OPINIÃO
Alguém tirou o tapete a Rui Rio e não foi o Governo
Como foi possível, em primeiro lugar, ao PSD dar um
monumental tiro no pé? Como foi possível, em segundo lugar, à esquerda radical
pôr em causa uma eventual continuação da geringonça depois das legislativas?
5 de Maio de 2019, 7:14
1. A questão não é apenas o espanto: como foi possível? É
também por que é que foi possível. Como foi possível, em primeiro lugar, ao PSD
dar um monumental tiro no pé? Como foi possível, em segundo lugar, à esquerda
radical pôr em causa uma eventual continuação da “geringonça” depois das
legislativas? Aparentemente nada disto tem lógica, sobretudo perante uma
reivindicação encabeçada pela figura que vence por longevidade e demagogia o
concurso da irresponsabilidade sindical (e política) nacional — Mário Nogueira.
Não se tratava de uma exigência social de primeira necessidade (os professores
em Portugal, e em ppc, estão na média dos vencimentos da União Europeia, ainda
que, infelizmente, não estejam na média dos resultados obtidos pelos alunos),
nem de colmatar uma profunda injustiça social — que as há. Eleitoralmente, pode
parecer tentador agradar aos professores, que são muitos, mesmo que
desagradando aos outros funcionários públicos. Mas é só a primeira impressão,
porque, na sua maioria, o mais provável é que não mudem o seu voto nas
legislativas por causa desta súbita “generosidade” que tocou o coração da
direita e da esquerda radical.
2. As razões do PCP e do Bloco não são difíceis de explicar.
Os dois partidos que assinaram por baixo três orçamentos cujo objectivo foi
reduzir o défice até ao equilíbrio, sentiram-se livres para regressar aos
velhos hábitos e às velhas convicções. Mudaram as condições políticas que os
levaram a aceitar a “geringonça”? Dificilmente, quanto ao essencial. Foi uma
questão de sobrevivência que levou o PCP a romper com uma estratégia de 40 anos
que elegeu o Partido Socialista como “inimigo principal”. Mudou, porque tinha
de mostrar aos seus eleitores que podia ter influência sobre as suas vidas,
influenciando a governação. A própria CGTP começava a ver a sua capacidade de
mobilização muito limitada — reduzida quase só ao sector público e empresarial
do Estado, em que os empregos não estavam em causa e era possível a defesa dos
chamados “direitos adquiridos”. Com o desemprego a cair acentuadamente no
sector privado e com a devolução dos rendimentos, não sabe exactamente o que
fazer, nem sequer perante a emergência de um novo tipo de sindicalismo
“antipolítico”, que lhe foge ao controlo. Ontem, Jerónimo só conseguiu recorrer
ao velho chavão: “O nosso compromisso é apenas com os trabalhadores e o povo.”
Depois de ter votado três orçamentos para reduzir o défice, disse não aceitar a
necessidade dessa redução. O destino do PCP ainda não está traçado, mas o
regresso à radicalização não parece a opção mais sensata.
3. O Bloco é outra história. Atribuiu-se a si próprio a
missão de mudar o PS por dentro ou por fora, mesmo que essa missão já tenha
sido tentada por outros e nunca conseguida. Tem a ambição de vir a incluir um
governo liderado pelo PS. Fez, porventura, uma avaliação errada da “relação de
forças”: com o PS afastado da possibilidade de uma maioria absoluta, acreditou
que passava a dispor do estatuto de “king maker” — uma aposta de desfecho muito
incerto, sobretudo em tempos de grande incerteza. Em véspera de eleições, achou
que podia radicalizar à vontade sem qualquer custo político. Quando ouvimos
Catarina Martins dizer que, se há dinheiro para salvar bancos, também tem de
haver para salvar os professores, percebe-se que talvez não tenha apostado no
cavalo certo. Os professores não gozam de uma grande simpatia nacional, para
dizer o mínimo. O Bloco não aprendeu nada com Alexis Tsipras ou com o Podemos.
Como se viu nas eleições em Espanha, os extremos combatem-se com a moderação.
Dificilmente a sua chantagem sobre o PS colherá frutos.
3. Também não há, propriamente, uma surpresa no
comportamento do CDS-PP. O partido de Cristas perdeu qualquer referência
ideológica em favor de uma espécie bastarda de populismo. Já tinha entrado em
total desorientação: numa semana, conseguiu declarar a sua afinidade com o Vox
(extrema-direita espanhola) e defender passadeiras de peões das cores do
arco-íris na Almirante Reis parar agradar aos LGBTI. Cristas, a “defensora do
povo” e de todos os oprimidos, sejam eles os professores, os enfermeiros, os
estivadores, os motoristas, os pensionistas, os doentes, não está a colar.
