As eleições que podem tornar a
Frente Nacional mais nacional
JOÃO RUELA
RIBEIRO 29/03/2015 – PÚBLICO
O partido de extrema-direita não
é o maior do país nem precisa. Le Pen espera conseguir o controlo dos primeiros
departamentos, mas, mais do que isso, pretende prosseguir a sua estratégia de
expansão territorial.
A segunda volta
das eleições departamentais na França, este domingo, pouco fará mais do que
confirmar as tendências evidenciadas há uma semana e que são um retrato do
clima política no país. O centro-direita deverá alcançar a vitória na maioria
dos duelos, a Frente Nacional vai obter os seus primeiros departamentos e o
Partido Socialista irá confirmar mais um descalabro eleitoral, almejando apenas
mitigar as derrotas.
Em política tão
importantes como os resultados de eleições são os seus significados e a sua
simbologia. Nesta segunda volta das departamentais francesas, quase todo o
relevo fica do lado simbólico, uma vez que em termos práticos este nível de
representação territorial tem pouco poder e corre mesmo o risco de ser extinto
no futuro.
Em jogo estão
1905 cantões que vão eleger os seus representantes nos 101 conselhos
departamentais da França metropolitana e nos territórios ultramarinos. De uma
forma geral, será a direita a grande vencedora na contagem final, com as
sondagens a apontarem para vitórias dos candidatos da União para um Movimento
Popular (UMP) e dos centristas da UDI em duelos com o PS ou com a FN. Os
socialistas devem beneficiar nos confrontos triangulares com o centro-direita e
com a FN, conseguindo recolher os votos dispersos pelos pequenos partidos de
esquerda na primeira volta, segundo uma sondagem do instituto Odoxa. Com o
sistema eleitoral contra si, a extrema-direita pode, contudo, depositar
esperanças nos confrontos directos com o PS, beneficiando dos votantes na UMP
na primeira volta.
A natureza das
eleições departamentais dificulta qualquer análise baseada em extrapolações
para o nível nacional. Quando os resultados da primeira volta foram conhecidos,
uma das conclusões mais imediatas foi a do “falhanço” da FN em emergir como “o
primeiro partido da França” – um epíteto lançado pela própria Marine Le Pen. O
primeiro-ministro, Manuel Valls, com poucos motivos para sorrir perante mais um
débacle eleitoral socialista, congratulou-se por a FN não ter conseguido esse
objectivo.
O debate em torno
de um “conceito nebuloso e vazio de sentido”, como notava a revista Le Point,
corre o risco de perder de vista o essencial que alguns analistas observam.
Trata-se de “um resultado muito bom para a FN, que conseguiu uma vitória dupla:
por um lado, continua a sua dinâmica e melhora o resultado das municipais. Por
outro, o esforço investido no último ano para encontrar candidatos voltou a dar
frutos este ano, uma vez que vários se apresentaram às duas eleições”, diz ao
Le Figaro o politólogo Jean-Yves Camus.
A primeira volta
já foi considerada histórica para a FN, que conseguiu, desde logo, eleger oito
conselheiros departamentais, quando tinha apenas dois. Mas o grande prémio para
Marine Le Pen deve vir este domingo, com a conquista dos primeiros
departamentos. A imprensa francesa já não se pergunta se a extrema-direita irá
conseguir um departamento, mas sim quantos. No Var, no Sudeste, a FN alcançou o
melhor resultado, 38,9%, venceu o cantão de Fréjus – cidade que governa há um
ano – e foi o partido mais votado em 15 dos 22 cantões. No entanto, a maior
parte dos duelos será frente à coligação UMP/UDI, que pode beneficiar dos votos
da esquerda.
No Aisne, no
Nordeste, região tradicionalmente de esquerda, o grande número de duelos a
tripartidos causa alguma incerteza e a FN, que já venceu um dos cantões à
primeira, pode ter aqui a primeira conquista departamental.
De regresso ao
Sul, o Vaucluse também pode fazer Marine Le Pen sorrir. A FN venceu em dez dos
17 cantões num departamento que já começa a ser definido como um bastião
nacionalista. Marion Maréchal-Le Pen (sobrinha de Marine, neta do fundador do
partido, Jean-Marie), foi aqui eleita em 2012 para a Assembleia Nacional,
tornando-se na mais jovem deputada da República. A disputa pelos lugares na
assembleia departamental será cerrada e cada voto vai contar. Por causa disso,
a FN optou mesmo por desistir num dos cantões em favor de outro partido de
extrema-direita, a Liga do Sul, fundado por um antigo dirigente da FN, com o
objectivo de impedir uma vitória socialista.
Uma longa caminhada
A conquista dos
primeiros departamentos serve o propósito de longo-prazo da FN. Ao mesmo tempo
que Marine Le Pen se lança numa longa caminhada com a meta em 2017, nas eleições
presidenciais, vai, pelo meio, construindo um verdadeiro partido.
