parlamento Europeu
começa nos partidos nacionais, pois são isso mesmo: partidos políticos com
agendas e objectivos de poder nacionais e uma ocasional agenda europeia — no
caso português, obter mais apoios financeiros da União Europeia (para os mais cáusticos
extorquir fundos). Claro que a retórica política partidária nega essa
realidade, sobretudo quando se aproximam eleições europeias onde desponta o
amor (e também o ódio) à Europa em discursos inflamados.
Ao coro europeísta juntam-se, usualmente, os titulares dos
órgãos de soberania. Mas a realidade é outra, como os eleitores percebem. A
escolha do candidato que vai chefiar a lista para o Parlamento Europeu é feita
pela direcção partidária segundo lógicas de política nacional. Um clássico é
enviar para o Parlamento Europeu um rival incómodo, por exemplo, aquele(a) que
disputou a chefia nacional do partido e perdeu. Outra escolha clássica é a de
uma figura partidária que tenha feito qualquer coisa relacionada com a União
Europeia e que possa ser vista, pelos eleitores, como um especialista na área.
Quanto à maioria dos que integram as listas,
independentemente dos seus méritos, são desconhecidos dos eleitores. A sua
escolha obedece às usuais lógicas internas de clientelismo partidário. (Neste
caso, o problema não é exclusivo das eleições para o Parlamento Europeu.) Mas
há mais. Em democracia, votar numas eleições legislativas é, em grande parte,
um julgamento político do(s) partido(s) que suportava(m) a governação política
anterior. Todavia, para o cidadão comum, a anterior governação europeia e o que
os deputados que integravam a legislatura 2014-2019 fizeram ou não fizeram no
Parlamento Europeu, é basicamente um mistério. Poucos serão capazes de se
lembrar de algum acto político ou legislativo onde o partido e os deputados por
si eleitos tenham tido algum papel. Talvez a directiva sobre os direitos de
autor no mercado único digital seja um raro caso que ficou na memória.
3. Realizar eleições europeias sem existir um povo europeu —
uma condição sine qua non para genuínos partidos políticos europeus — acaba por
transformar-se numa ficção democrática. Como já notámos, em democracia, o voto
do cidadão envolve um julgamento político do governo e do(s) partido(s) político(s)
que o apoiou(aram). É fundamentalmente um veredicto sobre forma como se
governou, ou seja, foi exercido o mandato que os eleitores lhe atribuíram.
Tudo isto qualquer cidadão entende e pode, então, formar o
seu sentido de voto em conformidade. Mas o que vai julgar politicamente o
cidadão nas eleições para o Parlamento Europeu? A Comissão de Jean-Claude
Juncker, com comissários indigitados pelos governos nacionais (e da área
política dos mesmos), à direita e à esquerda? O Partido Popular Europeu, de
centro-direita, que suportou politicamente o “governo” Juncker no Parlamento
Europeu? Mas quantos eleitores irão votar nos partidos de centro-direita (no
caso português no PSD e CDS), porque avaliam positivamente a governação de
Jean-Claude Juncker? E quantos identificam, se é que conhecem, Manfred Weber
com o candidato a presidente da Comissão? O mesmo vale para outras áreas do
espectro político. No centro-esquerda o problema é similar. Quantos eleitores
europeus e portugueses (neste caso, do PS) votam porque rejeitam o legado do
“governo” Juncker e querem escolher Frans Timmermans para chefe da futura
Comissão Europeia? E os votantes nos partidos de esquerda radical ou comunistas
(BE e PCP no caso português) e de outros Estados europeus, sabem mesmo que
estão a votar no Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia e em Nicolas
Cue para candidato à Comissão Europeia?
4. A nível europeu, há coisas que deviam ser claras para
todos. Uma delas é que o aumento de
competências da União Europeia, ocorrido ao longo das últimas décadas, com
importantes transferências de soberania dos Estados-membros para esta, alterou
os processos políticos.
