Vasco Pulido Valente fala de si
próprio e de como podemos sair da crise
Por Isabel
Tavares
publicado em 7
Mar 2015 – in (jornal) i online
Os partidos são
corruptos, basta olhar para a máquina do Estado, diz o ex-deputado, a quem
também pediram favores
Vasco Correia
Guedes, há muito Vasco Pulido Valente, o apelido do avô materno, que o ensinou
a pensar. Secretário de Estado da Cultura e secretário-adjunto do
primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, diz que a classe política tem vindo a
piorar desde 1976. Em entrevista ao i conta que a morte do fundador do PPD foi
a sua grande desilusão política. E fala nos favores e compadrios, de então, de
agora e de sempre. Afirma que Portugal está melhor que há 30 ou 40 anos, mas
para si não é o país que queria. Envelhecer é difícil, sobretudo quando já não
há referências.
Somos um povo
traumatizado?
Há problemas que
condicionam, e até certo ponto determinam a cultura portuguesa, nomeadamente
política. Em primeiro lugar, somos um país periférico, muito longe do centro da
Europa, onde todas as grandes questões da modernidade surgiram e se decidiram.
A nossa geografia
já teve vantagens...
Nunca tivemos uma
economia próspera a não ser durante o verdadeiro império marítimo e comercial,
a única coisa de que pudemos tirar partido. E acabou com a autonomia do Brasil,
quando fomos obrigados a abrir os portos e perdemos o monopólio dos produtos
que revendíamos na Europa. Nunca existiu um motor de combustão interna.
O que aprendemos
com 900 anos de história?
As circunstâncias
não são comparáveis. Mas, mais recentemente, há comparações que se podem
legitimamente fazer. O problema que se pôs a Portugal nestes 40 anos foi o
mesmo que se pôs em 1851/52 e que também durou os seus 40 anos (deve ser o
limite de paciência dos mercados financeiros). A grande força por trás disso é
que queríamos ser como a Europa. Como não havia uma economia que produzisse
espontaneamente uma classe média e uma alta burguesia, isso fez-se à custa do
Estado, que se endividou colossalmente.
É uma condenação?
Não tivemos uma
revolução industrial e como éramos poucos não tínhamos um mercado interno que
pudesse sustentar as grandes empresas e as grandes indústrias. A única maneira
de regenerar Portugal, como se dizia antes – hoje diz-se modernizar – era o
Estado substituir-se a esses agentes históricos. Nos anos 70 o slogan do PS era
a “Europa connosco”.
E hoje, a Europa
está connosco?
Não sei, isso são
responsabilidades do Dr. Mário Soares.
Que apoiou…
Apoiei.
A Europa está
connosco?
Neste momento, em
Março de 2015, não sei muito bem o que é a Europa. Ao princípio, na Europa dos
seis, sabia-se vagamente o que era, para que servia, que interesses conduziam.
Quando é que isso
se perdeu?
À medida que foi
aumentando para 12, para 15, agora 28. Já não se sabe muito bem. Esta Europa é
utópica. O que se vê pela questão do euro, uma moeda que não é adaptável à
maior parte do países da zona euro, em primeiro lugar a Portugal. Foi a França
de Mitterrand que insistiu que a Alemanha aceitasse o euro, para evitar que,
uma vez reunificada, soit disant , tentasse outra vez dominar a Europa. Deu no
contrário, facilitou o domínio e a influência da Alemanha.
Devíamos sair do
euro?
Não sei quanto
nos custaria sair do euro. Nem consigo medir o que nos custa continuar. Mas
nunca me entusiasmou a ideia da Europa, sempre fui contra os alargamentos,
contra a União Europeia e Maastricht.
Porquê?
Porque penso que
convinha à Europa ter um mercado livre como a EFTA [Associação Europeia de
Livre Comércio]. Mas sem mais do que isso, sem nenhuma burocracia central e sem
políticas comuns. É preciso desconhecer completamente a história dos grandes
países da Europa para sonhar sequer com um estado federal, mas isso criou
expectativas.