Cristas, a “verdadeira oposição” a um Governo conspurcado pelos comunistas
também não, como provam as sondagens. Cristas, a “radical” também não — o seu
eleitorado não aprecia. Resta-lhe esbracejar até às eleições. Mas, atenção,
Nuno Melo não disse o que disse sobre o Vox por acaso. São evidentes os sinais
de que o PP está disponível para enveredar pela via do nacionalismo (já tentada
noutras alturas, ainda que sem êxito), como fica demonstrado na campanha das
europeias. Basta estar atento.
4. Falta a verdadeira surpresa, que está na origem desta
crise política. O que levou o PSD a juntar-se à esquerda radical para aprovar
uma medida insensata e injusta, ainda por cima quando a vida lhe parecia estar
a correr um pouco melhor?
Quando foi eleito, Rui Rio prometeu um novo tipo de
liderança, mais rigoroso e mais coerente, que não correria a foguetes, nem
embarcaria em radicalismos de superfície. O que o levou a cortar de uma penada
com esta imagem, que, durante algum tempo, ainda preservou? Há talvez várias
razões. A primeira terá sido a chuva de críticas de boa parte da comunicação
social, acusando-o de não fazer oposição. Ou seja, de não gritar o suficiente,
nestes tempos perigosos, em que a linha de demarcação entre o jornalismo e a
voragens das redes sociais tende a esbater-se. Rio esqueceu-se de que, para
além do discurso mediático-político que funciona em bolha, a sua atitude
agradava a muito boa gente, especialmente ao centro. E também que os resultados
fracos das sondagens teriam menos que ver com decibéis e mais com o razoável
êxito do Governo em várias frentes — e,
em democracia, são quase sempre os governos, não os programas das oposições, o
factor determinante das escolhas dos eleitores.
A segunda razão talvez tenha sido a sensação de embriaguez
momentânea, provocada pela lógica que Paulo Rangel imprimiu à campanha das
europeias — justamente, a do “vale tudo” — e os bons resultados que as
sondagens aparentemente traduziam. Talvez se tenha esquecido que as eleições
europeias obedecem a motivações muito diferentes das legislativas. Nas
primeiras, os eleitores sabem que podem penalizar o Governo sem
consequências — o voto útil conta pouco,
o voto de protesto e o voto ideológico contam mais. Nas legislativas, a lógica
é a oposta.
Mas, pior do que estes eventuais cálculos políticos, foi a
forma como o PSD “matou” qualquer credibilidade das suas propostas políticas,
anulando ao mesmo tempo o legado do Governo de Passos Coelho, na sua versão
“salvar o país do regabofe socialista”. Há outra de que Rio não gosta tanto:
aplicar um programa político neoliberal, que nenhum partido se atreveria a pôr
em prática em Portugal a não ser a coberto da troika. À falta de melhor
argumento, a resistência às boas contas do Governo oscilava entre a tentação de
invocar o diabo (como fez o deputado do PSD na cerimónia do 25 de Abril) e um
exercício de medição da austeridade, numa escala de 1 a 10, aplicada pelo
Governo, tentando provar o oposto: que o Governo praticava mais austeridade do
que a que anunciava ou que Centeno dizia uma coisa cá dentro e outra lá fora.
Compreendem-se as dificuldades do PSD perante um governo que equilibrou as
contas públicas e devolveu rendimentos. Poderia tê-lo criticado, por exemplo,
por ter devolvido rendimentos demasiado depressa (Passos considerava que os
cortes eram irrevogáveis para garantir a competitividade da economia), em vez
de dar prioridade ao investimento ou à redução da carga fiscal sobre as
empresas. Tudo isto faria sentido. Alinhar com o Bloco, o PCP e o PP para oferecer
aos professores um benefício injusto e injustificado não passaria pela cabeça
de ninguém. Alguém lhe tirou o tapete? Candidatos não faltarão. E nem vale a
pena acusar António Costa de se aproveitado da situação. O que é que esperavam?
Palmadinhas nas costas?
5. Só o Presidente ainda pode tentar enfraquecer o Governo,
forçando-o a ficar a queimar em lume brando até Outubro. Para Marcelo também se
trata de uma estreia: lidar com uma situação em que não é ele o protagonista.
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