Protesto histórico no Brasil
deixa Dilma frágil como nunca
HUGO TORRES (São
Paulo) 15/03/2015 - PÚBLICO
O Brasil saiu à rua em peso. Só em São Paulo, estima a Polícia Militar, um
milhão de pessoas vestidas de verde, azul e amarelo fizeram deste um “dia
histórico”. Mas os cálculos do think tank Datafolha apontam para um número
muito menor: 210 mil.
Classe alta,
média, burguesia, elite? Dificilmente: os brasileiros saíram em massa às ruas,
deixando bem claro o descontentamento alargado com a classe política, fustigada
pelos casos de corrupção, e em particular com o Partido dos Trabalhadores (PT).
Só em São Paulo, um milhão de pessoas afluíram à Avenida Paulista, no que será
muito provavelmente o maior protesto de sempre na cidade.
O número é da
Polícia Militar (PM), uma estimativa publicitada pouco mais de hora e meia após
o início oficial do protesto. O instituto de pesquisa Datafolha publicou horas
depois uma estimativa mais conservadora: 210 mil no total, 188 mil no auge dos
protestos. Nessa altura, para percorrer 10 metros no centro da avenida, os
manifestantes demoravam cerca de 15 minutos. Pessoas entravam e saíam,
ininterruptamente, apesar da chuva que começou miudinha e foi engrossando. A
esmagadora maioria vestia as cores nacionais.
A enchente foi de
tal maneira que forçou Dilma responder. A Presidente do Brasil enviou o seu
ministro da Justiça à televisão para anunciar que o Governo está a preparar um
pacote de medidas de corrupção. Enquanto José Eduardo Cardozo falava, vários
pontos do país protestavam com um novo "panelaço", uma repetição do
que acontecera dia 8, quando Dilma falava ao Brasil. A Presidente esteve
reunida com a sua cúpula desde o meio da tarde, num improvisado "gabinete
de crise".
Verde, azul e
amarelo por todo o lado. Homens, mulheres, jovens, velhos, crianças, grávidas,
recém-nascidos, estropiados, hipsters e mesmo cães envergam camisolas da
selecção brasileira, esvoaçam bandeiras – muitas, tantas bandeiras –, recorrem
a vuvuzelas, relas e apitos para fazer barulho, usam narizes de palhaço e riem
e tiram fotografias. O ambiente é familiar, de estádio. Se não soubéssemos,
diríamos que a Copa voltou e que os “canarinhos” estão na final.
Os únicos que
destoam são os militaristas, que trouxerem os seus camuflados e caquis para
debitar uma cartilha difusa de extrema-direita e enquadrar os seus estampados
de “orgulho” paulista e brasileiro. Há pouco quem lhes ligue. A única forma que
encontram de suplantar os sistemas de som vizinhos é ensaiar o hino nacional. Aí
são todos irmãos e a multidão exulta. E canta. E canta de novo. E grita bem
alto no final: “Pátria amada, Brasil!”
O único bordão
que consegue semelhante harmonia da multidão é o “Fora, Dilma” que ninguém se
cansa de repetir. Numa das pontas da avenida, no cruzamento com a Rua da
Consolação, por onde não pára de chegar gente, ouve-se pelos respiradouros do
metropolitano o rumor que vem do subsolo: “Fora, PT! Fora, PT!” A corrupção é omnipresente
nos cartazes. “Golpe é o que fizeram com a Petrobras”, lê-se num deles, em
resposta à marcha “vermelha” de sexta-feira.
Na cabeça, os
manifestantes levam fitas que exigem “impeachment já”. “A Dilma saindo, os
outros políticos vão aprender a trabalhar para o povo e não para os próprios
bolsos”, diz ao PÚBLICO Aparecida Correa, 59 anos, agente de viagens formada em
economia. Diz que não está ali em resposta a um apelo partidário. Manifesta-se
“por um Brasil melhor, independentemente do partido”.
Como? “O Brasil é
um país onde tudo o que se planta colhe, não precisa ir lá fora”, sugere Sérgio
Hubner. Em conversa com o PÚBLICO, este vendedor de 44 anos mostra-se
preocupado com a auto-suficiência alimentar do país, a importação de bens de
consumo e a “alta inflação”. Concorda: Dilma tem de abandonar o cargo.
