OPINIÃO
Virtudes e defeitos de Abril (2)
JOÃO MIGUEL
TAVARES 24/04/2014 – PÚBLICO
Sim, Abril
cumpriu-se. Agora, só falta dar um passo em frente.
A dificuldade que
o país tem em heroicizar os seus heróis e trabalhar a memória dos grandes
acontecimentos, como se fôssemos um buraco de meio milénio que inexiste desde o
tempo dos Descobrimentos, tem como consequência a desvalorização de feitos tão
prodigiosos quanto aquele que São José Almeida recuperou num excelente trabalho
na revista do PÚBLICO: a integração dos retornados após o processo de
descolonização, em números que ninguém parece conseguir realmente calcular
(andarão entre o meio milhão e um milhão de pessoas), um movimento populacional
sem paralelo na Europa do pós-guerra, tendo em conta a dimensão de Portugal.
São José Almeida
chamou-lhe “Uma história de sucesso por contar”, e receio bem que não seja a
única: quando se escutam os discursos sobre os 40 anos do 25 de Abril e aquilo
que Portugal é hoje, em 2014, parece que estamos a falar de um Estado falhado e
condenado à mais vil miséria. Vivemos tão obcecados com aquilo que nos falta
que nos tornamos incapazes de contemplar aquilo que conseguimos. E se nos falta
muito, a verdade é que conseguimos muito mais, seja a impressionante integração
dos retornados, seja o cumprir do famoso projecto político-musical de Sérgio
Godinho: “A paz, o pão, habitação, saúde, educação/ Só há liberdade a sério
quando houver/ Liberdade de mudar e decidir.”
Ora, apesar da
febre apocalíptica que, tal como a febre dos fenos, parece tomar conta de tanta
gente respeitável cada vez que Abril se aproxima, os desejos da canção de
Sérgio Godinho cumpriram-se, um por um: 40 anos depois da revolução dos Cravos
existe paz, existe pão, existe habitação, existe saúde, existe educação e,
sobretudo, existe “liberdade de mudar e decidir”. Nós podemos discutir se o
pão, a habitação, a saúde e a educação chegam, se são os melhores, se estão bem
distribuídos, se são sustentáveis, e sobre tudo isso todos teremos imensas
queixas. Podíamos, e deveríamos, ser um país mais justo e menos desigual. Mas
os extremos daqueles versos – a paz, a liberdade, a rotatividade –, nos quais
qualquer regime democrático necessariamente assenta, estão assegurados, e bem
assegurados.
Ou não estão? Eu
diria que sim, mas a quantidade de pessoas que, afinal, acha que não, desde que
Passos Coelho, Portas e a troika tomaram conta do país, não pára de me
impressionar. E é curioso ver que quem mais defende “o verdadeiro espírito de
Abril” mais parece desrespeitá-lo. Eu percebo o argumento: há quem ache que o
actual governo está a “destruir as conquistas de Abril” e a “desmantelar o
Estado social”. Na verdade, o governo não está a desmantelar coisíssima
nenhuma, e esse é até o seu pior defeito. Mas não entremos agora nessa
discussão. O que importa é isto: mesmo que estivesse a desmantelar qualquer
coisinha, tinha legitimidade democrática para isso.
O actual governo
foi eleito com 47% dos votos em 2011 e nas mais recentes sondagens anda em
redor dos 35%, o que significa que mantém três quartos do seu eleitorado após o
maior programa de austeridade pós-1974. Ora, a tal “liberdade de mudar e
decidir” significa precisamente ter de gramar com quem não gostamos. Porque
essa é a liberdade fundamental, e é prévia a qualquer programa político. Sim,
Abril cumpriu-se. Agora, só falta dar um passo em frente e ajudar alguns dos
nossos democratas a sair da sua fase infantil, para que possam enfim reconhecer
total legitimidade democrática àqueles com quem não concordam.
Jornalista, jmtavares@outlook.com
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