Cultura e património cultural:
ideias para o futuro
LUÍS RAPOSO
09/03/2015 - PÚBLICO
É essencial a celebração de
alguma espécie de pacto de regime entre todas as forças parlamentares, no
sentido de ser atingido o tão desejado patamar de 1% do PIB para a Cultura.
Bem sabemos que o tempo não está
para grandes reflexões estratégicas. Sobretudo na área da Cultura e, dentro
dela, do património cultural e dos museus. Tudo aqui se vem medindo no curto
prazo, por entre jogos de máscaras.
Esgrimem-se
números de visitantes, mas omitem-se as receitas que demonstrariam o descalabro
da capitulação do interesse público, afundado em ambiente de “sempre em festa”,
que aproveita sobretudo a privados. Afirma-se o apego à cidadania, mas reduz-se
dos 14 para os 12 anos a entrada gratuita em museus — isto quando em quase toda
a Europa tal gratuitidade vai até aos 18 anos (ou até aos 25 anos no caso dos
estudantes), idade para a qual, até entre nós, se alargou recentemente a
isenção de taxas moderadoras na Saúde. No fundo, no fundo, deixou-se de
acreditar na Cultura enquanto força de transformação social e começam a
erguer-se os espectros dos que pretendem de novo separar “cultura viva” ou
performativa, de “cultura morta” ou patrimonial. O quadro político
previsivelmente emergente do ciclo eleitoral que ora começa dá o mote aos
mesmos do ciclo anterior, que aliás facilmente se irmanarão com os actuais,
bastando para isso encontrar um qualquer “pote de mel” onde todos possam meter
a mão. E não admira que assim seja porque se há área da governação facilitadora
do exercício do bloco central, ela é a da Cultura: basta recordar como o último
secretário de Estado do Governo Sócrates veio depois a merecer a confiança do
Governo Coelho, que dele fez director-geral.
Poderá até ser
que à Cultura seja novamente atribuído estatuto ministerial. Mas não passará de
flor na lapela se for ainda mais residual do que já hoje. E tal poderá
acontecer porque para o bloco central dos interesses o futuro estará na
Economia e no Turismo, local onde se geram receitas capazes de financiar
clientelas e promover projectos como o novo Museus dos Coches. Ora, sendo fora
de dúvidas a relevância dos museus e monumentos nacionais para o Turismo, do
qual é mais do que justo possam receber receitas, a verdade é que o património
cultural do País não apenas está longe de se resumir aos bens de interesse
turístico, como deve ser entendido sobretudo como uma memória de soberania,
posta ao serviço da emancipação cidadã — asserção que pode até ser banal, mas é
talvez chegada a altura de reafirmar de forma clara.
Defendemos o
paradigma da Cultura para o património cultural português, em todas as suas
dimensões: arte e arquitectura, arqueologia, museus, tradições populares, etc. Concordamos
com a reconstituição de um Ministério da Cultura, desejável em si mesmo, pelo
simbolismo e acréscimo de capacidade funcional. Mas entendemos ser mais
essencial a celebração de alguma espécie de pacto de regime entre todas as
forças parlamentares, no sentido de em horizonte quantificado e credível (duas
a três legislaturas, talvez) ser atingido o tão desejado patamar de 1% do PIB
para a Cultura, directamente e sem os sofismas de contar com verbas de outros
ministérios.
Lutamos depois
para que se regresse ao bom espírito republicano e do pós-1974 em matéria de
participação cidadã, e nomeadamente associativa, na definição das políticas do
património cultural. O actual Conselho Nacional de Cultura, que em plenário não
passa de fórum de teatralidade político-mundana e em secções técnicas é
amplamente dominado por “gente da casa” (membros por inerência ou nomeados pela
tutela), deve ser totalmente refundado em bases democráticas.
Centrados embora
na Cultura, reforçada no seu orçamento, como acima se disse, sustentamos que no
plano da governação corrente devem ser tomadas medidas de aprofundamento da
cooperação interdepartamental, através da celebração de programas de
financiamento plurianuais, nomeadamente com a Economia/Turismo para o
desenvolvimento da rede de museus e monumentos nacionais (de tutela directa
governamental), definindo porventura parâmetros indexados ao desempenho nos
domínios da oferta e da visitação turística; com a Educação, prosseguindo
objectivos educativos, seja de visita por grupos escolares, seja de formação de
públicos nacionais; com o Território e o Ambiente, no caso da monitorização do
património cultural não classificado; e com as CCDRs e/ou associações de
municípios e/ou municípios individualmente, para apoio ou mesmo transferência
de competências de gestão de museus e monumentos não nacionais.
Finalmente, no
que respeita à orgânica da Cultura propriamente dita, cremos que se deve ser
mais radical, até por ser aqui onde mais rapidamente se poderá fazer com que
alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma. Impõe-se, por isso, proceder à
extinção da DGPC. Em seu lugar poderia criar-se um Instituto dos Museus e
Monumentos Nacionais, dotado de autonomia financeira e com ampla
descentralização administrativa. Aos museus nacionais deveria voltar-se a
conferir capacidades que já tiveram, acrescidas de outras que tornem todo o
edifício mais racional, com a vantagem de economias de escala acrescidas: maior
latitude de planeamento estratégico e gestão, dentro de planos de actividades
plurianuais, habilitação para o estabelecimento de parcerias e protocolos
(mormente no caso de projectos europeus e dos fundos assim originados),
capacidade de arrecadação e gestão de receitas próprias, dentro de limites a
definir, orçamento próprio, contratação de pessoal dentro de condições a
definir, etc. As funções de reflexão estratégica e definição de normativos,
monitorização e fiscalização em relação a todo o restante património cultural
manter-se-iam neste instituto, em direcções de serviço centrais. Poderiam também,
parcialmente e em alternativa, ser partilhadas com a área do
Ambiente/Território e/ou com as CCDRs, dando início a um verdadeiro processo de
regionalização.
Importa ainda, e
muito mais, extinguir as DRCs, que de regional pouco ou nada têm, substituindo-as
por “núcleos” ou “brigadas” de intervenção rápida, fazendo uso dos meios
logísticos existentes na rede de museus e monumentos nacionais, com reforço
operacional destes, instituindo-os em “centros de recursos” (inventário,
conservação e restauro, etc.) ao serviço da sua respectiva
região/especialidade.
Se tudo isto for
feito, acreditamos que a Cultura, de novo organizada em Ministério, poderá
retomar o lugar que lhe compete numa verdadeira política de desenvolvimento
cidadão. Caso contrário, não será difícil antever o seu progressivo
definhamento, acantonada em mero veiculo distribuidor de pequenos subsídios, no
caso das artes performativas, e esvaziada das funções da salvaguarda e promoção
da memória patrimonial, que veremos descaracterizar-se, ao serviço do mercado
turístico. A consigna será então simplesmente uma:
"Follow the money".
Arqueólogo
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