Jorge Almeida Fernandes
COMENTÁRIO EUROPEIAS 2019
Os dissabores da Europa no mundo multipolar
A UE é o maior espaço democrático do mundo. É também a
segunda potência económica, com 7% da população e 22% do PIB mundiais, mas não
consegue traduzir esse poderio na cena diplomática mundial.
Jorge Almeida Fernandes
24 de Maio de 2019, 7:00
1. Antes de falar da Europa num mundo multipolar, proponho
ao leitor três citações, algo aleatórias, que tocam pontos nevrálgicos do
presente, dos desafios e dos dissabores que as novas relações de forças
mundiais nos impõem.
INTERIOR
Despovoamento: as histórias de quem viu partir toda a gente
“Trump, Xi, Putin obrigam-nos a uma permanente adaptação
interna, que depende de nós, e a constrangimentos externos que nos escapam:
isto chama-se estratégia. Surgem dois desafios: a incapacidade de uma resposta
comum perante os grandes desafios russo, chinês e, agora, americano, aos quais
se acrescentam as migrações e a ascensão do poder das correntes
anti-europeias.” (Michel Foucher, geógrafo).
“Apenas somos credíveis se tivermos consciência de que a
União Europeia está a atravessar uma crise existencial, sob ataques do interior
e do exterior. (…) Numa perspectiva histórica longa, esta é a melhor Europa que
jamais tivemos. Desafio quem aponte uma melhor, para a maioria dos países do
Continente e para as pessoas individualmente.” (Timothy Garton-Ash, historiador
britânico).
“A Europa está condenada a [ser] potência. (…) É, no
entanto, necessário fixar a ideia de identidade de uma potência no sentido
forte da palavra. Penso que é necessário combinar uma narrativa europeia com os
desafios do mundo contemporâneo. Trata-se de responder à questão seguinte:
deverão os nossos netos estar condenados a escolher entre o modelo americano e
o modelo chinês? É aqui que a noção de identidade ganha pleno sentido.” (Pascal
Lamy, antigo director-geral da Organização Mundial do Comércio).
2. A integração europeia é um processo único na História. A
UE não é um Estado-nação nem uma federação, como os Estados Unidos, embora
tenha elementos federais, como a moeda comum. É um objecto estranho. A
construção do espaço político europeu não é a reprodução do espaço nacional nem
dilui as múltiplas identidades das nações que o compõem. Não é uma pátria.
A UE não se resume ao “coração” da sua identidade – os
valores que ditaram a sua fundação. É sua função responder aos problemas que o
Estado-nação não pode tratar isoladamente, da globalização à revolução digital,
passando pelas novas ameaças geopolíticas. A UE é o maior espaço democrático do
mundo. É também a segunda potência económica, com 7% da população e 22% do PIB
mundiais, mas não consegue traduzir esse poderio na cena diplomática mundial.
Internamente dividida, perdeu a capacidade de intervenção.
As crises económicas de 2008 e do euro, seguidas pela crise das migrações de
2015, relegaram para terceiro plano a política externa. Vieram depois o
“Brexit” e a vaga nacional-populista. Dos países do Leste, o olho do tufão
passou para a Itália, um dos seis fundadores da CEE.
Não se trata apenas das crises. A Europa tende a pensar o
mundo mais no plano comercial do que no plano geopolítico. Há uma resistência
histórica à noção de potência. E há um problema estrutural. Os Estados-membros
são soberanos – sobretudo na política externa –, têm visões diferentes,
memórias históricas distintas e variados interesses, o que torna os processos
de decisão complicados e lentos. Por isso, há o eixo franco-alemão e o recurso
ao consenso entre quatro ou cinco “grandes”.
Quando se fala em diplomacia europeia, surge sempre a
irónica interrogação: onde está o exército europeu? A política internacional
faz-se sobretudo com soft power, mas é o hard power que lhe dá credibilidade. É
outra frente em aberto.
3. Não vou descrever o mapa do mundo multipolar nem
inventariar as políticas europeias. Limito-me a assinalar que a Europa está na
defensiva. Rivais entre si, Estados Unidos, China e Rússia têm um interesse
comum em enfraquecer a UE. Não é uma teoria conspirativa. A Rússia não
representa a antiga ameaça soviética. Mas “dividir a Europa” é um objectivo
estratégico do nacionalismo russo. Pressiona a Europa nas fronteiras do Leste e
trava uma guerra de propaganda contra as instituições europeias. Apoia os
movimentos nacional-populistas. E Putin propõe, até, um modelo político que
alguns populistas ocidentais aplaudem. Comenta o búlgaro Ivan Krastev: “O que
causa ansiedade no Ocidente liberal não é que a Rússia governe o mundo, mas que
o mundo seja governado da maneira que a Rússia o é hoje.”
