Um jovem Fernando Pessoa
panfletário e antimonárquico
LUÍS MIGUEL
QUEIRÓS 09/04/2014 - PÚBLICO
Richard Zenith e Fernando Cabral Martins revelam cinco inéditos de Pessoa
em Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal, que será lançado no dia 17
A descoberta de
alguns breves poemas inéditos que Fernando Pessoa terá escrito no início de
1906, atacando duramente a monarquia portuguesa, não só mostra que aos 17 anos
o poeta era um republicano convicto, como vem pôr em causa a convicção de que
este só recomeçara a escrever poesia em português a partir de 1908.
Richard Zenith e
Fernando Cabral Martins, que encontraram e fixaram estes textos, incluíram
cinco inéditos (quatro poemas completos e o início de um poema inacabado) em
Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal, que a Assírio & Alvim lançará dia
17 na colecção Pessoa Breve, juntamente com um volume dedicado à poesia
esotérica de Pessoa, co-organizado pelos mesmos autores.
Descontada uma
quadra que ditou à mãe aos sete anos e vários poemas em português que escreveu
em 1901 e 1902, quando passou uma temporada em Lisboa — os versos destinavam-se
a jornais que inventava para circulação familiar —, pensava-se que Fernando
Pessoa fora, até 1908, um jovem poeta exclusivamente de língua inglesa.
Se estes poemas
dos 17 anos, escritos poucos meses após o seu regresso definitivo da África do
Sul, em Setembro de 1905, acrescentam pouco ou nada, em termos literários, à
opus pessoana — serão até menos sugestivos da precocidade do autor do que a
referida juvenília de 1901-1902 —, a sua publicação justifica-se, desde logo,
por vir corrigir a ideia de que a produção lírica de Pessoa no período que vai
de 1903 a
1908 se resumira aos poemas em inglês dos heterónimos Charles Robert Anon e
Alexander Search. (Sabe-se hoje que este último só surgiu em 1906, embora
Pessoa o tenha feito assumir retrospectivamente a produção do seu predecessor.)
Mas estes poemas
também nos revelam, no seu tom indignado e panfletário, que esse adolescente
criado na cultura inglesa, e que por muito tempo ambicionou ser um poeta
inglês, mantinha ligações sentimentais suficientemente fortes ao seu país natal
para não ter perdoado à monarquia portuguesa a aceitação humilhante do Ultimato
britânico de 1890. O mesmo Pessoa que mais tarde criticará muitos aspectos da I
República, e que rejubilará com a deposição de Afonso Costa pelo ditador
Sidónio Pais, mostrava ser, aos 17 anos, um republicano de veia jacobina,
inimigo jurado da coroa e da Igreja. “Abaixo a guerra, a tirania;/ Abaixo os
reis, morra a Igreja./ Não haja coração que seja/ Inimigo da luz do dia!”,
grita o poeta no referido poema inacabado. E noutro dos inéditos agora
divulgados, lamenta-se: “(...) Com o governo que temos e o nosso rei/ Somos um carro
já sem rodas.”
Pelo seu
conteúdo, mas também por diversos outros indícios, Zenith e Cabral Martins
estão convencidos de que estes poemas datarão de 1906, e provavelmente do
início desse ano. Uma dedução que, explicou Richard Zenith ao PÚBLICO, teve em
conta os papéis em que foram escritos, o facto de estarem misturados com textos
que são seguramente desse período, a própria caligrafia de Pessoa, e ainda
algumas referências a “projectos contra a monarquia”, excepcionalmente
redigidas em português no diário que Pessoa manteve em 1906.
Os organizadores
de Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal optaram por organizar os poemas por
ordem (tanto quanto possível) cronológica, o que permite acompanhar a evolução
das posições políticas e ideológicas de Pessoa e o modo como este foi reagindo
aos regimes e governos que se sucederam no país. Republicano ferrenho nos anos
finais da monarquia constitucional, crítico, depois, dos sucessivos governos da
I República, exceptuada a ditadura do “presidente-rei” Sidónio Pais, Pessoa não
terá visto com maus olhos a instauração do Estado Novo, embora viesse a
tornar-se, no final da vida, um opositor feroz de Salazar, a quem trata por
“chatazar” num poema de 1935.
Para se situar
estes poemas antimonárquicos, convém lembrar que Pessoa começou a frequentar o
Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa logo em Outubro de 1905,
duas semanas após o seu regresso a Lisboa. Zenith está convencido de que o
contacto com o meio estudantil universitário pode ajudar a explicar a súbita
emergência desse Pessoa militantemente antimonárquico, que se mostra empenhado
em acordar os seus conterrâneos com poemas panfletários, ao mesmo tempo que,
como lembra o prefácio deste livro, continua e continuará por alguns anos “a
escrever poesia quase unicamente em inglês, em consonância com a sua ambição
literária de ombrear com Shakespeare, Milton, Shelley e Keats”.
No referido
prefácio, Zenith e Cabral Martins observam, no entanto, que à admiração de
Pessoa pela tradição literária inglesa nunca correspondeu, mesmo nos seus
tempos de Durban, um idêntico entusiasmo pelo império britânico. O jovem Pessoa
“simpatizava com os bóeres”, tendo criticado a guerra que os ingleses lhes
moveram, como simpatizava, por exemplo, com os independentistas irlandeses,
afirma-se no prefácio, que inclui várias outras informações pouco conhecidas ou
inéditas sobre a adolescência do poeta em Durban. Estas descobertas
provavelmente são resultantes das investigações que Richard Zenith anda há anos
a fazer para a sua projectada biografia de Fernando Pessoa.
