sexta-feira, 11 de abril de 2014

Pedro Homem de Gouveia. "Se nada for feito, teremos cada vez mais lisboetas fechados em casa"


Pedro Homem de Gouveia. "Se nada for feito, teremos cada vez mais lisboetas fechados em casa"
Por Marta Cerqueira ( Jornal ) i online

O coordenador do Plano de Acessibilidade Pedonal quer fazer de Lisboa uma cidade acessível a todos. Para isso é preciso mais do que substituir a calçada

O Plano de Acessibilidade Pedonal prevê fazer de Lisboa uma "cidade para todos". Feito o diagnóstico das barreiras à mobilidade, a câmara municipal promete agora eliminar os entraves arquitectónicos na capital até 2017. Pedro Homem de Gouveia coordenou os trabalhos para construir o programa. Arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa desde 2003, garante que o plano é o projecto mais desafiador em que já esteve envolvido. Mas salienta que "é principalmente um grande desafio para a cidade". E um objectivo central para evitar que cada vez mais idosos fiquem a ver a cidade pela janela.

Qual é o principal problema de Lisboa em matéria de acessos?

A falta de estratégia da câmara e da comunidade é o grande problema a que o programa pretende dar resposta. Por isso é que o plano é uma estratégia que define um conjunto de prioridades para a cidade. O seu objectivo é, em quatro anos, pôr a Câmara Municipal de Lisboa a mexer, a mover-se, a andar na direcção certa.

Como foi elaborado?

Foi feito por um conjunto de sete técnicos que, durante o mandato anterior, procuraram interagir com diversos serviços municipais, auscultaram a sociedade civil, ou seja, recolheram depoimentos individuais, ouviram idosos, munícipes com deficiência, interagiram com a esmagadora maioria dos operadores de transportes públicos, agentes da área do turismo, do comércio local, associações de moradores, etc. As soluções que o plano define não foram criadas em laboratório, resultaram de um intenso diálogo com as forças vivas da comunidade.

É um plano concretizável?

O plano não é uma lista de desejos para o Pai Natal. Houve a preocupação de criar um plano viável e executável, está feito de forma a ser posto em prática. Os diversos constrangimentos que existem ou que venham a surgir não são suficientes para impedir a execução do plano.

As zonas históricas são as mais problemáticas, por terem uma população mais envelhecida?

Existem problemas em toda a cidade. Não queremos fazer essa divisão, porque em alguns casos poderia servir para não pôr a facilidade de acessos como prioridade apenas em alguns locais.

Lisboa está preparada para o envelhecimento da população?

O envelhecimento da população em Lisboa vai pôr a cidade perante dois grandes problemas: um é o da constitucionalidade. Está no artigo 72 da Constituição que todas as pessoas têm o direito de envelhecer na sua casa, na sua comunidade, o que não quer dizer ficar à janela, implica descer à rua, ir ao café, ir ao centro de dia, ir à mercearia, ir à missa e ao mercado.

E é isso que acontece?

Se Lisboa não fizer nada para melhorar as condições de acesso, teremos cada vez mais lisboetas a ficar fechados em casa a ver Lisboa da janela. Isto vai dar origem ao segundo problema, que diz respeito à sustentabilidade social. É impossível ter numa cidade um quinto da população fechada em casa inteiramente dependente.

Além disso, o plano revela que o número de turistas com 65 anos ou mais está cada vez mais próximo do número de visitantes mais jovens.

É verdade, a geração baby boom está a entrar na terceira idade e estamos a receber cada vez mais turistas acima dos 65 anos e, quanto mais avançamos na vida, mais precisamos de acessos fáceis. Hoje em dia, mais de um terço dos passageiros internacionais de cruzeiros são pensionistas e se não se fizer nada vai tornar-se um destino turístico cada vez menos competitivo e sem grandes condições para ser um ponto de turn around para os cruzeiros.

As características naturais da cidade também influenciam os acessos?

É verdade que existem sete colinas em Lisboa, mas só 25% das ruas de Lisboa é que têm uma inclinação excessiva, o que pode criar um problema de acesso. No resto da cidade, os problemas com acessos prendem-se com a dimensão dos passeios, muitas vezes em más condições, e o estacionamento selvagem. São Francisco, nos Estados Unidos, é uma cidade com mais colinas e os norte-americanos fizeram a cidade com menos inteligência do que os romanos e os fenícios fizeram Lisboa. Ainda assim, São Francisco é mais acessível.

Falo também do pavimento, em grande parte revestido de calçada.

