sexta-feira, 24 de maio de 2019

Os dissabores da Europa no mundo multipolar



Jorge Almeida Fernandes
COMENTÁRIO EUROPEIAS 2019

Os dissabores da Europa no mundo multipolar

A UE é o maior espaço democrático do mundo. É também a segunda potência económica, com 7% da população e 22% do PIB mundiais, mas não consegue traduzir esse poderio na cena diplomática mundial.

Jorge Almeida Fernandes
24 de Maio de 2019, 7:00

1. Antes de falar da Europa num mundo multipolar, proponho ao leitor três citações, algo aleatórias, que tocam pontos nevrálgicos do presente, dos desafios e dos dissabores que as novas relações de forças mundiais nos impõem.

INTERIOR
Despovoamento: as histórias de quem viu partir toda a gente
“Trump, Xi, Putin obrigam-nos a uma permanente adaptação interna, que depende de nós, e a constrangimentos externos que nos escapam: isto chama-se estratégia. Surgem dois desafios: a incapacidade de uma resposta comum perante os grandes desafios russo, chinês e, agora, americano, aos quais se acrescentam as migrações e a ascensão do poder das correntes anti-europeias.” (Michel Foucher, geógrafo).

“Apenas somos credíveis se tivermos consciência de que a União Europeia está a atravessar uma crise existencial, sob ataques do interior e do exterior. (…) Numa perspectiva histórica longa, esta é a melhor Europa que jamais tivemos. Desafio quem aponte uma melhor, para a maioria dos países do Continente e para as pessoas individualmente.” (Timothy Garton-Ash, historiador britânico).

“A Europa está condenada a [ser] potência. (…) É, no entanto, necessário fixar a ideia de identidade de uma potência no sentido forte da palavra. Penso que é necessário combinar uma narrativa europeia com os desafios do mundo contemporâneo. Trata-se de responder à questão seguinte: deverão os nossos netos estar condenados a escolher entre o modelo americano e o modelo chinês? É aqui que a noção de identidade ganha pleno sentido.” (Pascal Lamy, antigo director-geral da Organização Mundial do Comércio).

2. A integração europeia é um processo único na História. A UE não é um Estado-nação nem uma federação, como os Estados Unidos, embora tenha elementos federais, como a moeda comum. É um objecto estranho. A construção do espaço político europeu não é a reprodução do espaço nacional nem dilui as múltiplas identidades das nações que o compõem. Não é uma pátria.

A UE não se resume ao “coração” da sua identidade – os valores que ditaram a sua fundação. É sua função responder aos problemas que o Estado-nação não pode tratar isoladamente, da globalização à revolução digital, passando pelas novas ameaças geopolíticas. A UE é o maior espaço democrático do mundo. É também a segunda potência económica, com 7% da população e 22% do PIB mundiais, mas não consegue traduzir esse poderio na cena diplomática mundial.


Internamente dividida, perdeu a capacidade de intervenção. As crises económicas de 2008 e do euro, seguidas pela crise das migrações de 2015, relegaram para terceiro plano a política externa. Vieram depois o “Brexit” e a vaga nacional-populista. Dos países do Leste, o olho do tufão passou para a Itália, um dos seis fundadores da CEE.

Não se trata apenas das crises. A Europa tende a pensar o mundo mais no plano comercial do que no plano geopolítico. Há uma resistência histórica à noção de potência. E há um problema estrutural. Os Estados-membros são soberanos – sobretudo na política externa –, têm visões diferentes, memórias históricas distintas e variados interesses, o que torna os processos de decisão complicados e lentos. Por isso, há o eixo franco-alemão e o recurso ao consenso entre quatro ou cinco “grandes”.

Quando se fala em diplomacia europeia, surge sempre a irónica interrogação: onde está o exército europeu? A política internacional faz-se sobretudo com soft power, mas é o hard power que lhe dá credibilidade. É outra frente em aberto.

3. Não vou descrever o mapa do mundo multipolar nem inventariar as políticas europeias. Limito-me a assinalar que a Europa está na defensiva. Rivais entre si, Estados Unidos, China e Rússia têm um interesse comum em enfraquecer a UE. Não é uma teoria conspirativa. A Rússia não representa a antiga ameaça soviética. Mas “dividir a Europa” é um objectivo estratégico do nacionalismo russo. Pressiona a Europa nas fronteiras do Leste e trava uma guerra de propaganda contra as instituições europeias. Apoia os movimentos nacional-populistas. E Putin propõe, até, um modelo político que alguns populistas ocidentais aplaudem. Comenta o búlgaro Ivan Krastev: “O que causa ansiedade no Ocidente liberal não é que a Rússia governe o mundo, mas que o mundo seja governado da maneira que a Rússia o é hoje.”

