OPINIÃO
Quem pode fazer conservação e
restauro do património?
ANTÓNIO JOÃO CRUZ
10/04/2014 – PÚBLICO
O conservador-restaurador intervém o menos possível na obra. De outra
forma, os supostos tratamentos do património são, afinal, actos de destruição.
De vez em quando,
surgem na imprensa casos de intervenções que, supostamente, tinham como
objectivo conservar ou valorizar o património e que, afinal, o destroem. Há ano
e meio foi o Ecce Homo muito imaginativamente recriado por Cecilia Giménez em
Borja; pouco depois, as pinturas murais do século XVII de uma igreja de Beja
repintadas a tinta plástica por alguém com falta de vista; a seguir, a
transformação dos frescos budistas de Chaoyang, do século XVIII, num friso com
uma qualquer estética pop art; agora, com base na denúncia do Fórum de
Conservadores-Restauradores, é um conjunto de esculturas religiosas do século
XIX de Oliveira do Hospital que parece terem sido transformadas em caricaturas
para desfile de Carnaval.
Nestes casos,
como em muitos outros que não têm a mesma divulgação, o problema é o mesmo: por
um lado, alguém que faz a intervenção sem ter a mínima competência, quer ao
nível dos princípios teóricos, quer ao nível do domínio técnico, e, por outro
lado, alguém que aprova uma intervenção sem que disponha da compreensão
técnica, histórica e estética indispensável à gestão do património que tem a
seu cargo.
De acordo com as
recomendações dos organismos internacionais do sector — designadamente a
Confederação Europeia de Organizações de Conservadores-Restauradores (ECCO) e a
Rede Europeia para a Educação em Conservação e Restauro (Encore) —, apoiadas
por organismos nacionais como a Associação Profissional de
Conservadores-Restauradores de Portugal (ARP), um conservador-restaurador deve
possuir, no mínimo, formação de nível superior especificamente na área da
conservação e restauro com cinco anos de duração. Isto mesmo é exigido pelo
Decreto-Lei n.º 5/2001 a quem ingressa na carreira de conservador-restaurador
das instituições da administração central. No entanto, quem apenas verificar
este mínimo fica limitado na sua capacidade de acção, uma vez que o Decreto-Lei
n.º 140/2009 determina que as intervenções no património móvel classificado ou
em vias de classificação só podem ser dirigidas por quem, após essa formação,
possui cinco anos de experiência profissional.
Geralmente,
intervenções como as referidas são realizadas por quem não tem esta formação,
mas sim por curiosos e jeitosos que ignoram os problemas contraditórios que é
necessário resolver e conciliar. O problema é catalisado por iniciativas, cada
vez mais numerosas, que alimentam a ideia de que a conservação e restauro é
algo que qualquer um pode fazer, sobretudo se for habilidoso, bastando
frequentar, se tanto, breves acções de formação — por vezes orientadas
precisamente por quem também não tem a indispensável formação. Esta situação é
tanto mais grave quanto algumas destas iniciativas têm sido realizadas em
instituições públicas com responsabilidades na conservação do património.
Este problema
resulta de a conservação e restauro ser uma actividade que, tal como é hoje
praticada, não é suficientemente conhecida fora deste mesmo meio. A ideia comum
é a de que uma obra de arte, quando necessita tratamento, é sujeita a um
restauro que será tanto melhor quanto mais imperceptível for e visualmente mais
próximo do original deixar essa obra — algo que em casos como os referidos, no
entanto, está infinitamente longe de acontecer.
Porém, em
primeiro lugar, as intervenções não se limitam ao restauro, ou seja, à
tentativa de restituir a funcionalidade à obra — algo que, aliás, deverá ser um
último recurso. Há também a intervenção de conservação, a qual tem como
objectivo apenas interromper ou minimizar os problemas de alteração activos,
sem pretender eliminar as marcas e os danos que fazem parte da história da obra
e a valorizam, seguindo um princípio de intervenção mínima. E há a conservação
preventiva, ou preservação, que simplesmente pretende evitar o aparecimento de
problemas e, idealmente, deveria ser a intervenção por excelência. Daí o uso
das designações de "conservação" e "restauro" e de
"conservador-restaurador", em vez das comuns designações de, somente,
"restauro" e "restaurador".
Em segundo lugar,
mesmo nos casos em que é necessário realizar um restauro, são mantidos os
materiais originais ainda existentes — mesmo que, obviamente, não apresentem o
esplendor de outrora — e a intervenção é feita de forma que, através de uma observação
de pormenor, seja possível distinguir entre o que é original e o que resultou
do restauro, para isso usando diferentes materiais, ainda que compatíveis, e
específicas técnicas de aplicação dos mesmos. Além disso, tanto quanto
possível, a intervenção será reversível, isto é, feita de modo a que no futuro,
se necessário, os novos materiais possam ser removidos sem que daí resulte dano
para os materiais pré-existentes.
Neste contexto, o
conservador-restaurador não é um artista como era o restaurador de séculos
passados, ainda que tenha de dominar as técnicas artísticas. Tem de compreender
o processo de degradação a que a obra está sujeita, isolar as causas que lhe
estão subjacentes, combatê-las, tomar medidas para minimizar a possibilidade de
repetição dos problemas e assegurar que a obra está em condições de cumprir as
suas funções, sejam elas museológicas, culturais ou outras. Além de só poder
intervir depois de entender o problema que justifica a sua intervenção, tem de
lidar com uma série de questões de natureza ética e histórica, no seio de um
complexo processo de gestão do património. O conservador-restaurador não pode
realizar qualquer trabalho artístico, nem usar os materiais de modo a expressar
uma intenção artística, pois lida com obras com valor histórico, que têm marcas
que simultaneamente são marcas de degradação e marcas da história. Ele pretende
minimizar os problemas de degradação, mas eliminar o menos possível as marcas
da história — o que frequentemente é algo contraditório. O conservador-restaurador
intervém o menos possível na obra, minimizando as marcas que nela deixa,
evitando que a sua intervenção possa causar outros danos à obra, de imediato ou
no futuro, permitindo que essa mesma obra e a sua história possam ser
convenientemente usufruídas no presente e transmitidas às gerações futuras. Além
dos conhecimentos específicos da área da conservação e restauro, são para isso
indispensáveis os conhecimentos das áreas de materiais, química, física,
história da arte ou história das técnicas, entre outras. De outra forma, os
supostos tratamentos do património são, afinal, actos de destruição.
Director do
Mestrado em Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar
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