O inferno de Ulrich e a divina
comédia do BES
PEDRO SOUSA CARVALHO
20/03/2015 - PÚBLICO
A Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito
Santo está prestes a terminar. E agora?
Foram mais de
quatro meses e cerca de meia centena de audições. Desfilaram na sala n.º 6 da
Assembleia da República gestores, políticos, reguladores e banqueiros. Passaram
por lá mentirosos, pessoas honestas, indivíduos com amnésia e outros com
memória de elefante. Foram apontados dedos acusadores, foram omitidos factos,
foram contadas histórias, foram ditas verdades, meias-verdades e mentiras.
Os deputados até
agora têm feito um trabalho exemplar. Deixaram a politiquice à porta do Parlamento
e arregaçaram as mangas para tentar deslindar o que provocou o colapso do banco
da família Espírito Santo. Foi necessário ler milhares de páginas, apêndices,
apensos, anexos, relatórios, pilhas de documentos. Ainda ontem Ricardo Salgado
citava o padre António Vieira: “Em nenhuma parte tanto como em Portugal se
gasta tanto papel, ou se gasta tanto em papéis”. Cada um fez o seu papel na
Comissão. Os deputados fizeram o papel de deputados diligentes. Foram centenas
de horas de audições intermináveis. Foi preciso ter uma paciência de Job e um
presidente da Comissão, Fernando Negrão, que esteve sempre à altura da isenção
e da moderação que lhe eram exigidas.
Aqui chegados,
perguntar-se-á o que se segue? A Comissão Parlamentar não é um tribunal. Não
julga, não condena e não absolve. Por muito que lhes apeteça, os deputados têm
de se contentar com um olhar reprovador ou com uma insinuação mais velada. Perante
a mais descarada das mentidas só lhes resta engolir em seco. E perante aquilo
que acham ser verdade anuem com um acenar de cabeça.
Então para que
serve a Comissão? Serve para sugerir e propor iniciativas legislativas para
evitar novas derrocadas no sistema financeiro. O Bloco de Esquerda até já
anunciou que vai propor uma alteração à lei bancária para travar a criação de
grandes conglomerados mistos no sector financeiro. Faz sentido. Foram as
relações incestuosas entre o BES e o GES, entre o BESA e a Escom, entre o BPN e
a SLN, entre o BPP e a Privado Holding que ajudaram a esconder e a camuflar as
perdas e as alegadas irregularidades cometidas.
Fernando Ulrich
levou as mãos à cabeça e foi à Comissão pedir que "não façam mais leis,
isto é um inferno. O que conta são as pessoas". Ulrich faz parte de uma
raça em vias de extinção, os chamados banqueiros honestos. E tem a obrigação de
saber que inferno é a vida de quem investiu as poupanças de uma vida em papel
comercial do Espírito Santo ou em produtos de retorno absoluto do BPP.
Mas nem só de
leis se faz a justiça. A justiça também se faz de julgamentos, de condenações
ou absolvições. Perante a gravidade de tudo o que já ouvimos na Comissão de
Inquérito é legítimo perguntar: ainda ninguém foi preso? Ricardo Salgado deu
uma entrevista em Maio de 2014 ao Jornal de Negócios a confessar que foi
cometido um crime no Grupo Espírito Santo, que as contas foram falsificadas. O
contabilista do grupo confessou no Parlamento: “O que eu fiz é algo de que não
me orgulho nada. Estou muito arrependido. Estou, nos últimos anos, em
angústia". De arrependidos o inferno está cheio. Não o inferno de Fernando
Ulrich, não o inferno dos clientes do BES, mas o inferno da Carregueira, de
Caxias e do Linhó. O contabilista arrastou consigo Ricardo Salgado e os amigos:
"Não fui eu que tive a ideia de ocultação, foi Ricardo Salgado, em 2008."
E mais: todo o Conselho Superior sabia do passivo da ESI.
O PÚBLICO também
noticiou a existência de um saco azul no banco para fazer pagamentos paralelos.
Também foi noticiado que um construtor deu uma “prenda” de 14 milhões de euros
a Salgado, que juristas contratados pelo banqueiro justificaram com o “espírito
de entreajuda e solidariedade” que deve existir entre as pessoas. Uma auditoria
encomendada pelo Banco de Portugal aponta para uma mão-cheia de indícios de
potenciais crimes, contra-ordenações e actos de gestão ruinosa. A auditoria da
Deloitte fala ainda em alegadas transferências de dinheiro do BES Angola para
offshores de Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires e Álvaro Sobrinho. Para uns,
o BES foi um inferno, para outros foi o paraíso. Isto mais
parece a divina comédia.
Claro que todo
este inferno que foi o colapso do BES muito provavelmente não teria assumido as
proporções que assumiu se tivéssemos supervisores mais atentos, que não
permitiram que banqueiros suspeitos de cometer graves irregularidades se
eternizassem nos seus cargos e continuassem a gerir as poupanças de milhares de
portugueses. Foi o próprio Ulrich que foi à Comissão de Inquérito dizer que já
no final de Maio ou início de Junho de 2013 (sim, mais de um ano antes de o BES
falir) alertou Vítor Gaspar sobre as preocupações que ele tinha em relação ao
BES e ao GES. Gaspar terá falado de imediato com Carlos Costa, que terá pedido
a um alto funcionário do Banco de Portugal para contactar Ulrich. "O que
se passou a partir daí já não sei", diz o presidente do BPI. Não sabe Ulrich e não sabemos nós.
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