“Quarenta anos depois, há ainda
capitães de Abril que se vêem como “vigilantes” da democracia e portadores de
direitos especiais sobre ela. Foram sempre convidados para a celebração
parlamentar da revolução. Tiveram o seu palco na tradicional manifestação da
Avenida da Liberdade. Têm o direito à palavra e à actividade política como
qualquer outro cidadão. A que propósito e com que legitimidade Vasco Lourenço
quer discursar nas cerimónias do Parlamento? Ontem admitia ao i a tentação de
se candidatar às presidenciais, o que é perfeitamente legítimo. Na mesma
entrevista culpa os partidos pela crise em que estamos mergulhados e admite que
o seu desejo era uma democracia representativa misturada com uma boa dose de
democracia de base, seja lá o que isto quer dizer. Perdeu a noção do tempo e
das coisas. Continua a pensar que tem uma espécie de droit de regard sobre as
decisões que o país toma. Esse estatuto não existe em democracia, onde a lei é
a regra e onde a única fonte de legitimidade são os votos dos cidadãos. Será
muito difícil de compreender estas verdades básicas? Assunção Esteves disse-lhe
aquilo que tinha exactamente a dizer. Se dissesse o contrário é que nos
deveríamos preocupar. A revolta contra o Governo, contra a austeridade, contra
as injustiças pode ser manifestada pacificamente todos os dias. O debate sobre
o destino do país pode ser feito em qualquer lugar. Mas o actual Governo, seja
qual for o juízo que façamos dele, tem a única legitimidade que existe em
democracia, que é a do voto. Que algumas pessoas ainda achem que são donas da
revolução que nos restituiu a liberdade é triste, embora não chegue a ser
perigoso.”
Teresa de Sousa, “O
25 de Abril e os seus capitães” , hoje no PÚBLICO
OPINIÃO
O 25 de Abril e os seus capitães
TERESA DE SOUSA
13/04/2014 - PÚBLICO
A nossa democracia é imperfeita? Pois é, como todas as outras. Mas querer
“aperfeiçoar” é meio caminho para acabar com ela.
1. O verdadeiro
significado do 25 de Abril é muito simples: restituiu a cada um de nós a
liberdade, incluindo a liberdade de escolher o que fazer dela. Os capitães de
Abril merecem o nosso respeito porque derrubaram um regime autoritário e
opressivo que, durante 48 anos, manteve o país na miséria moral e material,
impediu qualquer espécie de liberdade, perseguiu, prendeu ou forçou ao exílio
os que o combatiam.
As motivações dos
militares foram várias. Uns, como Salgueiro Maia, agiram com uma coragem e um
dever de consciência exemplares para acabar com “o estado a que isto chegou”.
Outros, talvez a maioria, estavam fartos de uma guerra em nome da defesa de um
“império” que já estava fora do seu tempo. Outros ainda tinham uma consciência
política mais profunda, sobretudo aqueles que mantinham uma ligação militante
ao Partido Comunista. É bom também não esquecer que se sentiram bastante “confortados”
pela “dissensão” do general Spínola, tornada pública com o seu livro Portugal e
o Futuro. Spínola, que não era um democrata, como alguns dos capitães de Abril
também não eram, percebeu a inutilidade de uma guerra que estava condenada à
derrota e que impedia qualquer evolução do regime.
Os quase dois
anos seguintes foram os anos de combate pelo destino a dar a essa liberdade.
Anos muito duros, convém recordar. Esse combate reflectiu-se no Movimento das
Forças Armadas. A parte mais radical, ligada ao Partido Comunista e a alguns
movimentos de extrema-esquerda, conseguiu impor-se durante os primeiros tempos.
Os tempos dos saneamentos selvagens no Estado e nas empresas, das
nacionalizações, da ocupação dos jornais (também com os respectivos saneamentos
políticos), dos mandatos em branco do Copcon. Outros, mais moderados, defendiam
o chamado “regime peruano”, numa visão terceiro-mundista que se afastaria das
imperfeições das democracias capitalistas ocidentais e manteria a natureza
“revolucionária” do novo regime, reservando aos militares o papel de garante
supremo. Outros ainda perceberam que o rumo da revolução teria de levar em
conta os partidos democráticos nascentes e os seus programas políticos, que
defendiam uma democracia parlamentar, europeia e ocidental. Foram decisivos no
25 de Novembro, mas apenas depois da realização das eleições para a
Constituinte, a 25 de Abril de 1975, que uma boa parte do MFA ainda tentou
adiar, alegando a falta de preparação dos portugueses (o velho argumento de
Salazar) e acabando por apelar (sem sucesso) ao voto em branco. Ao contrário
das expectativas (não havia sondagens credíveis nessa altura), as primeiras
eleições livres deram ao PS de Mário Soares e ao PSD de Sá Carneiro uma votação
largamente maioritária (38 e 26 por cento, respectivamente) e um triste
resultado ao PCP (14 por cento). Cunhal e a parte do MFA que controlava
rejeitaram o veredicto das urnas, argumentando com o veredicto das ruas. Mário
Soares, que é o verdadeiro pai da nossa democracia liberal, ainda teve de
mostrar que também conseguia vencer esse combate, com a manifestação da
Alameda, em Lisboa.
O 25 de Novembro
pôs fim a este período turbulento e perigoso. Cunhal soube recuar a tempo, não
sem antes ter garantido a vitória da União Soviética nas colónias. As eleições
legislativas de 1976 confirmaram, sem margem para dúvida, qual era a vontade de
uma imensa maioria de portugueses. Seguimos o nosso destino democrático e
europeu. A Europa passou a ser uma espécie de “programa comum” da democracia. Soares
provou a Kissinger que não seria o Kerenski da revolução portuguesa nem
precisava que lhe arranjasse um lugar numa universidade americana. Obteve o
apoio da Alemanha de Willy Brandt e Helmut Schmidt, da Suécia de Olof Palme ou
do Reino Unido de James Callaghan para garantir que o caminho da democracia não
sofreria qualquer revés e para evitar uma situação económica muito difícil. A
Europa continuava connosco e era o nosso destino.
A primeira
revisão constitucional acabou com a tutela militar do Conselho da Revolução.
Seria preciso chegar à primeira volta das eleições presidenciais de 1986 para
clarificar definitivamente a natureza do centro-esquerda. O PCP e Ramalho Eanes
(com o apoio de algumas franjas socialistas) viram nestas eleições uma oportunidade
para derrotar definitivamente Mário Soares. Encontraram o melhor candidato
possível: Francisco Salgado Zenha, o eterno número dois do PS. Soares chefiara
um Governo do bloco central que aplicara durante três anos uma dose brutal de
austeridade, imposta pelo FMI. A sua impopularidade era total. Maria de Lourdes
Pintasilgo, preterida por Eanes, apresentara a sua candidatura em nome de uma
esquerda romântica que queria “aprofundar” a democracia. A direita tinha um só
candidato: Freitas do Amaral. Sabemos o desfecho. O PS seria um partido
social-democrata europeu e moderno. O mundo deu muitas voltas. Acabou a Guerra
Fria e, com ela, a União Soviética. A Europa alargou-se à dimensão do
continente. Com crise ou sem crise, Portugal é hoje um país infinitamente mais
livre, mais desenvolvido e mais justo. Com um pequeno problema.
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