Câmara do Porto quer preservar a única casa de Raul Lino na
cidade
Promotor de projecto que previa demolição da casa foi
notificado da intenção de indeferimento e ficou de rever a proposta de modo a
mantê-la de pé.
Abel Coentrão
Abel Coentrão 27 de Maio de 2019, 8:11
A Câmara do Porto considera importante manter de pé aquela
que será a única casa de Raul Lino na cidade, e notificou o promotor de um
empreendimento que previa a demolição deste edifício de que indeferirá o
projecto, se ele não for alterado. A posição foi assumida pelo vereador do
urbanismo, numa reunião com os interessados, após um parecer da Divisão de
Património Cultural do município, que alertou para a importância da preservação
da moradia, ainda que esta não esteja classificada.
Construída nos anos 30, a casa situada no gaveto entre a Rua
de Ciríaco Cardoso e a rua de Carlos Dubini, perto da Avenida da Boavista, não
possuiu, de facto, qualquer estatuto de protecção, apesar de a autoria do
projecto estar já comprovada desde 2014, altura em que a arquitecta Carla
Garrido de Oliveira a descobriu, durante o trabalho de campo para a sua tese de
doutoramento. Mas a denúncia pública, pelo Forum Cidadania Porto, de que a sua
demolição estaria iminente, caso fosse aprovado um projecto de construção de
seis andares/moradias no terreno, parece ter alterado o destino deste
património.
Num primeiro momento, a relevância histórica da casa escapou
à Divisão de Urbanismo do município, que num primeiro parecer, não viu qualquer
impedimento à pretensão da empresa WaterSucess, que cumpre as normas
urbanísticas em vigor, apesar de ter sido “constatado o interesse e qualidade
arquitectónica da edificação existente”, assume-se na proposta de decisão de 28
de Março em que, já perante um parecer da Divisão de Património Cultural, o
técnico responsável pelo processo revê a sua posição e propõe o indeferimento
do projecto.
“O PDM em vigor não prevê na sua Carta de Património que
integra a Planta de Ordenamento a existência de qualquer imóvel de interesse
patrimonial no local objecto do presente pedido de licenciamento, nem sequer a
integração do prédio em áreas com interesse urbanístico e arquitectónico, áreas
de potencial valor arqueológico ou espaços verdes com valor patrimonial”,
lê-se, como justificação, no novo parecer, produzido um mês após a denúncia
pública do caso, no qual é explicado que a posição anterior “reflectiu não só a
ausência de disposições regulamentares que permitissem a preservação [da casa],
mas também a ausência de informação nos serviços relativa ao contexto histórico
e arquitectónico da referida edificação” cujo estado de degradação “não permite
observar todas as suas características”.
A salvação chegou, assim, de dentro do município, com
impulso exterior. Apesar de a denúncia pública ter sido feita pelo Forum
Cidadania Porto, grupo que tem estado particularmente atento ao destino de
várias edificações “reabilitadas” um pouco por toda a cidade, é à associação
Ndmalo Ge - Núcleo de Defesa do Meio Ambiente de Lordelo do Ouro – Grupo Ecológico,
que os serviços do Urbanismo imputam a reclamação que deu origem a uma
apreciação do projecto por parte da Divisão Municipal de Património Cultural
(DMPC). Que, quando chamada a intervir, colocou em cima da mesa um argumento
óbvio em favor da protecção desta casa. A sua “raridade” enquanto obra única,
na cidade, de um dos maiores nomes da arquitectura do século XX.
“Acresce a esta consideração a circunstância de este
edifício ter sido publicado no livro de Raul Lino sob o título ‘Casa num
subúrbio do Porto’, onde [o arquitecto] apresenta os desenhos das plantas e uma
perspectiva. Assinala-se também que não é por um edifício não estar presente na
listagem sintética dos valores patrimoniais do PDM do Porto, que possa ser
objecto de demolição, pois outros aspectos são relevantes para a análise e
posterior decisão, como valores de conjunto e de acompanhamento, ou outras
considerações sobre aspectos da memória cultural dos portuenses, fundamentos
que devem sempre estar presentes no âmbito dos enquadramentos urbanísticos e
arquitectónicos que configuram as acções de licenciamento”, escreveu a DMPC.