O trânsito corre
na avenida 9 de Julho. É a única artéria aberta nas imediações da Paulista,
cortada pela segunda vez em três dias para acomodar as manifestações pró e
anti-Governo. Os carros passam pelo túnel, dezenas de metros abaixo dos
manifestantes, que começaram por se posicionar de ambos os lados, como guardas.
Dividiam-se em dois grupos: o movimento Vem Pra Rua, organizado por empresários
que vêem nas políticas “petistas” um entrave ao desenvolvimento do Brasil; e o
Movimento Brasil Livre, dinamizado por jovens liberais.
O que os separava
era apenas o pedido de exoneração (impeachment), que o segundo exige e o
primeiro não. Mas um outro grupo, os radicais de direita Revoltados Online, aproveitando
a mobilização naquele local trocou de lugar e posicionou-se entre ambos. Logo
ao lado, os anti-políticos SOS Forças Armadas – que apelam a uma acção militar
no preciso dia em que passam 30 anos sobre a tomada de posse do primeiro civil
como Presidente da República, José Sarney, após a ditadura militar –, e depois
duas carrinhas do partido Solidariedade, de centro-esquerda, que apoiou Aécio
Neves nas últimas presidenciais.
Os maiores
partidos da oposição, o PSDB e o DEM, aprovaram a manifestação, mas não
estiveram formalmente presentes (apesar de alguns militantes com cargos de
relevo se terem juntado ao protesto). O próprio senador Aécio Neves anunciou,
na sexta-feira, um “dia histórico” e, domingo, num vídeo publicado nas redes
sociais, comprovou: “15 de Março vai ficar lembrado para sempre como o Dia da
Democracia”. No sábado, Dilma Rousseff pediu que se evitasse qualquer tipo de
violência. “Espero que o Brasil prove a sua maturidade democrática”, escreveu a
Presidente no Facebook.
Não era dramatização
da “petista”: os receios de que o “quebra-pau” marcasse o dia eram verbalizados
por quem comentava o assunto durante a semana. A polarização crescente e a
irascibilidade do debate político – que teve ponto alto na segunda volta das
eleições – exigiam à partida muitas cautelas. Mas tanto Aécio como Dilma
conseguiram o que pretendiam deste “15 de Março”. O principal distúrbio deu-se
já por volta das 21h em Portugal (menos três no Brasil) frente ao Congresso
Nacional, em Brasília. A Polícia Militar lançou bombas de gás lacrimogénio e
deteve três pessoas.
Com manifestações
previstas para 65 cidades (a maioria no Sul, onde o PSDB venceu as eleições,
mas também no mar vermelho do Norte e Nordeste), em São Paulo os protestos
começaram antes da hora (14h). Um grupo de motociclistas deu início ao “acto”
de manhã, espalhando ruído pelos Jardins, região de bairros nobres, onde as
pessoas começaram a acorrer às varandas em apoio: “Fora, Dilma!”
A quantidade de
manifestantes que protestou em todo o país inviabiliza a ideia de que esta era
uma acção circunscrita às classes de privilegiados (embora não afaste a tese do
desgaste do Governo promovido pelos media). A Polícia Militar estima que foram
1 milhão e 400 mil em 23 cidades do país. As maiores depois de São Paulo foram
em Curitiba (100 mil), Brasília (45 mil), Ribeirão Preto (40 mil), Belo
Horizonte e Porto Alegre (30 mil), Goiânia (20 mil) e Rio de Janeiro (25 mil). A
novidade foram os protestos no Norte e Nordeste, redutos eleitorais do Governo.
Houve manifestações nas principais capitais como Manaus (10 mil), Maceió
(10mil), Recife (8 mil).
“Não sou elite.
Não tenho varanda gourmet”, informava em São Paulo uma manifestante no colete
estampado. Uma das surpresas foi a adesão de camionistas, que fecharam o trânsito
nas imediações da Paulista. Outra característica notória: as caras pintadas de
verde e amarelo de muitos milhares de manifestantes, algo que remete para as
manifestações pró-impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992.