A FN era encarada
como uma formação que canalizava o protesto, um voto para o eleitorado
descontente com a alternância entre o PS e a UMP, mas que não se apresentava
como uma alternativa verdadeiramente viável em termos de governação.
Praticamente inexistente a nível local – com a excepção das três autarquias
conquistadas em 1995 –, a FN cumpre o objectivo de implantação desde baixo.
De volta à
política, Nicolas Sarkozy saudou a vitória da UMP na primeira volta e espera
agora a confirmação da conquista da larga maioria dos departamentos franceses.
Porém, se o objectivo eleitoral pode ser cumprido, o ex-Presidente corre o
risco de aprofundar a desunião no partido que lidera. A defesa de uma
aproximação da UMP à direita, adoptando temas muito próximos da FN na tentativa
de atrair esse eleitorado, é contestada por uma facção que pretende maior
moderação programática. O popular presidente da câmara de Bordéus, Alain Juppé,
encabeça esta oposição interna e defende uma aliança com o partido centrista
MoDem até às eleições presidenciais.
A Frente Republicana
A fricção interna
estende-se também à estratégia quanto aos apoios eleitorais para este domingo.
As directrizes nacionais são conhecidas como “ni-ni” (nem nem), ou seja, em
caso de duelo entre a esquerda e a FN, os candidatos da UMP não devem promover
apoio a nenhuma das listas. A posição de Sarkozy quebra a tradição da “Frente
Republicana”, cujo maior efeito reverteu precisamente a favor de um antigo
candidato presidencial da UMP, Jacques Chirac, que bateu Jean-Marie Le Pen na
segunda volta das presidenciais de 2002, beneficiando do apoio da esquerda.
Não é seguro,
porém, que a estratégia “ni-ni” seja seguida por todos os candidatos da UMP. Um
dos casos é o do senador e autarca de Nîmes, Jean-Paul Fournier, que apelou
publicamente ao voto na esquerda nos sete confrontos entre o PS e a FN no
departamento do Gard.
A esquerda, que
governava cerca de 60 departamentos, pode ver a sua expressão reduzida a pouco
mais de vinte após este domingo. Uma das derrotas mais simbólicas ocorreu no
Nord, o mais populoso do país e um bastião socialista, onde o PS não conseguiu
chegar à segunda volta em 27 dos 41 cantões, e que representa o descrédito da
esquerda junto do seu eleitorado tradicional, cada vez mais atraído pelo
programa da FN.
A confirmação de
um quarto revés eleitoral para o PS desde que François Hollande chegou ao
Eliseu não deve, porém, traduzir-se em mudanças assinaláveis ao nível nacional.
A facção mais à esquerda no PS insiste numa reintegração dos ecologistas no
Governo para fazer face ao novo cenário de tripartidarismo, mas com o
primeiro-ministro Manuel Valls, símbolo da direita no seio do PS, uma
remodelação desta magnitude é vista como improvável.
França, o “grande problema” da
Europa
Nas europeias,
a França foi o único país que colocou em primeiro lugar um partido que defende
a saída da UE
Jorge Almeida
Fernandes / 29-3-2015 / PÚBLICO
A França
tornou-se o “grande problema” da Europa, diz o antigo primeiro-ministro
italiano Mario Monti. Afirmou ao diário britânico The Telegraph na véspera da
primeira volta das eleições departamentais: “Nos últimos anos vimos a França
retroceder em termos de resultados económicos, em termos do cumprimento das
regras europeias e, sobretudo, em termos da opinião pública doméstica: que se
está a voltar cada vez mais contra a Europa.”
Preocupam-no as
campanhas antieuro na Itália, em Portugal ou na Grécia. Mas o caso francês tem
outra dimensão. Foi a França e não a Alemanha que impôs o euro, a que os
alemães aderiram sem entusiasmo para obter luz verde para reunificar as duas
Alemanhas. Um quarto dos franceses votam numa formação marcadamente antieuro, a
Frente Nacional (FN), enquanto parte da elite política — à esquerda e à direita
— cultiva o eurocepticismo em vários tons.
“A França é o
grande problema da União Europeia, porque toda a sua construção teve como
alicerce uma sólida entente franco-alemã. Sem isto, a Europa terá um triste
destino. Vemos que este forte eixo já não é tão forte como antes.”
Monti
responsabiliza ainda os dirigentes europeus pelo crescimento do populismo
antieuro: “Os líderes políticos em muitos Estados estão obcecados com a próxima
eleição doméstica e pouco fazem para ajudar a população a ver as vantagens da
construção europeia.”
Nas eleições
europeias de 2014, a
França foi o único país europeu que colocou em primeiro lugar um partido que
defende abertamente a saída da UE. “O outro país do eurocepticismo, ao lado da
Grã-Bretanha, é agora a França”, assinala o correspondente do Libération em
Bruxelas. A responsabilidade é também dos cidadãos: “Foram eles quem enviou
para Estrasburgo 24 deputados FN (em 74 a que a França tem direito).”