Indo mais longe, os técnicos da mesma divisão consideraram,
“analisando a proposta arquitectónica para o local e atendendo à amplitude do
lote (parcela) existente”, que “parece ser possível a concretização de um bom
projecto de arquitectura, mantendo (com eventuais alterações pontuais) o
edifício do Arq. Raul Lino, deixando espaços de intervalo entre o edifício
preexistente e as possíveis construções que irão definir a esquina de um lado,
e uma nova construção sobre a Rua de Carlos Dubini do outro lado.” E foi esta
proposta que acabou por ser colocada em cima da mesa já em Abril pelo vereador
do Urbanismo, Pedro Baganha, numa reunião com o novo promotor daquele empreendimento,
a FMO Unipessoal, que comprou os direitos à Watersucess. O novo dono, segundo a
autarquia, ficou de analisar a situação, mas o processo não teve qualquer
desenvolvimento, para já.
O indeferimento do projecto foi proposto com base nas
disposições do Código Regulamentar do Município. Que, no artigo B-1/4.º, que se
atém a “condicionamentos arqueológicos, patrimoniais e ambientais”, explicita,
no seu número 1, que “o município pode impor condicionamentos ao alinhamento, à
implantação, à volumetria ou ao aspecto exterior das edificações, assim como à
percentagem de impermeabilização do solo ou à alteração do coberto vegetal, com
fundamento na preservação ou promoção dos valores arqueológicos, patrimoniais e
ambientais da área objecto de intervenção e da Cidade no seu conjunto”.
O número dois do mesmo artigo refere que “o município pode
impedir, com fundamento em condicionantes patrimoniais e ambientais devidamente
justificadas, a demolição total ou parcial de qualquer edificação, bem como de
espécies arbóreas ou arbustivas de inegável valor botânico e paisagístico para
a cidade”. Argumento que, a ser acolhido superiormente, pode salvar uma casa de
Raul Lino, para satisfação da arquitecta que, no âmbito das pesquisas para o
seu doutoramento, a tinha descoberto há cinco anos. Carla Garrido de Oliveira
levou na sexta-feira passado este exemplo para o sexto Forum Internacional do
Património Arquitectónico, que decorreu na Batalha.
O tema da defesa do património modernista, que pertence a
“um tempo sem tempo”, como o definia um dos oradores, João Paulo Rapagão,
esteve em destaque em várias intervenções e num debate no qual participou
também a arquitecta Ana Tostões, do Comité Internacional para a Documentação e
Preservação de edifícios sítios e bairros do movimento modernista (Docomomo). E
o debate acontece num momento em que, na pressão imobiliária para a
reconstrução de edifícios no Porto, se salva um raro trabalho de Raul Lino, mas
se deixa demolir, depois de desclassificação, uma obra de um outro autor do
início do século, Francisco Oliveira Ferreira.
O desaparecimento da casa na Rua de Pinto Bessa é apontado
por José Pedro Tenreiro, historiador de arquitectura e membro do Forum
Cidadania Porto, como demonstrativo de uma “preocupante falta de estratégia” do
município em relação ao património construído. O arquitecto recorda que a obra
que acabou por ser demolida tinha chegado a fazer parte da carta de património
da cidade, foi de lá retirada e desapareceu, apesar de, na sua opinião, ter
elementos arquitectónicos mais importantes do que esta obra de Raul Lino - cuja
salvaguarda, se se vier a concretizar, saúda - e de o próprio entorno
urbanístico ter sido ajustado para enquadrar pelo menos a permanência da
respectiva fachada.
