Mais dez dias de ondas de calor por ano. Assim será o clima
daqui para a frente
Os especialistas uniram-se para analisar o país e responder
localmente aos efeitos das alterações climáticas. Mas o calor, cada vez mais
uma preocupação e causa de mortes, "ainda não faz parte das agendas",
alertam.
Catarina Reis
28 Maio 2019 — 22:32
Os termómetros vão subir já a partir desta quarta-feira
acima dos 30 graus em quase todo o país. Lisboa, Leiria e Setúbal vão mesmo
estar sob aviso amarelo nos próximos dias e o Instituto Português do Mar e da
Atmosfera informa que "os valores previstos da temperatura máxima estão
cerca de 10°C acima do valor médio para o mês de maio".
O calor, cada vez mais frequente e intenso, levou a que na
capital e no Porto já tenham sido criadas equipas para elaborar um plano de
resposta para os efeitos das alterações climáticas a nível local. De acordo com
o Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas (PMAAC), cujas
conclusões só serão conhecidas na íntegra no final deste ano, a partir de 2020
os dias de ondas de calor devem aumentar entre 9 a 10 na Área Metropolitana de
Lisboa (AML). Até 2100, podem mesmo já ter aumentado entre 12 a 23 dias. O DN
falou com a comissão técnica por detrás deste relatório para saber, afinal, o
que se pode esperar do clima em Portugal nos próximos anos
O verão ainda não começou e já várias semanas se passaram
com o país a atingir estes números, num inverno e primavera que lançaram o
alerta de seca em Portugal. As meias estações já não são o que eram, o calor
que conhecíamos também não e os especialistas garantem que a tendência veio
para ficar. E tem trazido consequências nefastas.
Só na capital, desde a viragem do milénio até 2018
registaram-se 361 eventos extremos relacionados com as temperaturas elevadas,
sendo os incêndios aqueles que surgem em maior número (quase 350), seguidos do
aumento da morbilidade e mortalidade. E desde há décadas que os números estão a
mudar. Entre 1971 e 2016, a AML sofreu uma subida das ondas de calor (mais 0,5
a 0,8 por década) e da sua duração (mais 2,5 e 3,5 dias por década). A partir
daqui, a corpo técnico do Plano Metropolitano acredita que continue a aumentar.
"Mas são só projeções, porque não fazemos
estimativas", frisa João Tiago Carapau, engenheiro agrónomo e um dos
membros da Comissão Técnica de Gestão do Plano. No final deste mês, o
meteorologista Tyler Roys alertava, através do site AccuWeather, que Portugal
seria um dos países europeus a registar temperaturas históricas, já neste
verão. Apontava para dias seguidos acima dos 43 graus Celsius. Mas João Tiago
Carapau deixa a nota: "fazer previsões acima de dez dias, do ponto de
vista técnico-científico, é quase futurologia". "O clima é um
fenómeno com grande grau de incerteza. Portanto, nós trabalhamos com base em
projeções e não com base em probabilidades ou estimativas", explica.
"Naquelas ondas de 2003, o número de mortes foi alto
não só por parte do perigo, mas porque estávamos mal preparados"
Mas a verdade é que estas projeções têm mesmo sido
"validadas com o passar do tempo". O aquecimento global, conta,
"tem disso validado e até tem excedido aquilo que os modelos nos têm
mostrado nos últimos 40 anos". Portugal é, à semelhança de um relatório da
Comissão Europeia deste ano, "uma das áreas da Europa mais vulneráveis às
alterações climáticas".
E já não é "só o facto de haver calor extremo, mas
também de este ser cada vez mais frequente e duradouro", alerta João
Vasconcelos, outro dos elementos do corpo técnico que está por detrás deste
plano metropolitano, em Lisboa. "A própria estrutura do calor está a mudar
e só isto já nos deveria deixar preocupados."
Foi com todas estas preocupações em mente que, no início do
ano passado, uma equipa de geógrafos, climatólogos, engenheiros, economistas e
profissionais da área da saúde se uniram para analisar o passado e o presente,
ao mesmo tempo que propõem um futuro. Segundo Carlos Humberto,
primeiro-secretário da Comissão Executiva Metropolitana de Lisboa, "são
medidas que pressupõem o envolvimento de várias entidades", partindo do
nível local para o nacional. "O Ministério da Saúde tem um papel importante,
mas também as autarquias", nomeadamente "no planeamento de
território, na construção de mais zonas verdes, de adaptação do urbanismo às
necessidades", explica. No Porto, também se trabalha sobre o mesmo
objetivo e já há vários planos municipais. Contudo, a conclusão dos planos só
será conhecida em novembro deste ano.
