(…)“Eu acho importante que os governos controlem os níveis
de imigração, porque, ainda que seja benéfica, se ela (imigração) acontece
rápido demais as pessoas ficam desorientadas, e isso gera uma reação política.
Isso aconteceu no Reino Unido com o Brexit (saída do país da União Europeia):
foram tantas pessoas se mudando para o Reino Unido em um período de tempo tão
curto, que muita gente nascida lá sentiu que estava perdendo o controle de seu
próprio país.”
Francis Fukuyama
Francis Fukuyama: 'O desprezo pelas elites é perigoso, toda
sociedade precisa delas'
Paula Molina Do Chile para a BBC News Mundo
18 maio 2019
Ele se tornou uma espécie de celebridade acadêmica quando
anunciou, há 30 anos, "o fim da história", como a ideia de que o
mundo havia encontrado sua forma mais razoável de organização social: a
democracia liberal acompanhada do livre mercado.
Mas os tempos mudaram. Hoje, Fukuyama vê com preocupação o
avanço da ultra direita, do nacionalismo e dos populismos, e aborda essas
questões em seu mais recente livro: Identidades: A Exigência de Dignidade e a
Política do Ressentimento.
Nesta entrevista concedida à BBC News Mundo (serviço em
espanhol da BBC) no Chile, o acadêmico explica como líderes autoritários ou que
se descrevem como apolíticos se conectaram melhor com as classes trabalhadoras
do que os movimentos de esquerda, e por que certos grupos tradicionalmente
dominantes, como os brancos nos Estados Unidos, hoje reivindicam uma condição
de "vítimas".
BBC News - Em O Fim da História (ensaio publicado em 1989 e
que virou livro em 1992), o sr. dizia que a democracia liberal, acompanhada
pelo livre mercado, era a única opção política razoável e foi considerado um
forte defensor deles. Como sua perspectiva política mudou nos últimos anos?
Francis Fukuyama - Bom, eu ainda sou um defensor da
democracia liberal e gosto dos mercados livres, mas acho que, em muitos
sentidos, eu me movi para a esquerda por alguns bons motivos. Acredito que nos
anos 2000 as duas grandes catástrofes que aconteceram foram, primeiro, a
invasão americana no Iraque e, depois, a crise financeira, e ambas foram o
subproduto de ideias conservadoras que foram levadas ao extremo e levaram a
resultados muito ruins. Isso exigia que eu repensasse...
Eu também acredito que a globalização em geral tem sido
muito bem sucedida em muitos aspectos, em termos de redução da pobreza em
muitas partes do mundo, mas que também produziu um nível mais alto de
desigualdade em muitos países, incluindo os Estados Unidos. Isso requer um
remédio. E creio que isso é provavelmente oferecido melhor pela esquerda do que
pela direita.
É por isso que eu acredito que, depois da crise financeira
de 2008, quando o apoio aos populismos de esquerda deveria ter aumentado, o que
foi obtido, pelo contrário, foram populismos de direita cuja narrativa
explicava melhor a situação econômica das pessoas da classe média, dizendo, por
exemplo, que a elite, permitindo altos níveis de imigração, conspirava para
tomar seus empregos.
BBC News - O sr. vincula este fenômeno ao sentido de
identidade: afirma que as pessoas querem e precisam ser vistas, primeiro, como
iguais, mas que a mesma necessidade pode se tornar um desejo de serem
percebidas como superiores. Como se dá esse processo?
Fukuyama - Eu acredito que é uma espécie de tendência
natural. Todos queremos ser reconhecidos como iguais e ficamos muito indignados
se somos considerados inferiores aos outros. Mas isso logo se traduz em uma
demanda para ser reconhecida como especial ou até melhor. Creio que foi isso o
que aconteceu, por exemplo, com muitas pessoas brancas nos Estados Unidos que
ouviram histórias de vitimização de afro-americanos, de mulheres, de gays e
lésbicas.
E a certa altura eles dizem: "e em relação à gente?
Todas essas pessoas estão recebendo algum privilégio. As elites as estão
colocando diante de nós. Mas nós também não estamos indo tão bem. Nós também
somos vítimas". Mas eles são membros da comunidade racial dominante e,
portanto, sua reivindicação de serem apresentados como vítimas é muito menos
poderosa moralmente do que a dos grupos minoritários.
A raça ou a etnia da imigração não é a coisa mais
importante: é a sua integração...
Eu acho importante que os governos controlem os níveis de
imigração, porque, ainda que seja benéfica, se ela (imigração) acontece rápido
demais as pessoas ficam desorientadas, e isso gera uma reação política. Isso
aconteceu no Reino Unido com o Brexit (saída do país da União Europeia): foram
tantas pessoas se mudando para o Reino Unido em um período de tempo tão curto,
que muita gente nascida lá sentiu que estava perdendo o controle de seu próprio
país.