Algo que os
manifestantes têm em comum com os “adversários” que na sexta-feira em menor
número marcharam sobre esta mesma avenida é a defesa do combate à corrupção e
da punição de corruptores e corrompidos na Petrobras. No inquérito levado a
cabo pela Datafolha na sexta (que tem uma margem de erro de seis pontos), 71%
dos que saíram à rua diziam ter votado no PT, mas só 4% afirmavam ali estar em
defesa de Dilma. No topo das preocupações, o destino da petrolífera estatal, a
reforma do sistema político e a luta contra a austeridade do “Ajuste Fiscal”.
O índice de
popularidade de Dilma Rousseff está a aproximar-se dos mínimos históricos de
Fernando Henrique Cardoso, que um mês após a reeleição de 1998 era avaliado com
43 pontos negativos no barómetro da Datafolha. Reeleita em Novembro, a
Presidente contabiliza 21 pontos negativos no índice.
Crónica: Que país é esse?
SIMONE DUARTE
15/03/2015 - PÚBLICO
Depois de dois
meses em Lisboa, desembarco no Rio. No rádio do táxi, a notícia: o juiz do
processo contra Eike Batista, o ex-bilionário mais rico do Brasil investigado
por manipulação de mercado e uso indevido de informação privilegiada, foi
flagrado a guiar o carro do investigado. E tem mais: o piano de Eike foi parar
na casa do vizinho do juiz. Na manhã seguinte, na primeira página do jornal, as
caras dos quase 50 políticos investigados na operação Lava Jato, sobre o
esquema de corrupção da Petrobras. Os políticos negam qualquer envolvimento.
Estão chocados de seus nomes estarem associados ao escândalo. Ninguém sabe de
nada, incluindo o senador Fernando Collor de Mello, o ex-Presidente afastado
num processo de impeachment, e Roseana Sarney, filha do ex-Presidente José
Sarney. Dizem que vão provar a inocência.
No domingo,
começo a ouvir o barulho de panelas nas varandas próximas. Penso que são os
torcedores do Fluminense. Errado. É um protesto contra a Presidente Dilma
Rousseff. Em Higienópolis, um dos bairros mais tradicionais e ricos de São
Paulo, as pessoas chamam a Presidente de vaca. Sim, é isso mesmo, em alto e bom
som para os vizinhos ouvirem. No dia seguinte, presa num engarrafamento de uma
hora e meia, ouço no rádio um dos jornalistas mais famosos do país dizer que
ninguém mais do que ele quer que a Dilma se exploda (acrescenta que agora que
ela emagreceu vai ser mais difícil) mas afirma que não há base legal para
impeachment. Ouvi direito? Um jornalista mandou a Presidente se explodir e
falou da dieta dela?
Em seguida, a
notícia do dia: o ex-advogado do PT, actual juiz do Supremo Tribunal Federal,
pede para julgar o processo Lava Jato e após acertar que vai presidir a maior
parte do julgamento do escândalo de corrupção na Petrobras reúne-se com a
Presidente no Palácio do Planalto. Um encontro que não estava previsto na
agenda dela. Ele afirma que não falaram sobre o assunto. No dia seguinte os
jornais dão destaque a uma manifestação de 39 pessoas (sim, 39) em direcção à
Petrobras onde havia mais de 100 policiais à espera. Os manifestantes rezaram o
Pai Nosso. É mesmo notícia?
A esta altura,
não importa para que lado olhe pareço estar a testemunhar uma novela, não
brasileira, mas mexicana. Já estou há uma semana no país e ficamos a saber que
afinal o dinheiro apreendido na casa de Eike Batista – sim, voltamos ao caso do
ex-bilionário - sumiu. O juiz está doente. Finalmente, admite o desvio de mais
de 800 mil reais (235 mil Euros) e é afastado. Agora, ele também está a ser
investigado por fraude. As manifestações pró e contra o impeachment avançam –
algo inédito para um(a) presidente que tem apenas três meses de mandato (novo
mandato). Ainda vou ficar mais uns sete dias no país, ainda não sei qual será o
próximo capítulo deste agora reality show (a presidente deve se reunir com todo
o gabinete no fim deste domingo quando já terei enviado esta crónica para
Lisboa) mas só me apetece cantarolar a música do Renato Russo, o já falecido
líder do Legião Urbana, a banda de rock da minha juventude, resgatada pelos
jovens das manifestações de 2013: Nas favelas, no senado, sujeira para todo
lado, ninguém respeita a constituição, mas todos acreditam no futuro da nação;
que país é esse? Que país é esse?
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