Portugal tem
tiques de megalomania?
Os países e as
pessoas isoladas tendem a ser megalómanos. Quem tem poder geralmente não é, só
pessoas verdadeiramente extravagantes, como Hitler ou Estaline. A megalomania é
para os fracos, é uma falta de noção do seu peso no mundo.
Como é que
Portugal podia sair do marasmo?
Era preciso um
bom governo, para começar. Depois eram precisas boas reformas e dinheiro para
investir. Não saímos disto com truques, com habilidades. Está mal de raiz, de
cima a baixo. Não se resolve, como é costume fazer em Portugal, importando uma
solução daqui e copiando outra dali. Fazemos constantemente essa miscelânea. A
experiência dos outros pode ser aproveitável nalguns casos, mas um bom sistema
de governo não podemos ir buscar a parte nenhuma. Até porque isto está ligado
às nossas tradições, não há mecanismo para tornar os políticos responsáveis. A
maior parte segue a orientação do partido ou do governo, se há uma maioria. O
resto é gente irresponsável.
Como classifica a
classe política?
A classe política
portuguesa tem vindo a piorar de 1976 para cá. As pessoas que fundaram o
liberalismo eram pessoas que tinham participado nas guerras civis, tinham
ganho, tinham perdido, não eram oportunistas puros e carreiristas. Para entrar
nesses conflitos era preciso inteligência, carácter. Isso foi enfraquecendo.
Agora sucede um pouco a mesma coisa, os primeiros governos foram feitos por
pessoas que tinham feito a oposição à ditadura, precisavam de ter qualidades.
Se tinham feito oposição ao regime ficavam sem hipótese de seguir qualquer
carreira pública: no ensino, na diplomacia, nos hospitais civis. O meu avô
materno, o do Hospital Pulido Valente, era catedrático de Medicina, deu uma
entrevista contra o regime e foi demitido. De maneira que as pessoas que
chegaram ao parlamento, aos primeiros governos, sabiam o que estavam a fazer,
não eram paus mandados de ninguém.
Agora são?
Estes hoje
começam as suas carreiras nas juventudes partidárias – devia haver um artigo na
Constituição a proibir tal coisa, as pessoas só deviam poder inscrever-se nos
partidos aos 18 anos, quando têm voto. E depois não havia cá juventudes. Há
carreiras típicas, até primeiro-ministro ou chefe do partido ou do aparelho
regional do partido, das distritais e das concelhias.
Porque é que isso
é mau?
Porque é uma
negociação permanente e só se faz à custa de seguir a linha oficial do partido.
Isso desvirtua a política. As pessoas chegam ao parlamento depois de muitos
anos de não terem independência nenhuma. As grandes decisões do parlamento
tomam-se fora do parlamento, nas direcções dos partidos. É uma das coisas
graves em Portugal.
Já era assim
quando foi deputado?
Fui deputado três
meses e vim-me embora. A única vez que quis votar fora da orientação do
partido, nem era contra, era abster-me – por causa do envio de tropas
portuguesas para a Bósnia, que não concordava –, fui advertido. Que não podia,
que era um escândalo, que a direcção via com maus olhos. Eu queria ver se era
possível fazer o partido viver normal e saudavelmente. Não foi, como se vê pela
amostra.
Deve ter
histórias...
Conto-lhe uma:
houve a certa altura a indicação de um dos membros da direcção política de que
os decretos-lei que nos eram distribuídos para ler e votar passariam a vir com
(não me lembro exactamente as cores) um papel verde se fosse para votar sim, um
papel encarnado para votar não e um papel azul para nos abstermos. Quando me
vieram entregar os decretos com os papelinhos, devolvi-os.
Votando ao que
aconteceu desde 76...