BBC News - O sr. também tem alertado que vê atualmente uma
diminuição no apego à democracia, algo que pode ser percebido na eleição de
líderes que não hesitam em se apresentar como autoritários, ou totalmente
apolíticos. Que riscos o sr. vê ali?
Fukuyama - É muito perigoso. Você não tem um sistema
democrático se as pessoas não acreditam nele. Acho que o que aconteceu é que há
uma grande decepção com a qualidade do governo em muitas democracias,
particularmente em relação à questão da corrupção, porque às vezes a democracia
é a cura para a corrupção, mas às vezes é também a fonte da corrupção.
Os líderes democratas precisam ser eleitos e, às vezes, a
maneira mais fácil de ser eleito é subornar os eleitores dando coisas a eles,
ou dando cargos ou nomeações aos seus aliados políticos e, portanto, muitas
democracias não são capazes de prestar um serviço público de maneira efetiva.
Foi assim que as coisas começaram no Brasil: foi um protesto
pelos ônibus e pelo preço das passagens, e pela corrupção nos serviços de São
Paulo.
A partir daí surgiu um movimento político para acabar com a
corrupção que mais tarde se viu envolto em uma luta entre a esquerda e a
direita. Foi isso que levou Jair Bolsonaro ao poder: a percepção de que toda a
elite política no Brasil era altamente corrupta.
BBC News - Hoje existe uma tendência a desprezar as elites,
seja porque elas se beneficiaram da globalização, enquanto outras pessoas não
tinham as ferramentas para fazê-lo, ou porque tendem a colocar as elites
políticas como corruptas. Como essa situação se equilibra?
Fukuyama - É perigoso, porque qualquer sociedade precisa de
elites, ou de pessoas com a educação e as habilidades para fazer com que a
sociedade funcione. E muitas vezes esse desprezo não combina com uma
democracia. Em primeiro lugar, as próprias elites às vezes cometem erros. Às
vezes elas estão isoladas da opinião pública. Às vezes elas não entendem as
consequências das opções que recomendam.
Essa foi uma das coisas que aconteceram com o livre
comércio. Porque quase todos os economistas disseram que o livre comércio era
bom. Mas, de fato, em alguns países ele estava prejudicando os trabalhadores.
Então foram anunciadas compensações. Mas a compensação nunca chegou.
E um dos seus efeitos foi essa grande reação contra a
globalização e contra as elites que a impulsionaram. A elite precisa estar
conectada com o povo.
A outra coisa que acontece é que as pessoas hoje estão mais
bem educadas e, devido ao boom da Internet, têm acesso direto à informação, de
modos que antes não existiam. No início todos comemoramos, porque isso
significava que a informação era mais acessível, mas isso também significava
que a desinformação era mais acessível.
Antes você tinha editores, verificadores de dados e
jornalistas capacitados profissionalmente para analisar as histórias antes de
publicá-las. Agora, qualquer um pode postar o que quiser na internet sem
verificar.
E isso tem se transformado em uma espécie de arma de guerra
política que também retroalimenta a percepção de que você não pode acreditar em
nada, que nada é realmente certo. E isso está enfraquecendo a base de
conhecimento compartilhado necessária para se ter um sistema político
democrático.
BBC News - Por que o sr. acha que sua ideia do "fim da
história" impactou tanta gente?
Fukuyama - Grande parte da reação ao "fim da
história" se baseou em uma interpretação errada do sentido da frase: não
queria dizer que as coisas deixariam de acontecer de repente. Na realidade eu
falava sobre se existia uma alternativa real à democracia liberal como forma
superior de organização social...
Acho que o artigo correspondeu a uma grande mudança que
estava acontecendo na política mundial, porque foi publicado poucos meses antes
da queda do Muro de Berlim e deste grande avanço da democracia na Europa
Oriental e nos antigos governos comunistas, que logo se expandiu pela América
Latina, pela África e pela Ásia.
Direito de imagem Getty Images
Image caption Fukuyama observa que até países autoritários
como a Rússia de Vladimir Putin ainda sentem que têm que passar pelo ritual das
eleições
BBC News - Aqueles eram tempos de esperança em muitos
lugares. Como o sr. descreveria esta época?
Fukuyama - Eu acho que é importante não ser excessivamente
pessimista sobre o que está acontecendo agora. A democracia tem sofrido um
revés.
Várias democracias têm avançado na direção errada, mas ainda
essa ainda é a forma dominante de organização no mundo, e até países
autoritários como a Rússia de (Vladimir) Putin ainda sentem que têm que passar
pelo ritual das eleições porque não têm uma forma alternativa de legitimidade
para oferecer em substituição à democracia como forma de governo.
Então, nesse sentido, acredito que a democracia ainda é uma
ideia muito poderosa e continua a ser a principal ideia para nos organizarmos
politicamente hoje no mundo.
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