O Financial Times
equacionou assim o problema: “O elo fraco da Europa são os eleitores.” É o voto
“em partidos anti-sistema que rejeitam o consenso europeu sobre o modo de
preservar a moeda única”. Protestam contra a austeridade ou a degradação
económica, contra o imigrante ou o estrangeiro em geral, contra a insegurança
ou contra a “casta política”.
Este é o pano de
fundo para a avaliação dos resultados da segunda volta das eleições francesas
que hoje terá lugar.
O tripartidarismo
A ascensão da FN
de Marine Le Pen criou uma nova realidade: o tabuleiro político passa a ser
formado por três blocos concorrentes, tornando-se tripartidário, o que
desestabiliza os equilíbrios tradicionais da V República. A lógica bipartidária
— a alternância entre o PS e a UMP (direita) — apenas resiste na medida em que
o sistema eleitoral da V República (escrutínio uninominal maioritário em duas
voltas) implica a sub-representação da extrema-direita por impossibilidade de
fazer acordos de desistência.
O fenómeno não é
inédito na V República. Nos anos 196070, o Partido Comunista (20% dos votos)
ocupava a “função tribunícia” que depois passou a ser exercida pela FN. Esse
mapa partidário garantia a hegemonia da aliança entre gaulistas e liberais,
condenando a esquerda à oposição. Esta lógica foi alterada por François
Mitterrand, que “refundou” o PS como partido vocacionado para vencer
presidenciais — fez uma viragem à esquerda e impôs uma aliança aos comunistas. Resultado:
os socialistas puderam vencer presidenciais e legislativas e o PCF foi perdendo
os seus eleitores.
O tripartidarismo
de hoje tem uma característica: “As três forças que dominam a paisagem política
não têm qualquer intenção de governar em conjunto. Nenhum acordo é possível. E
nenhuma pode ser maioritária por si só”, sintetizou o Monde. Numa situação
“normal” poderia haver alianças e combinações entre duas forças para constituir
coligações e maiorias parlamentares. Tal não sendo possível, emerge um quadro
instável e altamente conflitual.
“O
tripartidarismo é um sistema transitório”, diz o analista Jerôme Fouquet, do
instituto IFOP. “O nosso sistema político foi concebido para uma organização
bipolar: PS e aliados de um lado, a direita e os centristas de outro. Uma FN a
um nível estruturalmente muito elevado significa a marginalização mecânica e
sistemática do PS ou da UMP na segunda volta.”
“Por outro lado,
as contradições e as clivagens sobre a Europa e sobre as reformas tornam-se
demasiado fortes dentro de cada bloco.” Haverá “choques muito violentos” nas
sucessivas eleições que poderão levar a uma recomposição do mapa partidário,
conclui Fouquet. Estas eleições departamentais, em que a UMP apareceu aliada
aos centristas e a FN consolidou a sua representação, vão traduzirse numa larga
vitória da UMP e numa pesada derrota do PS, com escassos aliados e desgastado
pela concorrência da extremaesquerda e de ecologistas.
Haverá crescente
tensão entre a “tripartição” do voto e a bipolarização do poder imposta pelo
sistema eleitoral. Para Marine Le Pen, o objectivo é provocar a implosão da UMP
para conquistar parte do seu eleitorado. Por isso denuncia permanentemente o
“sistema UMPS” cuja destruição seria a chave da possibilidade de acesso ao
poder. O teste será feito nas presidenciais de 2017.
O desafio de Le
Pen
O PS ficou em
terceiro lugar tanto nas eleições europeias como nas departamentais. A
reprodução deste quadro em 2017 significaria a eliminação de François Hollande
ou outro candidato socialista na primeira volta. Aconteceu uma vez, em 2002,
quando o socialista Lionel Jospin foi eliminado por JeanMarie Le Pen (que teve
17% dos votos). Foi um “acidente”. Hoje, as circunstâncias mudaram.
Num editorial
dramático, o Monde apelava ao voto nos candidatos da UMP ou do PS contra a FN. “[Em
2002], Jean-Marie Le Pen não visava a vitória, contentava-se em fazer campanhas
presidenciais sem real estratégia. Depois da passagem do testemunho à filha, em
Janeiro de 2011, a
situação é radicalmente diferente: Marine Le Pen quer conquistar o poder.”
Poucos crêem na
sua vitória. A ameaça é outra. “Em 2017, estão reunidas todas as condições para
que Marine Le Pen se qualifique ou fique muito próxima de se qualificar para a
segunda volta”, anota o politólogo Bruno Cautrès. “Depois, o candidato da UMP
ou do PS deverá reunir os eleitores para vencer a segunda volta. Se Marine não
se qualificar para a segunda volta, poder-se-á dizer que a lógica do
bipartidarismo resistiu, pelo menos temporariamente.”
As presidenciais
estimulam a bipolarização. A eliminação do candidato da UMP ou do PS
significaria um sismo político. Previne o historiador Jean Garrigues: “A força
política eliminada em 2017 estará provavelmente condenada ao estilhaçamento.”
Monti terá razão:
a França é a grande dor de cabeça da Europa.
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