Esta
solidariedade de Pessoa para com os bóeres, os irlandeses e outros humilhados
pelo poderio inglês “prendia-se, sem dúvida, com o ressentimento luso
decorrente do Ultimato britânico de 1890, que obrigou os portugueses a
renunciar, no espaço de 24 horas, a toda e qualquer pretensão de soberania
sobre uma vasta área geográfica entre Moçambique e Angola”, defendem os autores
do prefácio.
Na literatura
portuguesa, a mais célebre reacção ao Ultimato foi o Finis Patriae de Guerra
Junqueiro, publicado ainda em 1890, e cuja veemente indignação tanto atingia
abertamente a Inglaterra como a monarquia portuguesa da época, acusada não só
de ter engolido o vexame, mas de ter levado a nação a um estado de ruína moral
e material da qual já só poderia ser salva, in extremis, pela “mocidade” à qual
o poeta dedica a obra. Pessoa leu certamente Finis Patriae, e um dos inéditos
agora descobertos parece ecoar uma passagem desse livro.
Começa assim o
sétimo poema do livro de Junqueiro, intitulado Falam Condenados: “Faminto, nu,
sem mãe, sem leito,/ Roubei um pão./ Quem vai além de farda e de grã-cruz ao
peito?/ - Um ladrão!// Todos os crimes
da Desgraça/ Em mim reúno./ Quem vai além tirado a parelhas de raça?/ - Um
gatuno! (...).” Uma toada que é difícil não reconhecer neste poema que Pessoa
terá escrito seis anos mais tarde: “O império do chapéu, do colarinho e bota;/
Quem está além, sentado, altivo, sobre um trono?/ - Um idiota.// Adeus a bons e
sãos critérios./ Tudo é baldado, tudo fútil:/ Morre o país. Dizei quem rege os
ministérios?/ — Um inútil.”
Além dos
referidos cinco inéditos, os organizadores encontraram ainda um sexto, que
acabaram por não incluir neste volume, mas cuja transcrição cederam ao PÚBLICO,
que aqui o divulga em primeira mão. São duas quadras em que Pessoa sugere que
os insultos que dirige ao rei — “tirano”, “idiota”, “chimpanzé” — seriam
demasiado frouxos para fazer justiça ao seu primeiro-ministro, José Luciano,
que presidia ao conselho de ministros quando Portugal recebeu o Ultimato
britânico, no dia 11 de Janeiro de 1890. O seu Governo cairia três dias depois.
Mensagem e Outros
Poemas sobre Portugal apresenta ainda textos que, não sendo literalmente
inéditos, são muito pouco conhecidos, e cuja leitura foi, em alguns casos,
bastante melhorada, como acontece com o segundo poema que aqui transcrevemos,
que termina com este significativo dístico final: “Sou todo Fogo,
Multiplicidade,/ Na névoa da minha unidade.”
Dubitativamente
datado de 1913, é um poema francamente relevante, a demonstrar que, apesar de
tudo, continua a valer a pena esgaravatar no espólio pessoano e regressar aos
manuscritos para aperfeiçoar leituras.
Foi isso, de
resto, o que Zenith e Cabral Martins fizeram para organizar este livro, mesmo
se depois nos pouparam deliberadamente a esse excesso de informações genéticas
que há muito transbordou das edições propriamente críticas da obra de Pessoa
para encharcar as que presumivelmente se destinam ao grande público.
Dois poemas de
Fernando Pessoa
Gosto mui pouco
de falar no inferno
Posto que da
ideia a minha alma se ri,
É por isto que eu
até aqui
Não tinha bem
falado do governo.
Chamei ao rei
idiota (até tirano),
Chamei-lhe
chimpanzé e pobre mono.
Disse isto e
aquilo, dele e do seu trono.
Agora, o que
dizer de Zé Luciano?
[Inédito,
provavelmente de 1906, que não foi incluído nesta compilação]
Sou o seu maior
grito,
A sua comunhão
carnal em homem
Com o Infinito.
O Deus Lusíada
encarnou em mim.
O Futuro
esculpiu-me em resumi-lo
E todas cousas
que não têm fim
Couberam no meu
espírito intranquilo.
Infantes, Gamas,
Albuquerques, Castros —
A minha voz é
múltipla de os ter.
Brilham todos em
mim tornados astros
E eu sou o Céu,
excedo-os para os conter...
Alheia-me da vida
o orgulho meu.
Despersonaliza-me
num Precursor
Dum Novo Deus maior
Que o Deus
cristão, novo Sol de outro Céu.
E de tão alto ir
minha ânsia alada
Já não sei se sou
eu, se sou o mar
Se sou a minha
Raça ou Deus, no eu cravada
A abstracta ordem
do Rei de Navegar.
Sou todo Fogo,
Multiplicidade,
Na névoa da minha
unidade.
[Nova e melhorada
leitura do manuscrito de um poema datável de 1913]
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