Ondas de calor refere-se ao período de pelo menos seis dias
em que a temperatura máxima de todos eles é superior em 5ºC ao valor médio das
temperaturas máximas diárias no período de referência (30 anos)
Analisar o país, de lés a lés
A equipa de João Tiago Carapau e João Vasconcelos não se
ficou pela área metropolitana de Lisboa, embora seja esse o foco do seu
trabalho. Estiveram em outros locais, como Viseu e Alentejo Central. O que
concluíram é que, "em todos eles, de forma diferente, as ondas de calor
vão aumentar", conta João Tiago.
E importa saber que as ondas de calor não são os dias mais
quentes do ano, mas sim o período de pelo menos seis dias em que a temperatura
máxima de todos eles é superior em 5ºC ao valor médio das temperaturas máximas
diárias no período de referência. Sendo que o período de referência são sempre
30 anos. "Porque dizer que está calor é falar do tempo. Mas para dizermos
que há um aquecimento, falando do clima, temos de validar com período de 30
anos", explica o engenheiro agrónomo.
"Quando existem ondas de calor, o número de mortes
aumenta". Em 1981, registaram-se 1900 óbitos. Dez anos depois, foram mil.
Em 2003, chegou mesmo aos 1953 e em 2013 registaram-se 1684 óbitos.
E falar de ondas de calor é lembrar duas franjas da
sociedade mais vulneráveis: os idosos e as crianças. Porque "quando
existem ondas de calor, o número de mortes aumenta", alerta.
Segundo um relatório do Instituto Nacional Dr. Ricardo
Jorge, nas últimas ondas de calor de 1981, 1991, 2003 e 2013, registou-se
sempre um excesso de mortalidade acima dos mil óbitos. Em 1981, registaram-se
1900 óbitos. Dez anos depois, foram mil. Em 2003, chegou mesmo aos 1953 e em
2013 registaram-se 1684 óbitos. Esta relação entre a mortalidade e as ondas de
calor é calculada tendo por comparação o número de óbitos esperados num
determinado período e o excedente.
João Vasconcelos esclarece que "muito poucos casos é de
morte direta, mas sim por agravamento de outras doenças a partir do
calor", embora não levante dúvidas: "o calor mata".
"Naquelas ondas de 2003, o número de mortes foi alto não só por parte do
perigo, mas porque estávamos mal preparados", recorda. "Morreu muita
gente que se veio a descobrir que eram pessoas idosas que viviam num sótão. E
isto fez-nos pensar: não é só o facto de haver calor, a população de alguma
forma mudou, os idosos vivem mais sozinhos do que antes e sem condições (para
adaptação ao calor). Abre-se logo aqui a janela da vulnerabilidade", explica.
A forma como preparamos as nossas casas é tão ou mais
importante do que o calor exterior.
E os idosos são os mais suscetíveis a sofrer com os excessos
do clima. Muito devido ao que João Vasconcelos, responsável pela área da saúde
humana no Plano Metropolitano, explica ser uma deficiência no hipotálamo.
"O sensor ao calor todos temos (a pele), mas a forma como o cérebro
processo é que é diferente de pessoa para pessoa. E, nos idosos, esta coisa que
é o hipotálamo (que faz a ligação entre a sensação e o desconforto) não
funciona muito bem. Por isso, naturalmente, pode estar muito calor, mas não
conseguirão adaptar-se a ele porque não o sentem como nós." Por isso, não
procurarão defender-se do calor com a mesma facilidade com que as faixas
etárias mais resistentes farão, como beber água, recorrer a vestuário mais
fresco e leve, ou mesmo procurar zonas de sombra. Os números expostos nas taxas
de mortalidade pelo calor não são por ligação direta, por "desmaio"
devido ao abafamento, mas sim por agudização de um estado de saúde mais débil,
explica o especialista.
Mas lembra como a idade não é o único fator de
vulnerabilidade. A forma como preparamos as nossas casas, diz, é tão ou mais
importante do que o calor exterior. Segundo dados do INE, que João Vasconcelos
faz questão de recordar, na Área Metropolitana de Lisboa, em 2011, 87% das
casas não tinha ar condicionado. "E as pessoas dirão 'eu não necessito de
ar condicionado, porque protejo a casa de outra forma'. Mas durante um período
extremo, ter ar condicionado é o mesmo que estar próximo de uma fonte de água à
qual nos podemos socorrer. Não ter é uma fragilidade", alerta.
