Teatro do Bolhão abriu as portas
do seu novo palácio
LUÍS MIGUEL
QUEIRÓS 27/03/2015 - PÚBLICO
O novo Teatro do Bolhão,
instalado num esplendoroso palácio portuense do século XIX que demorou uma
década a recuperar, abriu as portas esta sexta-feira, dia mundial do teatro.
Depois de quase
dez anos de obras, o antigo palácio do conde do Bolhão, um belíssimo edifício
classificado no centro do Porto, reabriu esta sexta-feira como sede da Academia
Contemporânea do Espectáculo/ Teatro do Bolhão.
Final feliz para
uma história de persistência que envolveu campanhas nas redes sociais para
pagar uma escadaria e angariação de mecenato um bocadinho à má fila, como essa
viagem de Alfa Lisboa-Porto em que o actor António Capelo, director da
companhia Teatro do Bolhão, convenceu um ocasional companheiro de viagem, que
não conhecia de lado nenhum, a pagar os 700 metros quadrados de soalho do novo
auditório de 140 lugares construído nas traseiras do palacete.
Depois de uma
conferência de imprensa para apresentar a programação até Julho, a inauguração
da nova sede começou às 19h00 com uma visita guiada à casa onde o riquíssimo
comerciante António de Sousa Guimarães – que mandou erguer este palacete em
1944 – dava as mais badaladas e concorridas festas a que a elite portuense
assistiu na segunda metade do século XIX. E como se impunha no dia mundial do
teatro, os anfitriões da festa subiram depois ao palco para fechar o programa
com a estreia de Édipo, uma encenação do japonês Kuniaki Ida da peça de
Sófocles, interpretada por apenas três actores e um coro: António Capelo, João
Paulo Costa e João Cardoso assumem múltiplos papéis, como faziam os actores
gregos da Antiguidade.
Recuperar o
degradado palácio do conde do Bolhão e adaptá-lo às necessidades de uma escola
e companhia de teatro custou 2,8 milhões de euros, e a soma não parece
exagerada quando olhamos para a sucessão de salas com os seus estuques,
pinturas e talhas, originalmente criados por alguns dos melhores artistas
portugueses da época.
“Costumo dizer
aos nossos alunos que vão estudar na escola de teatro mais bonita do mundo”,
conta António Capelo. E é bem capaz de ter razão. Se o Porto já tinha na Lello
uma das mais bonitas livrarias do planeta, procuradíssima por turistas, o risco
é que o serviço de educação do Teatro do Bolhão, que será responsável por um
programa regular de visitas guiadas bilingues ao edifício, se veja em breve sem
mãos a medir.
A recuperação do
edifício foi projectada pelo arquitecto José Gigante, que trabalhou em estreita
colaboração com os responsáveis da escola. Uma das dificuldades a vencer era a
transformação de um anexo nas traseiras, onde funcionava a Litografia do
Bolhão, no auditório principal da companhia (o salão nobre do edifício original
será usado para peças mais pequenas e
experimentais, explica Capelo). Gigante optou por literalmente descolar
o anexo do edifício, criando entre os dois uma espécie de rua, ao ar livre.
Sonhado pelos
responsáveis da Academia Contemporânea do Espectáculo há uma dúzia de anos, o
projecto, que implicou antes de mais a compra do edifício pela Câmara do Porto,
enfrentou todo o tipo de dificuldades e houve momentos em que, confessa Capelo,
pensaram mesmo que “ia morrer na praia” por falta de financiamento. Se a obra
principal foi essencialmente paga por fundos europeus e contribuições dos
ministérios da Educação e da Cultura, e ainda da autarquia, foi preciso
arranjar um mecenas diferente para pagar o complexo restauro de cada uma das
principais salas, e Capelo conta, divertido, que conseguiu um inesperado
financiamento, com o qual pagou o chão do novo auditório, numa viagem de
comboio. “Percebi às tantas que o senhor que vinha ao meu lado era o presidente
da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, e disse-lhe:
‘Então temos de conversar’…”.
E no fim ainda
faltavam 35 mil euros para restaurar os 68 degraus da escadaria principal. Já
não sabendo a quem recorrer, Capelo lançou, inicialmente na sua própria página
do Facebook, a campanha de angariação de fundos Degrau a Degrau. Podia contribuir-se
com apenas um euro, mas dez euros já davam direito a ver o nome inscrito nos
degraus, cem ainda compravam um ano de acesso livre aos espectáculos, e por 500
comprava-se um degrau inteiro.
É divertido ir
reparando nas inscrições enquanto se sobe as escadas e ler os nomes de cafés,
mercearias e hotéis a par de sindicatos, associações várias e um grande número
de particulares. Um dos degraus parece a direcção (antiga e actual) do Bloco de
Esquerda, registando as contribuições de Francisco Louçã, Marisa Matias, Renato
Soeiro, Catarina Martins ou Alda de Sousa. Outro foi integralmente recuperado a
expensas de um grupo de amigos de Pedorido, em Castelo de Paiva, a terra natal
de Capelo. E se levantar os olhos do chão e começar a reparar nos candeeiros,
saiba que muitos deles já em tempos iluminaram a sala e os corredores do Teatro
Rivoli.
Enquanto a escola
se vai mudando lentamente para a sua nova casa, que só ocupará verdadeiramente
a partir do próximo ano lectivo, a companhia Teatro do Bolhão tem já agendados
vários espectáculos para os próximos meses, alguns a apresentar no grande
auditório, outros no salão nobre. A ideia, diz Capelo, “é revisitar coisas que
para nós foram emblemáticas”. Depois de Édipo, irá ser possível rever Começar a
Acabar, uma encenação de João Lagarto a partir de Samuel Beckett, um
espectáculo de teatro musical, A Revolução Dos Que Não Sabem Dizer Nós, um
espectáculo de Joana Providência, Território e, única estreia até Julho, Almas
Mortas, a partir da novela homónima de Gogol. A estas peças somar-se-ão ainda
vários concertos e outros espectáculos musicais que o Teatro do Bolhão irá
acolher no âmbito de uma parceria com a associação cultural Turbina.
O palácio do
conde do Bolhão, que a Câmara do Porto cedeu ao Teatro do Bolhão por 50 anos,
não é apenas um edifício esplendoroso, tem também uma história interessante. A
imagem pública do conde, um homem que albergou mais do que uma vez a família
real, começou a dado momento a declinar, e o comerciante nobilitado chegou
mesmo a pagar ao seu amigo Camilo Castelo Branco para escrever boas coisas a
seu respeito, numa altura em que a mulher lhe fugira, acusando-o de lhe bater. Acusado
de falsificar moeda no Brasil, acabou arruinado e teve de vender o palácio a um
credor, o visconde de Fragozelas.
Em 1890, Emílio
Biel, fotógrafo da Casa Real e um dos grandes pioneiros da fotografia
portuguesa, comprou o edifício e instalou ali o seu estúdio. Injustamente
atacado no início da I Guerra por ser alemão, foi nesta casa que morreu,
amargurado, em 1915. O palácio terá ainda sido efemeramente arrendado por Raul
de Caldevilla, pioneiro da publicidade e fundador da Invicta Filmes, que ali
terá instalado a sua empresa publicitária, antes de ser adquirido pelos
proprietários da Litografia do Bolhão, que ali funcionou durante largas décadas
até ao início dos anos 90.
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