Na falta de
condições históricas, a partir de 1976, sobretudo depois da destruição dos
grupos económicos, porque havia um embrião – a CUF, os Espírito Santo, o Banco
Português do Atlântico, o Champalimaud –, criaram-se tais expectativas de
ascensão social e de prosperidade nos portugueses que o Estado não teve outra
maneira se não os empregar. E a administração pública começou a crescer.
Lembro-me de Zenha, de mãos na cabeça, dizer que já tínhamos mais de 400 e tal
mil funcionários públicos. Criámos cargos para as pessoas. E os concursos
públicos são definidos de tal maneira que tem de ser aquele e não outro. Foi o
Estado que criou a classe média em Portugal.
A que agora se
diz que está a ser mais sacrificada.
O Estado também
financiava as empresas, dava-lhes privilégios, apoiava o sector privado, que
não era capaz de viver sem o Estado. Por isso abriu falência. E mesmo as coisas
que se fizeram, betão armado, as estradas, pavilhões de cultura, multiusos, de
educação física com piscinas, centros de conferências, parques industriais,
foram tudo maneiras de gastar dinheiro e ganhar eleições, não contribuíram em
nada para o desenvolvimento do país.
O facto de as
pessoas deixarem de ter acesso aos padrões a que se tinham habituado é
suficiente para haver uma revolução?
É sempre muito
difícil passar do bom para o mau, não é só no consumo.
Em que mais?
Olhe, na idade. É
muito difícil. Mas claro que muita gente dependia das progressões da carreira
no Estado, das horas extraordinárias, das obras públicas para viver. Mas nenhum
dos partidos com assento na Assembleia da República tem uma tradição de
violência, e isso leva o seu tempo a criar. Nem há na Europa exemplos que se
possam imitar. As pessoas desabafam na internet, não precisam de desabafar na
rua. Quanto ao resto, domina quem tem melhor presença, sucedeu em toda a parte.
O que só sucedeu aqui foi as televisões recrutarem políticos e ex-políticos
para comentadores, uma promiscuidade que não se percebe. Ou percebe-se, mas é
inaceitável. Mas são empresas privadas.
A RTP não é
privada.
Infelizmente.
Devia ser?
Deviam fechar a
RTP, acabar com aquilo. Não tem nada de serviço público, zero. É uma despesa
enorme para o Estado e para o contribuinte e existe não se sabe para quê.
Teve José
Sócrates como comentador. Tem alguma consideração pelo ex-primeiro ministro?
Nenhuma
consideração.
Porquê?
Por muitas
razões. Mas não vou falar do ex-primeiro-ministro José Sócrates.
E sobre o actual,
que vem das jotas?
O antigo líder do
PS, António José Seguro, também vinha.
Mas não chegou a
primeiro-ministro. Foi uma maldade o que lhe fizeram?
Sabe, essas
histórias todas dos políticos portugueses, dos seus percursos e do que dizem
uns dos outros, são coisas que eu tenho de me esforçar muito para ouvir e para
me interessar por elas. Seja A, seja B, C ou D, ou o que podem ou não fazer
pelo país. O que este governo não pôde fazer, por acreditar que a mudança era
um risco político grande de mais, está à vista.
Que foi o quê?
Não pôde fazer
uma reforma administrativa. A localização geográfica da população é
completamente diferente de há 200 anos e continuamos com 308 concelhos e não há
ninguém que se atreva a mexer nisso. Até criou mais dois.
Porque é que
ninguém mexe?
Porque têm medo
de perder influência política. Preferem manter as suas coutadas. E dentro dos
partidos, é claro, existe uma enorme oposição, porque as câmaras servem para
empregar pessoas e essas pessoas empregarem outras pessoas. E também para os
representantes dos partidos fazerem negócios.
Sabe o que quer
António Costa?
Não. Suponho que
ninguém sabe. Mas consigo imaginar que ele descobriu as limitações que tem.
Tinha ideias quando se candidatou a secretário-geral, tinha vontade de
trabalhar para uma maioria absoluta e tinha um programa. Mas começaram a
mostrar-lhe os limites: olha que isto não se pode fazer, só podes ir até aqui,
não podes passar dali... E ele tem vindo a aterrar devagarinho na realidade.
