OPINIÃO
O que cheirou a bafio no 25 de
Abril
JOSÉ PACHECO PEREIRA
26/04/2014 – PÚBLICO
Há um único fio
condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são protestos contra o
Governo e o Presidente da República, são protestos contra a situação.
De todas as
comemorações do 25 de Abril, a única que verdadeiramente cheirou a bafio foi o
almoço que o primeiro-ministro ofereceu, não se sabe em que qualidade, a alguns
militantes da JSD e a simpatizantes do Governo em meia dúzia de associações
juvenis, escolhidas a dedo e cognominados de “líderes de vários movimentos
estudantis e juvenis”.
A lista incluiu
associações académicas de Coimbra, Lisboa e Algarve, muitas das quais estiveram
na vanguarda da defesa da praxe, o Corpo Nacional de Escutas, a Conexão
Lusófona e as associações Synergia, Zunzum, Sport Club Operário de Cem Soldos,
Suão e Moju. Não se sabe qual a sua representatividade, a começar pela
capacidade de representarem a “juventude”, e os sites desses “movimentos”
revelam bem a dependência dos apoios das organizações de juventude estatais,
como o Instituto Português do Desporto e Juventude, cujo membro da tutela
esteve presente, e autarquias ligadas ao PSD. Não me recordo de ver algum dos
blogues governamentais mais assanhados contra tudo o que sejam ajudas de Estado
protestarem. Que se saiba no almoço não houve qualquer reivindicação ou
protesto. Estes “jovens” portam-se bem.
Passos Coelho,
que deve ter do bafio um conceito muito especial, usou uma metáfora hortícola
para falar da "liberdade e a democracia [que] têm de ser regadas com muito
cuidado todos os dias". De novo, usou a dicotomia menos inocente que há
nos nossos dias, a dos jovens e dos velhos, que esteve presente nas suas
palavras: “O que peço é a esses que não têm com que comparar que não deixem de
acreditar na capacidade de todos os dias fortalecer o espirito da liberdade e
da democracia, sem a qual a nossa sociedade fica com menos futuro".
Fazer de conta
que o Governo actua essencialmente para os jovens ou em nome dos jovens,
presente no perverso conceito de “justiça geracional” – sacrifiquem-se
duramente os avós e os pais, em nome do benefício hipotético dos filhos e dos
netos – é um dos leitmotivs da propaganda governamental e o almoço
“comemorativo” do 25 de Abril serviu para isso. Os velhos estão na rua a
manifestar-se, os jovens em fila ordenada para os cumprimentos ao
primeiro-ministro. O passado “bafiento” comemora o 25 de Abril defendendo
egoisticamente as suas “regalias” e roubando aos mais jovens o futuro. O futuro
zangado foi sentar-se à mesa do primeiro-ministro com um disciplinado
guardanapo.
Comparadas com
este solene e composto almoço de fato e gravata, até as comemorações do 25 de
Abril na Assembleia foram um verdadeiro elixir de juventude e muito mais
arejadas. Houve discursos melhores do que o costume, não houve fantochadas para
épater os jornalistas como um célebre discurso de Aguiar Branco citando Lenine
e Rosa Luxemburgo a partir da Wikipedia e cheio de erros, e, mesmo do lado
governamental, discursos como o do representante do CDS, Filipe Lobo de Ávila,
foi moderado e digno. A presidente da Assembleia fez um discurso teórico, mas
certeiro sobre a democracia, mais reflexivo do que costuma ouvir-se naquela
casa, e o Presidente começou bem e acabou mal, enredado nos seus próprios
demónios. O PS conseguir ser a nulidade mais completa, com uma retórica sem
convicção nem substância.
Depois há a rua.
Umas dezenas de militantes da extrema-direita manifestaram-se junto da
Assembleia, mas as televisões (que eu vi) fugiram de os mostrar em directo numa
clara violação do direito à informação. Eu não gosto do que eles dizem e
pensam, mas não compreendo por que razão não têm direito a serem tratados como
notícia. Não me venham com o argumento de que eram poucos, porque o número
escasso de pessoas que já vi em protestos locais da CGTP e mesmo manifestantes
singulares nas galerias da Assembleia têm muitas vezes um longo tratamento
noticioso e com destaque.