Uma das consequências que daí resultou, e que muitos não
anteciparam, foi a transferência da contestação da política nacional para a
política europeia. Assim, a perda do “estado de graça” da União Europeia é uma
consequência natural — e inevitável — do processo de aumento das suas
competências e poderes. As decisões políticas e legislativas geram, em qualquer
sociedade democrática, crítica e oposição, por vezes de grande intensidade e
até contra as próprias estruturas do Estado.
No passado, essa contestação ficava quase toda no âmbito da
política interna dos Estados. Agora transferiu-se também, em força, para União
Europeia. A razão, como já explicado, é que esta dispõe de um poder decisão
política e legislativa em muitas áreas onde anteriormente só os Estados
nacionais tinham esse poder. E o poder gera resistência e contestação. Pela
forma tecnocrática como a construção europeia surgiu e se desenvolveu criou-se
uma ilusão: a de se poder viver num mundo (a)político que não existe, pelo
menos em democracia — uma espécie de País das Maravilhas de Lewis Carroll sem
Alice e sem a malévola rainha de copas. Os “bons alunos” do Partido Popular
Europeu (PPE) — o clássico centro-direita de poder — e da Aliança Progressista
dos Socialistas e Democratas (S&D) no Parlamento Europeu — o clássico
centro-esquerda —, com a sua tradicional hegemonia, alimentaram a ilusão. Os
lugares que obtiveram para as suas clientelas nas instituições europeias,
duplicando os cargos políticos que escasseavam a nível nacional, deixavam-nos
satisfeitos.
Nesse mundo maravilhoso, a União Europeia aumentava as suas
competências de “soberania”, assumindo poderes que antes eram dos Estados
nacionais. Ao mesmo tempo, os contestatários e os radicais, à direita e à
esquerda, mantinham-se fora, entretidos com a política nacional. Não
importunavam o mundo maravilhoso da política europeia. Exceptuados partidos
menores que ajudavam na imagem de pluralismo, competia-se (quase só) por ser
mais europeísta do que os outros. Quanto aos eurodeputados, tinham o privilégio
de quase ninguém escrutinar o que faziam, ou não faziam, durante os mandatos no
Parlamento Europeu.
5. Esta “Wonderland” europeia está a ruir. Não estamos,
todavia, perante o apocalipse do Evangelho de São João como alguma teologia
europeísta quer fazer crer. Na realidade, esse discurso alarmista ilude o
problema principal: uma eleição que, tal como está configurada, se desvirtua a
si própria nos seus objectivos. Não é por acaso que mais de metade da população
europeia nunca vota (veremos se o padrão se mantém). É o falhanço óbvio de uma
solução que visava superar o défice democrático europeu. Há basicamente duas
maneiras de corrigir esse falhanço.
Uma primeira é voltar à solução anterior a 1979, onde os
deputados que integravam o Parlamento Europeu eram designados pelos parlamentos
nacionais. Acaba, apesar do retrocesso, a ficção de eleições europeias. A segunda é avançar para eleições genuinamente
europeias, o que é uma gigantesca tarefa de criar duas coisas que não existem:
um povo europeu e partidos políticos europeus (para já, temos os incipientes
Democracia na Europa Movimento 2025 — DIEM25 e o Volt Europa). Resta saber se
esta segunda solução é uma mera utopia ou algo politicamente realizável. Mas, a
manter-se o statu quo, é racional que os eleitores adoptem uma de duas
atitudes: irem votar por motivos de política nacional, a favor ou contra o(s)
partido(s) de governo; ou ignorarem estas eleições, pois não compreendem aquilo em que lhe é pedido votar, nem lhe
vêem utilidade.
Quando assim é não espanta que partidos populistas ou
nacionalistas, partidos piratas, personagens cómicos e outros menos cómicos e
bem mais perigosos politicamente, tenham nas eleições europeias um terreno
favorável. Nem que os eleitores, irritados com políticos que os ignoram e tomam
por parvos, a não ser quando as eleições europeias se aproximam, não votem, ou
votem para se vingarem em partidos que não votariam em eleições importantes: as
legislativas nacionais.
Investigador do IPRI-NOVA
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