E isso vai
deixá-lo onde?
Não sei o que as
pessoas pensam disto. Neste momento tem um problema, criou grandes expectativas
a toda a gente, incluindo a mim. Parecia perfeitamente convicto e melhor que
Seguro, que era óbvio que não sabia para onde se virar. António Costa dava a
impressão de saber, até passar à acção. Tanto ele como Passos Coelho estão
paralisados. O que é menos mau para Pedro do que para António.
Porquê?
Porque Pedro
Passos Coelho pode defender o que já fez. António Costa tem de dizer que vai
fazer diferente, e, como não há dinheiro nem crédito, tem de ter a aprovação da
Europa. Ele próprio disse que queria negociar com a Europa e que essas
negociações seriam complexas. Não são nada complexas, não vai negociar
coisíssima nenhuma. A Europa vai dizer “as nossas condições são estas, senão
corta-se o dinheiro”.
É a desilusão de
Tsipras?
Não, não, esses
são uns demagogos. Mentem, mentiram. Sabiam perfeitamente o que lhes ia
suceder. Ou então são vertiginosamente estúpidos. Por duas razões simples:
sabem que dependem dos credores e sabem que os credores têm outros países que
têm de equilibrar. Isto foi de uma irresponsabilidade total e penso que não vão
durar muito, vão ser obrigados a convocar eleições. Se a França, com todo o
poder que tem, económico, militar, cultural, teve de se submeter, porque é que
haviam de abrir uma excepção para os planos do senhor Tsipras? São muito
conhecidos em Atenas, e depois?
Talvez a Grécia
tenha menos a perder?
Fizeram umas
manifestações nacionalistas, como o senhor Putin fez quando anexou a Crimeia.
Isso é fácil, o nacionalismo é o refúgio dos imbecis, como dizia o outro. Toda
a gente vai para a rua e depois, o que é que se segue? As pessoas não ficam com
mais poder por causa disso.
Teme uma guerra?
Vivemos uma
situação perigosa, como nunca houve desde a Guerra Fria.
A quem interessa
a guerra?
Aos russos. Estão
a fazer uma política muito parecida com a política de Hitler.
E a Europa está a
ajudar?
A Europa não
tinha de encorajar a Ucrânia, não o devia ter feito. Devia ter-se afastado. Mas
o facto é que a Rússia tem estado a intervir por toda a Europa, a tentar criar
instabilidade.
As nova formas de
terrorismo assustam-no?
A raiz está na
guerra do Iraque. As coisas já eram más, mas pioraram enormemente. Qualquer
intervenção do Ocidente no Médio Oriente, seja para o que for, só pode ter más
consequências. Devia pôr-se um cordão sanitário à volta do Médio Oriente e do
mundo islâmico. Os que falam nos verdadeiros muçulmanos e nos outros, que são
terroristas, sabem muito pouco do que é o islão. É política, como dizia o
aiatola Khomeini, se não fosse política não era nada. O objectivo do islão é
criar uma sociedade perfeita, onde se possam praticar plenamente os preceitos
do Alcorão e de Maomé. Os europeus, com uma herança cristã e racionalista, não
têm nenhuma contribuição para dar ali e percebem tudo mal. Os ocidentais são
exactamente aquilo que um islamita acha que não se deve ser e não querem que os
hereges andem a meter o nariz num assunto que é deles.
Voltando a Costa,
com a esquerda tão pulverizada, a quem se poderá aliar?
Se os resultados
eleitorais forem os que mostram a última sondagem, seis meses depois haverá
novas eleições.
O PSD tem
hipótese de ganhar?
Acho que não. Mas
tem possibilidade de não ter um resultado muito mau.
Esteve no PS, na
AD... Como se situa hoje politicamente, em quem vota?
Ainda não sei se
vou votar.
E nas
presidenciais, pensou?