A calçada é um produto artesanal. É feita à mão por artesãos que precisam de tempo para executar devidamente este produto. Quando um produto artesanal é feito em grande escala e em pouco tempo acaba por perder qualidade. A calçada começou a ser colocada em sítios de referência da cidade, como o Rossio ou os Restauradores. De repente, os trabalhos sem qualidade começaram a ser aplicados em todo o lado, inclusive em locais muito próximos de grandes trabalhos de calçada portuguesa, o que leva a uma certa confusão entre o que deve ser preservado ou não.

Em que locais é que isso acontece especificamente?

Na Avenida da Liberdade por exemplo. Nas placas centrais da rua existem trabalhos artesanais excelentes, mas junto às fachadas temos calçada sem qualidade. Isto não quer dizer que a câmara vá retirar a calçada daí. Cada caso vai ser analisado individualmente, sempre com o intuito de proteger a calçada de qualidade.

Está prevista a retirada da calçada em alguns pontos da cidade?

Seria uma irresponsabilidade escolher pavimentos apenas com base na estética. O conforto e a segurança dos peões, a par do custo de execução e manutenção, têm de ser tidos em conta na escolha do pavimento. A polémica da calçada surge porque as pessoas estão a pensar na calçada bem feita, de qualidade.

O que é calçada de qualidade?

A calçada de qualidade, com valor patrimonial, é feita com pedras cúbicas, devidamente facetadas e que encaixam como peças de puzzle. Uma coisa bem diferente são as restantes pedras brancas que vemos encostadas umas às outras de forma mais irregular. É preciso salvar a boa calçada que temos e só salvando a boa calçada é que conseguimos salvar o ofício de calceteiro e só salvando ofício é que conseguimos manter a arte viva. Acaba por ser um ciclo.

A câmara tem apenas dez calceteiros profissionais. São suficientes?

Não interessa o número sem falar da competência. A câmara não pode obrigar as pessoas a inscreverem-se na escola de calceteiros, até porque actualmente para pôr pedrinhas no chão não é preciso ter nenhuma formação. A calçada de antigamente era feita por artesãos que tinham anos de experiência. Enquanto não distinguirmos a boa calçada da má calçada, não há maneira de tornar a profissão de calceteiro apelativa.

As alterações na calçada têm um prazo para estar terminadas?

Uma intervenção em toda a cidade não se faz do dia para a noite. O Rossio demorou quase um ano a ser feito. Hoje em dia, quem é que está disposto a esperar um ano para que uma praça seja calcetada? Qualquer obra que os lisboetas vejam nascer na cidade foi precedida de meses de actividades ligadas a contratação, adjudicação e projecto. As intervenções nos pavimentos que já estão terminadas ou actualmente em fase de obra são anteriores ao plano.

Com o plano posto em prática quais vão ser as principais diferenças notadas pelos lisboetas?

O plano é para executar em quatro anos, mas que ninguém tenha a ilusão de que em 2017 a cidade vai estar totalmente acessível. O que vamos ter em 2017 é uma câmara municipal com o trabalho em marcha, que tem a promoção dos acessos integrada em todos os seus serviços. Os lisboetas vão também encontrar pela cidade intervenções de eliminação de barreiras, adaptação de paragens de autocarro, alargamento de passeios. Mas para isso é necessária a contribuição dos lisboetas.

E de que forma podem contribuir?

Acabar com o estacionamento selvagem em Lisboa é uma prioridade. Além de danificar os passeios, impede a passagem das pessoas e pode até pôr em perigo a vida dos peões. É preciso diminuir o número de carros que entram na cidade todos os dias para que isto deixe de acontecer.

Lisboa tem 9400 passadeiras. Há necessidade de criar mais?

Em cada uma das passadeiras, o acesso e a segurança dependem de uma série de factores. É impossível fazer as passadeiras dependerem de um qualquer serviço municipal. O que estamos a fazer é comunicar com os serviços que intervêm nas passadeiras ou imediações para que todas as decisões que tomem sejam coerentes entre si.

Qual é o investimento total para que o plano seja posto em prática?

Não se sabe quanto custa fazer de Lisboa uma cidade acessível, o valor teria sempre uma margem de erro. O que está em causa é fazer tudo aquilo que é possível e assumir compromissos claros. Sabemos apenas que 3% das verbas da Câmara Municipal de Lisboa direccionadas para obras e actividades correntes (projectos, estudos, etc.) são direccionadas para os acessos.

O plano é um desafio para a câmara?


É um grande desafio para a cidade, principalmente. Temos de pensar que já houve alturas em que os edifícios em Lisboa não tinham saneamento básico ou resistência anti-sísmica e que as ruas não eram pavimentadas. Todas estas mudanças nos acessos são oportunidades de qualificação. Queremos fazer de Lisboa uma cidade mais amiga dos lisboetas e garantir que a cidade é e continuará a ser um espaço de liberdade, que não fecha ninguém em casa.

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