OPINIÃO
Um dia 25 de Abril quase normal
TERESA DE SOUSA
27/04/2014 – PÚBLICO
É a pertença à Europa e a
partilha do euro que nos garante que o nosso futuro será aquilo que,
maioritariamente, quisemos ser no 25 de Abril: um país democrático e
desenvolvido.
1. Depois de
tanta polémica, acabámos por ter um 25 de Abril quase normal. Na Assembleia da
República (há formalidades que as democracias não dispensam), apenas um
discurso conseguiu estragar o tom de razoável contenção das intervenções dos
partidos.
Os dois jovens
que o Bloco e o PP encarregaram de falar, nascidos e criados em democracia e
responsáveis pelo seu futuro, souberam dosear o significado que tem, para eles,
uma revolução que nos restituiu a liberdade, com a crítica (num caso) ou a
defesa (noutro) da situação em que o país se encontra. Jerónimo de Sousa
cumprir os mínimos obrigatórios mas mostrou, uma vez mais, que o Partido
Comunista é um partido “institucional”. Apenas vacilou quando teve de responder
à incómoda pergunta sobre o cerco da Constituinte, aliás em flagrante contraste
com a defesa que hoje faz da Constituição. O PCP votou contra todas as revisões
constitucionais para, depois, fazer delas a sua barreira contra os sucessivos
governos que, sejam eles do PSD ou do PS, são sempre de direita. Sendo já uma
relíquia, funciona como uma válvula de escape que ajuda a impedir o
desenvolvimento de partidos extremistas em Portugal.
António José
Seguro também não fugiu à regra. Resolveu bem a polémica em torno dos capitães
de Abril. Agradeceu-lhe a todos, em geral, pelo acto heróico que nos restituiu
a liberdade numa noite. Particularizou dois, cuja escolha não foi de certeza
arbitrária. Salgueiro Maia, que simboliza a genuinidade despojada dos militares
que dispensou qualquer protagonismo. Marques Júnior que, querendo participar na
vida política, o fez através de um partido político. Centrou a sua intervenção
na Europa, que é a condição essencial do nosso destino. Falou de “dignidade
humana” que é uma coisa fundamental em qualquer sociedade democrática e que tem
sido manifestamente ignorada, para não dizer pior, pelo Governo vigente. E a
dignidade humana implica encarar de frente o desemprego estrutural (que o
Presidente lembrou), aquele que cai sobre a vida de gente com 40 ou 50 anos,
geralmente pouco qualificada, à qual se diz que já não tem lugar nesta
sociedade. Ou os pensionistas que, no fim das suas vidas, são mais ou menos
tratados como “números” que apenas servem para baralhar as contas certas deste
governo. Para que não nos restassem dúvidas sobre este governo de “ovnis”, Luís
Montenegro encarregou-se de estragar a “festa” com uma muito infeliz comparação
entre a noite fascista e a “noite” dos governos anteriores que nos levaram ao
resgate e ao actual governo “ redentor”. O que as pessoas vêem não é isso. É um
governo que destruiu muita coisa e que agora não sabe como reconstruir.
Finalmente, o
Presidente. O seu comportamento tem sido errático, entre o apoio e a crítica ao
Governo. Podemos criticá-lo por uma muito pouco corajosa interpretação dos seus
poderes. O seu discurso foi sobre duas ou três coisas que mereciam ser ditas. O
dever de “pedagogia democrática” sobre a diferença abissal entre o que era este
país antes do 25 de Abril e aquele que é hoje. A forma como, desta vez, apelou
ao consenso foi bastante mais realista. Já se sabe que, até às eleições do
próximo ano, o confronto vai prevalecer sobre o compromisso. Mas também sabemos
que há um conjunto de objectivos de longo prazo que comprometem os dois maiores
partidos e que vão ter de ser negociados. Lembrou que isso foi possível no
passado, em torno das sucessivas revisões constitucionais e em torno da opção
europeia do país (incluindo o euro). Não interessa se com estes protagonistas
ou com outros. Vai ter de ser assim, até pelos compromissos que PS e PSD já
assumiram com Bruxelas. A terceira questão que levantou foi sobre o debate
político que, na sua forma actual, só serve para aumentar ainda mais a falta de
credibilidade dos partidos e da política. O debate político entre ideias
diferentes é a essência da democracia. O problema é que aquele a que assistimos
assenta mais no insulto do que numa argumentação civilizada. Apenas serve para
aumentar a desesperança das pessoas.