Vão depender dos
resultados das legislativas. Mas, dos candidatos que estão na praça pública –
alguns não se apresentaram formalmente –, não tenho confiança em nenhum para
ser presidente. Absolutamente nenhum.
Isso
entristece-o?
Tenho outras
tristezas.
Quais?
Não vale a pena.
Aos 65 anos deu
uma entrevista a dizer que não queria viver mais dez anos. Tem 73. É difícil?
Respondo-lhe com
uma frase de Chateaubriand: envelhecer no mundo que conhecemos é triste,
envelhecer num mundo que mudou todo é muito pior.
Mudou para quê?
No que me diz
respeito a mim, para pior.
O que é que lhe
faz falta?
Gostava de ter os
restaurantes que havia em Lisboa antigamente. Que não tivessem estrelas, nem
fossem Michelin, nem fossem cozinha de autor, com aquelas coisas todas que não
me impressionam e que, de uma maneira geral, detesto. Dou-lhe este exemplo:
nesta rua onde vivo havia à esquina um restaurante baratinho onde ia almoçar
grande parte do pessoal do Ministério do Trabalho, que era o Cunha, e onde se
comia optimamente. Fechou. Havia um bom chinês mesmo aqui na porta ao lado.
Faliu. Havia a Isaura, um belo restaurante, agora é um grill. Tudo comida
feita, que eu não como. E não eram restaurantes de luxo. Agora há uma
desigualdade tremenda entre os restaurantes finos, da Baixa, com chefes assim e
chefes assado, e os restaurantes de bairro, que deixou de haver – as
tabernazinhas do Bairro Alto onde se comia optimamente e que eram baratíssimas.
Comia-se boa comida, despretensiosa, sabe como é? Agora há grandes pretensões
com a comida e os restaurantes são piores. A evolução dos tempos trouxe uma
grande vulgaridade, para tudo: para a arte, a música, a televisão. É ao gosto
das massas – isto é pretensioso dizer –, mas não é o meu.
Falou no seu avô
Pulido Valente. Influenciou-o?
Foi uma
influência filosófica importante, ouvia-o a discutir com outras pessoas. Insistia
sempre na coerência, na precisão do termos, no que as frases queriam dizer.
Isso ajudou-me a pensar e defendeu-me de muitas coisas.
Que coisas?
Olhe, nunca tive
uma crise religiosa ou política na vida. Julguei as coisas o mais logicamente
que pude. Nunca acreditei nas utopias da revolução, em visões da sociedade
completamente torpes, falsas. Nunca fui católico, também. Alguns amigos
deixaram de ser, outros viveram isso sempre de uma maneira mais ou menos
atormentada. Não acredito na imortalidade, na alma, na ressurreição. Não tenho
grandes tormentos. E mesmo quando estive, perfeitamente consciente, três ou
quatro dias sem saber se ia morrer, nunca pensei nisso.
Mas vejo-o
atormentado…
Não estou nada
atormentado. Por mim, nem sequer estou inquieto.
Isso significa
que não tem sonhos?
Uns meses depois
do 25 de Abril percebi que as ambições que tinha para este país eram
descabidas.
Porquê?
Foi uma
desilusão. Mas não muito grande, porque estava desconfiado desde o princípio,
conhecia aquela gente muito bem, alguns eram até meus amigos. Quando comecei a
ver a maneira como se estavam a portar, desencantou-me imenso.
Qual foi a sua
maior desilusão na política?
A morte de Sá
Carneiro. Nessa altura acreditava que era possível governar o país com mais
realismo, mais equilíbrio, mais sensatez. Mas sabia que dependia tudo dele e
que se ele um dia desaparecesse aquilo se desfazia.
Quem são hoje os
seus amigos?
Poucos.
Como contaria a
história de Portugal em dez palavras?
É muito triste
termos chegado a uma situação em que se não estivéssemos na Europa teríamos de
certeza outra ditadura. De resto, foi por isso que o Dr. Mário Soares trabalhou
tanto para fazer Portugal entrar na Europa, não foi por razões económicas.
