Cidadãos ponderam travar construção de prédio da Portugália
nos tribunais
A ausente sempre presente na discussão foi a câmara de
Lisboa ainda que lá tenha estado o seu vice-presidente, que se manteve em
silêncio. Projecto está em discussão pública até 18 de Junho e, caso se
mantenha como está, uma associação de moradores pondera avançar com uma acção
judicial.
Cristiana Faria Moreira
22 de Maio de 2019, 8:41
Foram mais de quatro horas de um debate aceso em que ficou
claro que os moradores da zona não querem ver construído um prédio com 16
andares no quarteirão da Portugália, em Lisboa. Se se mantiver como está a
proposta de construção do edifício com 60 metros ao lado da antiga Fábrica de
Cerveja, um colectivo de moradores de Arroios pondera avançar mesmo para os
tribunais para tentar travar a obra.
Luís Castro, morador em Arroios há 53 anos, e membro do
colectivo Vizinhos de Arroios deixou clara essa intenção. “É como meter o
Rossio na rua da Betesga”, disse, criticando a volumetria do prédio, tendo em
conta a largura da avenida. É por isso que em cima da mesa desta associação,
que integra um colectivo maior, os Vizinhos de Lisboa, está o recurso às vias
legais para impedir o avanço do projecto.
Foi a segunda sessão de um debate público convocado pela
autarquia, onde esta terça-feira, no Mercado Forno do Tijolo, em Arroios, se
discutiu um projecto que tem dado polémica porque inclui a construção de um
prédio de 60 metros, incluída numa obra que pretende a requalificação daquele
quarteirão que hoje está devoluto. O projecto tem parecer positivo dos serviços
de urbanismo da câmara, mas terá ainda de ser votado pelo executivo municipal.
O que os arquitectos propõem é a construção de uma torre
assente num bloco – uma espécie de L ao contrário, que é o objecto da
discórdia. O principal argumento dos arquitectos é o de que a construção em
altura permitirá ganhar espaço público. José Mateus, do gabinete ARX, que
desenhou a proposta, insistiu na ideia de que esta é “única oportunidade para
criar espaço público” em dois quilómetros de avenida. Mas que espaço público é
este? São cerca de 3000 metros quadrados, segundo disse, que, da forma que
estão desenhados, criarão “espaços ajardinados — dois grandes canteiros e de
atravessamento” para a rua António Pedro, e onde se poderão, por exemplo,
colocar esplanadas. O paisagismo está entregue à empresa NPK, que ganhou o
concurso para as obras na Praça de Espanha, que propõe ainda que as coberturas
dos novos blocos sejam cobertas com vegetação.
No entanto, o argumento não colheu junto da maioria dos
munícipes que intervieram na sessão e que se queixaram da sombra que será
criada pelo novo edifício, temendo o seu impacto se for visto de miradouros
como o da Penha de França.
Os moradores deixaram claro que não estão contra a
construção naquele terreno, que é de resto um espaço de insalubridade há anos,
mas admitem que a opção pelo edifício de 60 metros é “desenquadrada” de todo o
ambiente da zona. “Existem alternativas. Não tem de ser um espaço fechado ou um
buraco aberto com uma torre de 16 andares”, sublinhou Leandro Ribeiro, morador
de Arroios.
“Aquela torre de 16 andares não entra na cabeça de ninguém.
Os arquitectos dizem que defendem a cidade, mas o que está aqui em causa é a
defesa dos interesses do promotor”, defendeu Joaquim Camacho, que tem um
apartamento num prédio à frente do quarteirão, sublinhando a sombra que este
fará sobre o seu prédio, caso a construção avance.
Perante a especulação imobiliária dos últimos anos, uma das
questões mais levantadas pelos munícipes foi se aquele empreendimento será de
facto dirigido às classes médias. O representante do promotor, José Gil,
explicou que em cima da mesa estão 85 habitações para venda e um programa de
arrendamento dirigido a jovens e idosos. “Quando falamos de programas de
arrendamento toda esta diversidade dos diferentes usos é o que permite a um
empreendimento garantir a sua sustentabilidade”, disse, não avançando contudo
com valores de quanto custarão essas casas e rendas.
"Decisão política"
Durante todo o debate, as atenções voltaram-se para a câmara
de Lisboa, que se manteve em silêncio, com os munícipes a pedirem que a decisão
final do projecto não seja uma “decisão política” e se pense nos moradores.
Para aquele quarteirão, que confina entre a Almirante Reis, a Rua António Pedro
e a Rua Pascoal de Melo, esteve já aprovado um projecto em 2004. O alvará de obras
foi emitido em 2007 e as obras ainda chegaram a arrancar, com algumas
demolições, mas pararam em 2009. O promotor, o Fundo Sete Colinas, gerido e
representado por Silvip – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento
Imobiliário, não quis continuar com o projecto e promoveu um novo concurso, em
2016, no qual o gabinete ARX foi o vencedor.
