É tarde demais para ser pessimista
Portugal não está a fazer o suficiente. Os outros países
ainda menos. Nesta corrida para o precipício a mediocridade e a cobardia
política serão factores tão importantes quanto a negação da ciência, em países
muito mais importantes e com muito mais responsabilidades do que Portugal
alguma vez terá.
João Camacho
23 de Maio de 2019, 11:00
Não foi surpreendente ouvir o ministro do Ambiente, João
Pedro Matos Fernandes, dizer no Parlamento que uma declaração de Emergência
Climática em Portugal seria apenas simbólica. Foi coerente e há que reconhecer
a coerência a quem nunca mostrou perceber a química da atmosfera. Jovens por
todo o mundo sairão novamente às ruas para demonstrar, num movimento cada vez
mais continuado, que a impotência de governantes não produz automaticamente
impotência na população.
Os números devem ser repetidos, precisam ser repetidos:
segundo o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, para
evitarmos um aumento de temperatura acima dos 1,5ºC, precisamos cortar 50% das
emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Será a maior revolução da
História da Humanidade e consegui-lo não será apenas de um processo adaptativo,
mas sim de uma deslocação fundamental do poder, a retirada de uma força
incomensurável do comando dos destinos da Humanidade.
Precisamos repetir: desde 2015 que devíamos ter parado todos
os novos projectos de combustíveis fósseis à escala global, para manter o
aumento da temperatura abaixo dos 2ºC (a meta indicativa do Acordo de Paris).
Com a meta dos 1,5ºC, temos de fechar infra-estruturas fósseis já em
funcionamento e que se manteriam ainda no futuro.
Estamos a falar das nações mais ricas do mundo e das
empresas mais poderosas que já existiram abdicarem de cerca de 90% do que têm
em reservas de petróleo, de gás e de carvão. Porque, ao contrário da obediência
cega a regras financeiras e orçamentais, nomeadamente à ideia de que deve haver
um equilíbrio nas contas públicas entre despesas a receitas, há um desprezo
total pelo equilíbrio orçamental do carbono atmosférico. O problema é que
desprezar o orçamento de carbono significa destruir as condições materiais que
permitiram o surgimento da civilização humana e condenar a Humanidade a tentar
sobreviver num planeta que ser-lhe-á mais agressivo do que nunca.
Uma parte relevante da economia capitalista e das forças
políticas que a gerem (sejam partidos, empresas ou think tanks) estão a tentar
vender-nos a ideia de que é possível negociar com a química da atmosfera, estão
a repetir-nos quase diariamente que é possível convencer moléculas de dióxido
de carbono e de metano a não absorverem tanto calor. Temos adultos a subir a
púlpitos e a falar directamente para microfones, dizendo a países inteiros que
“estão a fazer o que é politicamente possível”. Mas uma molécula de dióxido de
carbono não está minimamente preocupada com questões de justiça, uma molécula
de metano está-se borrifando para expectativas de rendimentos futuros, as
concentrações atmosféricas não poderiam estar mais longínquas da discussão
acerca da necessidade da economia crescer ou qual a competitividade de um país
em relação ao outro. A única coisa que acontece quando há mais moléculas na
atmosfera a receber mais radiação é que fica mais quente. Não é um processo de
negociação, com troca de argumentos, retórica, e se conseguirmos uma capa de
jornal ou a abertura de um telejornal a dizer que o dióxido de carbono é um
extremista ou um radical, ou que o metano é irrazoável nas suas exigências, tal
não provocará nenhuma modificação nas características químicas dessas
moléculas. E, por isso, quantas mais moléculas forem colocadas na atmosfera,
mais nos aproximaremos da inviabilidade.
Segundo a ciência climática, estamos na década zero para
podermos evitar ultrapassar concentrações atmosféricas sem retorno que
implicarão fenómenos climáticos de escala global que passarão a reforçar o
aquecimento do planeta, como o colapso da Amazónia ou a paragem da circulação
termoalina. As moléculas de dióxido de carbono que colocarmos hoje na atmosfera
ficarão lá em média 120 anos e as de metano em média 12.
Não havendo negociação possível com a química da atmosfera,
resta negociar com pessoas que compreendam a química da atmosfera e o que
significa a modificação destas concentrações. Os cientistas estão a
informar-nos há pelo menos três décadas daquilo que está a acontecer, mas só
agora há, pela primeira vez, movimentos de massas em apoio à justiça climática
e à acção climática contundente.
A resposta de Matos Fernandes no Parlamento representa a
satisfação de ser Campeão do Mundo do Fim do Mundo. Portugal é – de facto – um
dos países do mundo que mais políticas climáticas tem aprovado, em particular
na última década e meia. Mas o grave é que nem um dos países do mundo com mais
políticas climáticas aprovadas está a fazer o suficiente para evitar o colapso
climático. Se as políticas de Portugal fossem as de todos os países do mundo,
não conseguiríamos travar o aumento de temperatura nos 2ºC, mas os dirigentes
políticos escudam-se na inacção de outros para evitarem ter políticas coerentes
com o que diz a ciência. Portugal não está a fazer o suficiente. Os outros
países ainda menos. Nesta corrida para o precipício a mediocridade e a cobardia
política serão factores tão importantes quanto a negação da ciência, em países
muito mais importantes e com muito mais responsabilidades do que Portugal
alguma vez terá.
Estando no final a campanha eleitoral, agora quase todas as
candidaturas assumem discursos de “miss” a reivindicar acção contra a crise
climática, depois de a maior parte ter passado anos a fazer exactamente o
contrário disso. Não temos tempo para recriminações sobre o passado, mas
tampouco temos tempo para nos escudarmos em falsas soluções e na ideia de que
este será um processo lento que não afectará o status quo. Foi o status quo do
capitalismo global que nos pôs nesta situação, não a resolverá, e só com imensa
coragem colectiva conseguiremos ganhar a maior tarefa que alguma vez foi
colocada à espécie humana. Os jovens voltam às ruas e o movimento global pela
justiça climática está com eles. Coragem, já é tarde demais para ser
pessimista.
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