Hélder Pacheco defende inventário actualizado de edifícios
intocáveis
O historiador Hélder Pacheco defendeu esta quinta-feira a
elaboração de um inventário dos edifícios de interesse patrimonial no Porto
para evitar a destruição de imóveis como a histórica moradia de Pinto Bessa que
foi recentemente demolida. "O que era preciso era fazer rapidamente um
inventário da arquitetura portuense, rua a rua. Há um "masterplan"
que a SRU [Sociedade de Reabilitação Urbana] elaborou em função das casas
habitadas e desabitadas, era preciso fazer outro das habitações intocáveis,
digamos assim", afirmou em declarações à Lusa.
Hélder Pacheco recorda que a primeira vez que foi feita
alguma coisa nesse sentido foi na rua Álvares Cabral, que foi classificada de
uma ponta a outra, apesar de já lá haver "atentados". O historiador
considera, contudo, que nos últimos 20/30 anos, do ponto de vista do
património, o Porto "não se pode queixar", apesar de "aqui e
ali" ter havido algumas intervenções "menos felizes".
"A Foz Velha foi protegida, o que foi uma grande
conquista. O Farol de São Miguel está finalmente a ser recuperado, as igrejas
do centro histórico foram todas reabilitadas e têm sido dados passos gigantesco
em matéria de património, veja-se o caso da Torre dos Clérigos, que é um
sucesso", defendeu. Ainda assim, o historiador considera que a demolição
de uma moradia de 1914 da autoria do arquitecto Francisco de Oliveira Ferreira
que, como noticiou a Lusa, até 2005 constava do Inventário Municipal e que
"subitamente" foi retirada do mesmo, "é lamentável".
"O arquitecto em questão é um arquitecto de referência,
autor de edifícios como a Câmara de Gaia ou o edifício dos Fenianos, e esta
moradia de Pinto Bessa não tinha forçosamente de ser demolida. Pinto Bessa
precisava de ter um arranjo urbanístico - arborizada, com passeios mais largos
- e a função da moradia podia ser conservada, ainda que para outros fins, mas
mantendo os elementos arquitectónicos", defendeu.
Já quanto à demolição do jardim centenário nas traseiras do
Cinema Trindade, para onde está prevista uma unidade hoteleira, Hélder Pacheco
desvaloriza a questão, sublinhando que a área em questão "não tinha
categoria" tendo em conta a envolvente. O historiador considera ainda que
também o caso da Quinta do Vilar, junto ao Palácio de Cristal, que esteve em
vias de proteção, e que está a ser transformada num empreendimento de luxo que
contempla a remodelação do palacete centenário e a construção de 43 novos apartamentos,
não é "grave", uma vez que a moradia está a ser reabilitada para
habitação, algo que se vê em muitos países da Europa.
Já Germano Silva, que foi doutor Honoris Causa pela
Universidade do Porto, lamentou, em declarações à Lusa, que se "esteja a
atravessar um período onde tudo está a desaparecer com o imobiliário
desenfreado". Germano Silva salienta, contudo, que esta atitude tem sido
transversal a todo o século XIX e até anterior, como demonstra a destruição da
muralha Fernandina. "Podíamos fazer um apelo aos políticos, mas acho que
não resultaria", concluiu.
Em Pinto Bessa, nem essa sobrou, por motivos que se
desconhecem e que o Bloco de Esquerda quer que o município explique, como o
PÚBLICO noticiou na semana passada. Já em Ciríaco Cardoso, a Casa de Raul Lino
permanece de pé, agora à espera de companhia, se a decisão de a preservar
prevalecer. “Qualquer proposta a apresentar para o local deverá ter em atenção
o valor intrínseco da habitação existente por forma a enquadrá-la numa solução
de conjunto, que respeite os valores patrimoniais existentes e proponha a sua
conservação”, lê-se na proposta de despacho da Direcção Municipal de Urbanismo
a que o PÚBLICO teve acesso e que enformou a posição do responsável pelo
pelouro.
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