OPINIÃO
Impulso jornalístico
RUI TAVARES
16/04/2014 - PÚBLICO
Deu-se ontem, na
entrevista de José Gomes Ferreira a Pedro Passos Coelho, um momento de verdade
suprema. Durante toda a tarde, em antecipação de uma conversa entre um
enamorado pela austeridade e um apaixonado pela austeridade, tinham chovido
propostas de perguntas de um a outro: “Porque não foi mais longe?”, era a mais
fácil de prever. E claro que apareceu.
A realidade,
porém, não só ultrapassou a imaginação como a atropelou e fugiu. No único
momento em que José Gomes Ferreira se lembrou de insistir numa pergunta, Pedro
Passos Coelho franziu o sobrolho e levou o jornalista a escusar-se: “Desculpe,
foi um impulso jornalístico”.
Quando um
jornalista pede desculpa por fazer jornalismo, está tudo dito. Um dia, este
Governo conseguirá que os juízes peçam desculpa por fazer justiça, os
pensionistas por estarem vivos e os desempregados por ainda não terem emigrado.
De resto, foram
vários os “impulsos jornalísticos” que foram suprimidos durante a entrevista.
Da dívida e da sua reestruturação, nada se disse. As europeias foram
mencionadas, como de costume, como uma mera paragem do autocarro político.
Ideias para o futuro de Portugal na União Europeia, zero; para qualquer futuro
que não passe pela austeridade, menos do que zero.
Assim, de
repente, há meia dúzia de impulsos jornalísticos que valeria a pena deixar aqui
para a próxima vez que o primeiro-ministro for visto em frente a um jornalista.
Seria importante saber como Pedro Passos Coelho vê o maior êxodo de portugueses
desde os anos 60, que ocorreu durante o seu Governo. Seria importante saber
como pensa Pedro Passos Coelho atingir a sustentabilidade da dívida através de
previsões de desempenho económico que praticamente não se verificaram em nenhum
país europeu neste século. Seria crucial saber que aconselha ele fazer no caso
de este plano dar errado.
Já que estamos em
vésperas de eleições europeias, seria interessante saber quais são as ideias de
Pedro Passos Coelho para a União Europeia – se é que tem algumas. Se é a favor,
ou não, de uma mudança dos tratados. Como vê a eleição de um governo europeu, e
se ela deve ser por via parlamentar ou direta. Já agora, poderia não ser mau perguntar-lhe
como acha que deve a União reagir perante a crise russo-ucraniana.
O que é mais
extraordinário de tudo isto é que Pedro Passos Coelho conseguirá, entre a
letargia da oposição e a aquiescência dos jornalistas, fazer passar a ideia de
que a estabilização na crise do euro e a correspondente descida das taxas de
juro e do risco da dívida nacional não tem nada a ver com os efeitos da ação de
Mario Draghi ao nível central europeu. E, com essa letargia, essa aquiescência,
e a distração generalizada, Pedro Passos Coelho prepara-se para sair
relativamente incólume de três anos devastadores para a economia, a sociedade e
o estado de direito português.
Quando se
escrever a história destes anos, a culpa do que sucedeu não será apenas da ação
do Governo e da troika, mas muito da omissão de quem os deveria ter
responsabilizado por essa ação.
Historiador,
cabeça de lista pelo partido Livre às eleições europeias
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