Um outro aspeto de defesa é "o comportamento", da
sociedade em geral, mas principalmente das entidades competentes pela
monitorização da população. "Muitas delas dizem que concordam connosco
(sobre as estratégias de prevenção), mas que isto é da competência da
Direção-Geral de Saúde (DGS) e do Ministério da Saúde. Não é. A necessidade de
sombreamento nas escolas ou de jardins (por exemplo) não é competência da
DGS", reitera. A monitorização da população vulnerável, faz questão de
frisar, "depende de cada freguesia saber que tem áreas ou franjas de
pessoas mais frágeis - através dos centros de saúde, GNR, etc. Atores que,
embora lhes interesse o panorama nacional, trabalham localmente". A saúde,
como diz, "não é exclusiva do Ministério da Saúde e, embora a resposta da
DGS à urgência esteja bem pensada, o que falta mesmo é a prevenção".
"Se formos ao hospital, o médico vai tratar-nos bem, mas a razão que nos
levou a ir ao hospital é que tem de ser trabalhada. Ainda estamos muito
expostos ao calor."
O engenheiro agrónomo João Tiago Carapau não tem dúvidas de
que Portugal viverá num clima "cada vez mais agressivo", mas admite
que o país ainda está apenas "numa fase de consciência" e
"tentar perceber como é que se pode responder a isto". Contudo,
garante que a solução passa por olhar para um "problema global"
através da "ação local".
O que propõem
Desde o início de 2018 que esta comissão técnica tem
trabalhado junto dos municípios, a fim de elaborarem respostas práticas para o
dia-a-dia. Organizam workshops e despoletam campanhas de sensibilização. Quanto
às medidas a serem aplicadas em cada município, essas só serão conhecidas no
final deste ano, assim que concluído o documento. Mas João Tiago Carapau e João
Vasconcelos adiantam algumas propostas que deixaram em cima da mesa.
As soluções físicas têm de ser ponderadas e "a lógica
do sombreamento é muito importante", sublinha João Tiago Carapau. "Os
agentes públicos e locais devem promover a arborização e não cortar árvores
(muitas vezes destruídas pela sujidade que causam nas ruas ou porque incomodam
exatamente onde estão). Mas deve perceber-se que as árvores têm um papel
fundamental, principalmente nestas épocas."
Além das campanhas de sensibilização, nas alturas de maior
calor, propõem uma maior monitorização da população. João Vasconcelos dá um
exemplo que já está em prática: a Guarda Nacional Republicana tem o Programa de
Apoio 65 - Idoso em Segurança, com pelo menos uma equipa por destacamento
designada para este serviço, através do qual os agentes se dirigem à porta dos
idosos da localidade para alertar sobre determinados cuidados a ter. Entre outras
coisas, aconselham sobre como se protegerem para os maiores períodos de calor e
também em caso de incêndio. "Mas (este serviço) ainda não está massificado
o suficiente", lamenta João Tiago.
"O calor ainda não faz parte das agendas (locais)"
João Vasconcelos concorda e acrescenta até que este trabalho
deveria ser intercalado com outras entidades, como os centros de saúde e até o
pároco da zona. "Nós propúnhamos que houvesse um fórum onde todos os
atores locais tenham reuniões periódicas. E não é difícil, porque isso já
existe para a Proteção Civil, há fóruns municipais. Mas o calor ainda não faz
parte das agendas."
O investigador lembra a importância do acompanhamento por
parte dos centros de saúde, através dos médicos de família. "Em 2018,
tínhamos quase 472 mil pessoas na Área Metropolitana de Lisboa sem médico de
família. E, sem isso, aquela necessidade que uma pessoa tem de monitorização e
que ajuda à prevenção está fragilizada."
Ainda que considere que há um longo caminho a percorrer,
está otimista quanto à receção dos agentes locais às propostas. "Há uma
predisposição, mas agora falta encarar isto como um desígnio nacional em vez de
apenas uma conversa de circunstância", frisa. "A mensagem fundamental
é que isto não é um processo a curto prazo, é um processo a médio e longo
prazo. A partir de 2020, há que comunicar e há que trabalhar junto da
população."
A partir desta terça-feira, e até dia 31 de maio, Lisboa
recebe a 4.ª edição do European Climate Change Adaptation (ECCA 2019), no
Centro Cultural de Belém, onde vários especialistas internacionais divulgarão
propostas para adaptação às alterações climáticas. É a primeira vez que este
evento é realizado numa cidade do sul da Europa - tendo, em anos anteriores,
sido acolhido em Hamburgo, Copenhaga e Glasgow. A capital portuguesa foi eleita
pela Comissão Europeia para ser a anfitriã deste ano.
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