A China não leva a sério a Europa política e, sobretudo, não lhe convém o reforço da UE. Pequim prossegue na montagem de entrepostos da Rota da Seda, na Grécia, na Itália, em Portugal, na Europa Central e nos Balcãs. Investe em infra-estruturas, na energia e nas tecnologias de ponta. O seu mercado funciona como isco para negociar com os países individualmente. A única barreira às suas inesgotáveis ambições é Bruxelas. Mas entre os Estados-membros há divergências de fundo quanto a Moscovo e Pequim, o que torna difícil e lenta a “política comum”.

4. O maior problema europeu não é a ascensão do Oriente. O mundo ocidental deixou de ser o “centro do mundo”. Não tem sentido falar em declínio. É uma mudança de era. O tabuleiro global passou a ser policêntrico.

O problema europeu é o Ocidente, o “fim do Ocidente”, ou seja, uma mudança geopolítica que subverte as regras da ordem internacional liberal e põe em causa a Aliança Atlântica. Esse “Ocidente” era um conceito, não era uma noção geográfica: nele cabia o Japão. Trump recusa o multilateralismo, fundamento da política externa europeia. Diz o sinólogo François Godement: “A ditadura do instante fez de Donald Trump o coveiro do Ocidente e da ordem liberal internacional. (…) É preciso acabar com o sentimento do inevitável fracasso da União Europeia, reflexo da ansiedade dos europeus sobre o seu futuro.”

A América desinveste na Europa à medida que se concentra na Ásia. É uma tendência inexorável. Mas a Administração Trump vai mais longe. É hostil à integração europeia, em que vê um concorrente. Procura lançar a Europa de Leste conta Bruxelas e a Alemanha. O “ocidentalismo” de Trump, como o dos antigos neoconservores, significaria a subordinação da Europa, observa Foucher.

A UE procura evitar confrontos com os EUA. Após a ausência na Síria, que se passará na crise do Irão, depois de a Europa ter sido o pivot do acordo sobre o nuclear? Quanto à prova de força sino-americana sobre o comércio, adverte o economista Jean Pisani-Férry: “Trump quer evitar que a UE se posicione como terceiro jogador num jogo trilateral. Se os EUA tencionam transformar a relação com a China numa luta bilateral pelo poder, há boas razões para que ele olhe a UE como um obstáculo. ”

Não falo aqui da NATO, dor de cabeça da Europa. Remeto para o artigo que Carlos Gaspar publicou neste jornal. Nele resume o dilema europeu e, também, o preço que os EUA pagarão pela falta dos aliados tradicionais (3 de Abril de 2019).

Está a sobrevivência da aliança dependente da subordinação política aos EUA? Argumenta, na Foreign Policy, o “realista” americano Stephen Walt: “Os países europeus não querem abdicar dos proveitosos laços económicos com a China e não quererão fazer muito contra Pequim. Se o conflito sino-americano se agravar, como se prevê, este tema será um novo ponto de fricção entre os EUA e os parceiros europeus. ”

O modelo multipolar é imperfeito dada a extraordinária superioridade estratégica dos EUA. E chegamos à interrogação por onde tudo passa. Volto a Walt: “Até que ponto são os Estados Unidos poderosos ? São ainda a potência unipolar, capaz de impor a sua vontade aos adversários, aliados e neutrais, e forçá-los a seguir políticas que eles considerem loucas, perigosas, ou simplesmente contrárias aos seus interesses ? Ora, existem claros e significativos limites ao poderio dos EUA.”

5. A Europa avança através das crises, pensava Jacques Delors. Desta vez, está em jogo a sobrevivência da UE. A emergência de uma oposição radical pode ter o efeito de forçar a reflexão sobre os fins da UE. Voltando às citações que abrem este texto: só tem sentido pensar o projecto europeu à escala do mundo. A Europa ainda não aprendeu a viver na nova era de competição entre as potências.

tp.ocilbup@sednanrefaj

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