O director do Departamento de Projectos Estruturantes da
autarquia, Eduardo Campelo, garantiu que o projecto “segue todas as
determinações do Plano Director Municipal (PDM)” e explicou que o debate
público existe por causa da aplicação de um artigo do PDM que permite a
utilização de créditos de construção — na prática se o promotor se comprometer
a criar mais oferta de estacionamento para os residentes, se integrar conceitos
bioclimáticos e de eficiência energética ou criar e infra-estruturas ou espaço
público, o município permite a construção de mais área —, que, neste caso,
permitirão a construção de mais 11 mil metros quadrados.
Questionado sobre a rapidez com que o projecto foi apreciado
— terá dado entrada no início do ano —, Eduardo Campelo justificou que como
houve já um projecto aprovado para os terrenos, havia conhecimento sobre o
mesmo. “O processo não se iniciou em Janeiro. Nós já conhecíamos [o processo].
O prazo poderá parecer muito curto, mas havia conhecimento [do projecto]”,
disse.
"O edifício vai ser um ovni naquele espaço"
Voltando à discussão sobre o espaço público que será criado,
o arquitecto Tiago Mota Saraiva sublinhou que o que os arquitectos estão ali a
tentar criar é uma espécie de “praça pública” como a da sede da EDP que “não é
um espaço público” ou, pelo menos, não é utilizada como tal.
Luís Castelo, também morador em Arroios, sugeriu que fosse
criado um jardim — o Jardim Portugália —, uma vez que faltam de facto espaços
verdes, de descompressão, naquela zona da cidade.
Quanto à sombra que será criada pelo novo edifício sobre os
prédios adjacentes, José Mateus respondeu que esta é “dinâmica” e que os
prédios em volta não sofrerão muito com isso, uma vez que a Almirante Reis está
voltada a Sul. “Os atravessamentos que criamos favorecem o aparecimento de luz
e planos de reflexão da incidência solar”, acrescentou.
No que respeita ao impacto das vistas dos miradouros, o
arquitecto repetiu que o impacto gerado pela obra lhes parece “bastante
aceitável” e que é sempre bom ver “novos elementos contemporâneos” inseridos na
paisagem, já que “a cidade é um organismo vivo”.
“Eu ainda não consigo entender como é que esta volumetria se
insere nesta paisagem. Este projecto entra como um ovni naquele espaço”,
referiu, por sua vez, Miguel Pinto, morador em Arroios, e membro do entretanto
criado Movimento Stop Torre 60m Portugália, que lançou uma petição contra a
construção da torre que, neste momento, ultrapassou as 1100 assinaturas.
“Quando eu olho para o miradouro das Necessidades e vejo o hospital que meteram
lá em baixo... Aquela vista já não existe, nem vai continuar a existir”,
continuou Miguel Pinto, sugerindo à autarquia a elaboração de um plano de
pormenor para a Avenida Almirante Reis que junte nessa discussão quem já
estudou a rua, arquitectos e urbanistas.
“Para que é que serve o PDM se agora vale tudo?”
Sara Carvalho Fernandes, engenheira do ambiente, criticou o
facto de toda a área de construção ser impermeável, tecendo ainda várias
críticas sobre como todo o processo foi conduzido e sublinhando que as
“necessidades reais” da população não foram ouvidas. “Há uma ideia de cidade
muito conceptual, mas não me parece ter havido um levantamento das necessidade
reais da população do bairro”, disse. E criticou ainda o regime de excepção
levantado para este projecto. “Para que é que serve o PDM se agora vale tudo?”
E deixou uma crítica ao que o promotor chama de opções para
a classe média. “O co-living é um conceito que está muito na moda, que está a
ter muito sucesso na Europa Central, e existe porque as pessoas estão cada vez
mais pobres”, frisou.
Os arquitectos assumiram que há pontos do projecto que
poderão ser afinados depois deste período de consulta pública que estará aberta
até 18 de Junho e que pretendem que seja feito mais um debate, desta vez na
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa.
No final do debate e depois das críticas terem estado
apontadas à autarquia pela forma como geriu o projecto, nem o vice-presidente,
João Paulo Saraiva, nem a presidente da Junta de Arroios, Margarida Martins, se
quiseram pronunciar sobre o mesmo. Aos jornalistas, a autarca apenas disse o
que já dissera no início do debate, a de que estaria atenta a tudo o que fosse
dito pelos munícipes. Uma coisa é certa: o debate em torno da “torre” da
Portugália está longe de ter terminado.
tp.ocilbup@arierom.anaitsirc
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