2. Fora da
Assembleia, o 25 de Abril também foi quase normal. O Carmo encheu-se de gente
que está desiludida com o resultado dos 40 anos de democracia e que quer
contestar o Governo, mais do que gente que concorda com as ameaças veladas de
Vasco Lourenço ou a sua incapacidade para compreender que Portugal não é a
Turquia Kemalista ou a Venezuela de Chávez, mas sim uma democracia cheia de
defeitos como todas as democracias, europeia e ocidental. A manifestação
tradicional da Avenida da Liberdade mostrou muita gente descontente mas pacífica,
desfilando em família e gozando o sol e o convívio. Muito longe das
advertências de Lourenço sobre uma alegada inevitabilidade da violência e do
confronto. Essa “violência”, que justificaria um “regresso” dos capitães, não
existe. Não há golpes militares na Europa e em democracia. As Forças Armadas
são profissionais. O mundo deu, entretanto, muitas voltas que não fazem parte
do raciocínio dos capitães, fixados num tempo que há muito deixou de existir. E
também porque não será preciso esperar muito para decidir a sorte deste
Governo: isso faz-se com um papelinho que preenchemos, dobramos em quatro e
colocamos na urna de voto.
A memória das
pessoas é curta e muita gente já não viveu o 25 de Abril nem os quase dois anos
subsequentes durante os quais houve uma luta tremenda e muito dura para
determinar o que havíamos de fazer com a liberdade. Ontem, no Carmo, as pessoas
voltaram a gritar “Soares é fixe”, como na campanha presidencial de 1986.
Muitas delas nem sequer devem ter votado nele, muito à direita para o seu
gosto. O país deve-lhe as duas melhores coisas que conseguimos: a democracia e
a Europa, e isso, ninguém pode esquecer.
3. Nessa altura,
a situação internacional era outra. Vivíamos em plena Guerra Fria, assente no
equilíbrio do terror (destruição nuclear mútua) na Europa e pelos confrontos
indirectos por entrepostos países. A América estava na defensiva por causa da
derrota no Vietname. É isso que explica a “rendição” de Kissinger à “teoria da
vacina”, mesmo que no mais ocidental dos países europeus. Em Helsínquia, o
Ocidente e a União Soviética estavam a negociar uma plataforma que se veio a
chamar Acta Final de Helsínquia, que mantivesse o status quo europeu: uma
espécie de mútua aceitação de não interferência. A Alemanha de Willy Brandt ameaçou
interromper as negociações, se a União Soviética tivesse a pretensão de apoiar
um regime comunista em Portugal. Cunhal recuou também por causa disso e porque
o destino das colónias já estava decidido a favor de Moscovo. O primeiro choque
petrolífero (73) empurrava as democracias desenvolvidas para a recessão.
Hoje, a Europa
que nos levaria (e, em grande medida, levou) à modernidade e ao desenvolvimento
parece-nos hostil. Está a viver uma crise existencial que ainda não encontrou
uma razão de ser para o futuro. Mas é a pertença a essa Europa e a partilha do
euro que nos garante que o nosso futuro será aquilo que, maioritariamente,
quisemos ser no 25 de Abril: um país democrático e desenvolvido. A tentação do
Atlântico ditar-nos-ia inexoravelmente um futuro muito mais triste. A nós e às
gerações futuras, para as quais a Europa e a democracia são como o ar que
respiram. Precisamos, em suma, de um poder político que respeite a dignidade
humana e que saiba tirar partido das enormes vantagens acumuladas nestes 40
anos: na educação, na ciência, na civilidade, na inclusão. Compreende-se que
alguns capitães de Abril queiram acertar as suas contas com um país que acham
que não os valorizou o suficiente. Tiveram direito à palavra, mesmo que as suas
palavras tenham por vezes tocado a fronteira da democracia.
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