A China não leva a sério a Europa política e, sobretudo, não
lhe convém o reforço da UE. Pequim prossegue na montagem de entrepostos da Rota
da Seda, na Grécia, na Itália, em Portugal, na Europa Central e nos Balcãs.
Investe em infra-estruturas, na energia e nas tecnologias de ponta. O seu
mercado funciona como isco para negociar com os países individualmente. A única
barreira às suas inesgotáveis ambições é Bruxelas. Mas entre os Estados-membros
há divergências de fundo quanto a Moscovo e Pequim, o que torna difícil e lenta
a “política comum”.
4. O maior problema europeu não é a ascensão do Oriente. O
mundo ocidental deixou de ser o “centro do mundo”. Não tem sentido falar em
declínio. É uma mudança de era. O tabuleiro global passou a ser policêntrico.
O problema europeu é o Ocidente, o “fim do Ocidente”, ou
seja, uma mudança geopolítica que subverte as regras da ordem internacional
liberal e põe em causa a Aliança Atlântica. Esse “Ocidente” era um conceito,
não era uma noção geográfica: nele cabia o Japão. Trump recusa o
multilateralismo, fundamento da política externa europeia. Diz o sinólogo
François Godement: “A ditadura do instante fez de Donald Trump o coveiro do
Ocidente e da ordem liberal internacional. (…) É preciso acabar com o
sentimento do inevitável fracasso da União Europeia, reflexo da ansiedade dos
europeus sobre o seu futuro.”
A América desinveste na Europa à medida que se concentra na
Ásia. É uma tendência inexorável. Mas a Administração Trump vai mais longe. É
hostil à integração europeia, em que vê um concorrente. Procura lançar a Europa
de Leste conta Bruxelas e a Alemanha. O “ocidentalismo” de Trump, como o dos
antigos neoconservores, significaria a subordinação da Europa, observa Foucher.
A UE procura evitar confrontos com os EUA. Após a ausência
na Síria, que se passará na crise do Irão, depois de a Europa ter sido o pivot
do acordo sobre o nuclear? Quanto à prova de força sino-americana sobre o
comércio, adverte o economista Jean Pisani-Férry: “Trump quer evitar que a UE
se posicione como terceiro jogador num jogo trilateral. Se os EUA tencionam
transformar a relação com a China numa luta bilateral pelo poder, há boas
razões para que ele olhe a UE como um obstáculo. ”
Não falo aqui da NATO, dor de cabeça da Europa. Remeto para
o artigo que Carlos Gaspar publicou neste jornal. Nele resume o dilema europeu
e, também, o preço que os EUA pagarão pela falta dos aliados tradicionais (3 de
Abril de 2019).
Está a sobrevivência da aliança dependente da subordinação
política aos EUA? Argumenta, na Foreign Policy, o “realista” americano Stephen
Walt: “Os países europeus não querem abdicar dos proveitosos laços económicos
com a China e não quererão fazer muito contra Pequim. Se o conflito
sino-americano se agravar, como se prevê, este tema será um novo ponto de
fricção entre os EUA e os parceiros europeus. ”
O modelo multipolar é imperfeito dada a extraordinária
superioridade estratégica dos EUA. E chegamos à interrogação por onde tudo
passa. Volto a Walt: “Até que ponto são os Estados Unidos poderosos ? São ainda
a potência unipolar, capaz de impor a sua vontade aos adversários, aliados e
neutrais, e forçá-los a seguir políticas que eles considerem loucas, perigosas,
ou simplesmente contrárias aos seus interesses ? Ora, existem claros e
significativos limites ao poderio dos EUA.”
5. A Europa avança através das crises, pensava Jacques
Delors. Desta vez, está em jogo a sobrevivência da UE. A emergência de uma
oposição radical pode ter o efeito de forçar a reflexão sobre os fins da UE.
Voltando às citações que abrem este texto: só tem sentido pensar o projecto
europeu à escala do mundo. A Europa ainda não aprendeu a viver na nova era de
competição entre as potências.
tp.ocilbup@sednanrefaj
Sem comentários:
Enviar um comentário