O resto da rua
foi uma enorme manifestação que mobilizou centenas de milhares de pessoas em
dois dias de protestos, em Lisboa, no Porto, um pouco por todo o país. Fizeram-no
num dia que permitia um fim-de-semana mais prolongado e, na zona Sul do país,
com um sol esplêndido para ir para a praia. No Norte do país, no Porto em
particular, debaixo de chuva. As manifestações não foram vencidas pelo conforto
e isso mostra militância.
Há um único fio
condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são protestos contra o
Governo e o Presidente da República, são protestos contra a situação. E embora
houvesse alguma organização, são resultado de uma disposição genuína e
espontânea, em que os partidos e sindicatos têm papel diferente do habitual. Não
estão lá por serem do PCP, do BE, da CGTP, do PS, do PSD e da UGT que são
contra o Governo, não estão lá por serem do “Que se lixe a troika”, ou da
complicada e múltipla fauna de grupos e grupúsculos de protesto, de género, de
single issue, da cultura, etc., etc. Estão lá por causa do 25 de Abril revisto
e ampliado dos dias de hoje, estão lá porque a data já longínqua os ajuda a
mobilizarem-se no presente. Dá-lhes músicas como a Grândola, poemas como os da
Sophia e do Ary dos Santos, imagens como as dos “rapazes dos tanques” nas fotos
de Alfredo Cunha, de Gageiro ou de Miranda Castela, histórias de proveito e
exemplo, de resistência e coragem, figuras e ícones, ou seja, dá-lhes uma
identidade que vem do passado para o presente.
E essa identidade
ainda tem alguma capacidade de transmissão geracional. Eu disse alguma, não
disse muita. Mas essa alguma é ela própria nos dias que correm tão excepcional
que merece atenção. O 25 de Abril que se viveu no dia de ontem não foi o de
1974, mas o de 2014 feito em nome do de 1974. E muita gente apareceu, em
manifestações menos soturnas do que as habituais, porque ainda há um resto de
alegria dos primeiros dias após Abril de 1974 que ainda permanece. Recordar o
25 de Abril de 1974 é instrumental para as lutas do presente e daí o incómodo
do “bafio”.
É relevante o
número elevadíssimo de manifestantes? Claro que é, até pelo contraste com o
almofadado almoço de S. Bento, que significa que o PSD e o CDS nascidos com o
25 de Abril estão hoje acossados em todos os lados menos nos salões. Perderam a
rua, não porque o desejassem – tenho a certeza de que se pudessem fazer uma
grande manifestação, ou mesmo uma pequena manifestação de apoio ao Governo,
certamente que a fariam. Mas não podem. Hoje, os partidos do poder não
conseguiam mobilizar para uma rua qualquer nem quinhentas pessoas, puxando por
todos os cordelinhos e os fundos largos à sua disposição. Conseguem duas mil
nuns almoços de campanha, arregimentados pela camisola e pelos pequenos poderes
locais, em certas zonas do país. Mas se o apelo for por causas tão genéricas
como o apoio ao Governo, como muitos franceses fizeram a De Gaulle contra o
Maio de 1968, então ninguém lá vai. Este abandono da rua não é por a rua ser de
“esquerda”, mas porque a actual “direita” no poder estar de mal com o seu país,
muito de mal.
Se o “1640” , a ocorrer
oportunamente uma semana antes das eleições europeias, fosse mais do que uma
boutade ou um soundbite de Paulo Portas, e fosse para tomar a sério, a rua no
25 de Abril seria o equivalente a uma gigantesca e colectiva defenestração dos
Miguel de Vasconcelos da actualidade. E isso é bem pouco “bafiento”, muito
juvenil e fresco quanto sábio e experimentado. A
Constituição dá os meios, a rua a vontade.
Sem comentários:
Enviar um comentário