Sabia que estar na Europa era uma garantia contra outra ditadura.
Foi deputado. Tem
visto a comissão de inquérito ao BES?
Estas comissões
têm um handicap que não têm na América ou em Inglaterra, onde funcionam quase
como se fossem um tribunal. Se as pessoas dizem mentiras, ou que não se lembram
e se prova que é mentira, vão uns anos para a cadeia. Ficar com uma ideia geral
do que se passou, como dizia a deputada Cecília Meireles, não chega.
Não há
consequências?
O que os partidos
queriam era lavar as mãos do assunto, portanto teve consequências, lavaram as
mãos e saíram resplandecentes, não tinham nada a ver com os negócios do senhor
Ricardo Salgado.
Há pouco falou no
sistema político. É a favor de uma mudança?
Sim, mas alterar
o sistema político envolve muitos riscos. Há quem defenda os círculos
uninominais, mas nada me garante que esses círculos não se corrompam como se
corromperam muitas câmaras. Se um deputado consegue corromper o círculo que o
elege, não há muito a fazer. O indivíduo não fica com mais liberdade, fica com
menos, e se isso alastrar ao país não dá um melhor parlamento, dá um parlamento
pior, mais corrupto.
Este é corrupto,
daquilo que conhece?
Os partidos são
corruptos, basta olhar para o Estado. Quem é que julga que nomeou estes
funcionários todos e por que razão nomeou estes funcionários todos? São 600 e
tal mil, tivemos 750 mil ou perto disso. Mas continua a ser uma barbaridade.
Durante o tempo
que esteve no governo ou na Assembleia da República alguém lhe pediu favores?
Pediu sim senhora.
E eu dizia “prometo que não conto nada disto a ninguém” [risos]. Ouvia aquelas
coisas e depois dizia “fica só entre nós”.
O que é que lhe
pediam?
Havia muitas
coisas pessoais. Eu era secretário de Estado da Cultura e secretário-
-adjunto do
primeiro-ministro. Então pediam-me se eu podia dar o jeitinho, aquela coisa
muito portuguesa.
Lembra-se de
algum caso particular?
Tantas. Sobretudo
na Cultura, que aquelas pessoas da Cultura não se medem. A pior de todas foi
com o velho António Vilar, que pretendia que a Cultura lhe desse uma verba
descomunal para fazer um filme sobre a viagem do Colombo à América. Isto foi
antes do filme que se fez com a música do Vangelis e ele apareceu com essa
ideia. Eu disse que não havia dinheiro – ele queria duas ou três vezes o
orçamento de toda a secretaria de Estado. E ele, claro, era o Colombo [risos].
Expliquei--lhe que não podia ser e ele começou a ameaçar-me com o rei de
Espanha, de quem era muito amigo, dizia, e com este e aqueloutro. Foi a cena mais
extraordinária que tive, com ele a andar de um lado para o outro agitadíssimo,
a dizer que eu não era um patriota. Esperei que se acalmasse e toquei para a
secretária, para o conduzir à saída. E na Cultura nem é o mais grave, porque
representa uma pequeníssima parte do Orçamento.
Onde é pior?
Não Obras
Públicas, que é onde se fazem todos os grande negócios. Hoje não sei. Antes não
era agradável ir para o governo, o país estava muito irritado, era muito
militante. Faziam-se manifestações a sério. As pessoas é que não têm memória
histórica. Ou não têm a minha idade. Uma vez descobri que na Secretaria de
Estado da Cultura toda a gente roubava. Tudo o que não estava aparafusado
desaparecia. O prédio na Avenida da República tinha uma garagem subterrânea até
onde se ia de elevador. Esperavam que a malta saísse, metiam as coisa debaixo
do braço, depois nas malas dos automóveis e iam-
-se embora. Havia
uma verba no orçamento para roubos, foi assim que me pus a investigar estas
coisas.
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