domingo, 5 de maio de 2019

António Costa está cheiinho de razão / Festa de hipocrisia no Parlamento



OPINIÃO
António Costa está cheiinho de razão
Costa fez tudo bem feito. Excepto talvez isto: hipotecou o futuro. Ainda que esta crise venha a beneficiar a sua prestação eleitoral, o PS precisará sempre de companhia para governar, e o que aconteceu esta semana vai deixar sequelas.

João Miguel Tavares
3 de Maio de 2019, 22:00

O grande problema do PSD e do CDS é que António Costa sabe mais de política a dormir do que Rui Rio e Assunção Cristas depois de despejarem duas grades de Red Bull. É certo que a jogada política do primeiro-ministro é arriscada no médio prazo (já lá vamos), mas, no presente, António Costa meteu no bolso a sua esquerda e a sua direita — basta ver a forma disparatada como todos os partidos reagiram à cartada do Governo, atropelando-se em péssimas justificações como se tivessem sido meninos traquinas apanhados com a mão na caixa dos biscoitos. Neste tipo de braços de ferro, é sempre muito fácil saber quem está a perder — é aquele que tem as bochechas mais coradas e sente necessidade de vir a correr explicar-se, tropeçando várias vezes pelo caminho.

E, de facto, já todos ouvimos as explicações mais estapafúrdias. Desde o Bloco de Esquerda a dizer que não percebe a reacção do governo, já que a despesa que foi aprovada é só para pagar na próxima legislatura (a seriedade desta declaração diz tudo sobre a responsabilidade política de um partido que apoia o Governo); ao vice-presidente do PSD, David Justino, que vem desafiar o Governo a apresentar uma nova proposta, dentro da sofisticadíssima lógica se-não-gostas-então-faz-tu; passando pelas memoráveis reacções do CDS, que poderemos resumir na frase “eu votei para descongelar, não votei para pagar” — todo este bouquet de palermice é de tal forma patético e desconchavado que António Costa e Mário Centeno devem ter saído na sexta à noite para beber uns copos e brindar à imbecilidade da oposição.

Imbecilidade porquê? É muito simples. Em relação à esquerda, António Costa e Mário Centeno podem agora acusá-los de cumplicidade traiçoeira com a direita (Centeno, aliás, já o fez explicitamente na SIC: “A esquerda desviou-se para ser ultrapassada pela direita”), culpando-os pela queda do governo — e não se vê como possam Bloco e PCP escapar à assunção das culpas desta crise política, até porque não têm margem de recuo. Em relação à direita, eis que, num passe de mágica, todo o bonito discurso do rigor das contas públicas, tão caro a Rui Rio, é oferecido de bandeja a Costa e Centeno.

A partir de agora, e até às próximas eleições, o PSD e o CDS serão os partidos irresponsáveis, os partidos que prometeram aos professores aquilo que o país não podia pagar, os partidos eleitoralistas, os partidos pouco sérios. E este discurso — ainda por cima inteiramente justo no caso da recuperação do tempo de serviço dos professores – permite ao PS acampar no centro político português, e limpar do seu passado os excessos do namoro com Bloco e PCP. Afinal, quem é que andou a dormir com a extrema-esquerda? Sim, foi mesmo o CDS e o PSD.

Como é que a direita não viu isto chegar? É possível que tenha sido por mera incompetência: tão desejosa estava de entalar o Governo, que acabou por deixar cair do diploma os travões que faziam depender o aumento dos professores dos “recursos disponíveis” e das “condições económico-finaceiras do país”. Sem esses travões, António Costa pôde tatuar à vontade na testa de Rio e de Assunção a palavra “despesista” — porque é verdade. Costa fez tudo bem feito. Excepto talvez isto: hipotecou o futuro. Ainda que esta crise venha a beneficiar a sua prestação eleitoral, o PS precisará sempre de companhia para governar, e o que aconteceu esta semana vai deixar sequelas. O próximo governo pode vir a ser muitas coisas — mais estável não será uma delas.


 OPINIÃO
Festa de hipocrisia no Parlamento

Ver a direita a enfiar-se desta forma na cama da esquerda é demasiado obsceno para os meus olhos. PSD e CDS estão a abandalhar o seu legado de 2011 a 2015, quando salvaram o país da bancarrota. Assunção e Rio vão pagar por isto. E vai ser já em 2019.

João Miguel Tavares
3 de Maio de 2019, 14:38

Está tudo no patético tweet do CDS de quinta-feira à noite: “Não é verdade que o CDS tenha hoje aprovado o pagamento de tempo integral dos professores. Essa proposta foi chumbada com o nosso voto. Aprovou-se apenas o princípio de que os professores terão direito à contagem integral do tempo congelado mediante negociação com o Governo.” Quase três décadas após o clássico “fumei mas não inalei”, o Parlamento português acaba de inventar o “descongela mas não consome”.

O tweet do CDS, que poderia também ter sido subscrito pelo PSD, diz o seguinte: 1) os professores têm direito à contagem integral do tempo de serviço; 2) o momento e a forma como essa contagem vai reflectir-se nos ordenados discute-se mais tarde. Ora, não é possível somar 1 + 2 sem que o resultado seja a absoluta irresponsabilidade e uma brincadeirinha com os contribuintes e com os próprios professores. O tempo descongela? Segundo o PSD e o CDS, sim. Os professores vão receber por isso? Segundo o PSD e o CDS, não.

Sejam bem-vindos à grande festa de hipocrisia do ano, onde ninguém fica de fora, com destaque para as tristes figuras de PSD e CDS, seguidos de perto por Bloco e PCP. Se isto é a oposição, há que dar razão a António Costa: mais vale ficarmos com o Governo. Reparem bem. Por um lado, o aumento dos famosos nove anos, quatro meses e dois dias não pode ser já em 2019 — a despesa não está prevista no Orçamento do Estado e, devido à norma-travão, o diploma esbarraria no Tribunal Constitucional. Por outro lado, ninguém percebe quando tal medida é para implementar — a sua calendarização foi chumbada pela direita, e a sua limitação aos “recursos disponíveis” foi chumbada pela esquerda.

Não sei se a direita fez bem as contas, achando que tirava mais vantagens eleitorais da felicidade dos professores do que da indignação de todos aqueles que durante o tempo da troika sofreram a crise na pele e nunca recuperarão aquilo que perderam. O que sei é isto: a ausência de um rumo discernível no discurso político não costuma trazer vantagens eleitorais para ninguém. Roma não paga a traidores. E se há coisa que os eleitores não suportam é a língua bífida e o jogo de simulações, que tem sido em grande medida responsável pela descredibilização da actividade política, um pouco por todo o mundo.

Há quem discuta se a extensão da medida a todas as carreiras especiais da função pública custa ou não os 800 milhões de euros que Mário Centeno anunciou. Mas seja esse o número ou não, acredito piamente no ministro das Finanças quando ele diz que se trata do maior aumento de despesa permanente da legislatura e que é um “sonho” e uma “demagogia” andar a vender a ideia de que seria financiável com base em expectativas económicas futuras. Não está em questão a justiça ou injustiça da medida per se, mas sim a sua sustentabilidade a prazo e a forma como ela compara com o sector privado, que foi obviamente o grande prejudicado pela crise. Perguntem a todos os despedidos deste país quem lhes vai devolver o tempo que ficaram no desemprego.

Ver a direita a enfiar-se desta forma na cama da esquerda é demasiado obsceno para os meus olhos. PSD e CDS estão a abandalhar o seu legado de 2011 a 2015, quando salvaram o país da bancarrota. António Costa até pode estar a dramatizar a crise. Mas dramática, dramática, é a inconsistência e a burrice de quem oferece de bandeja ao PS a seriedade na gestão das contas públicas. Assunção e Rio vão pagar por isto. E vai ser já em 2019.

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