29 Março 2015
RITA DINIS /
OBSERVADOR
Comunista pela
necessidade de ação, palmilhava Leiria atrás da liberdade. Foi nos moldes que
viu o futuro, nos livros a saída. E a política? Um desvio. Uma espécie de
amor-ódio. Hoje é candidato.
“Ouvi falar dele pela primeira vez em 1969, na
Marinha Grande. Eu tinha uns oito anos [ele mais de 30] e fui pela mão do meu
pai levar-lhe roupas à prisão, nas Caldas. Não o conhecia, e nem falámos nessa
altura, mas lá estava o Henrique Neto, preso por andar a distribuir
propaganda”.
A prisão não
durou mais do que uns dias e, em todo o caso, foi rara no seu percurso pelos
meandros da oposição ao regime salazarista. Mas naquele dia, durante a campanha
eleitoral, encabeçava um grupo que andava a colar cartazes pelos muros da
Marinha Grande e lá acabaria por passar umas noites atrás das grades.
— Andam a
arranjar uma rica vida, andam.
Era Adriano
Roldão, o “galifão lá do sítio”, presidente da câmara e um homem da situação.
Tinha-os apanhado em flagrante. Mas Henrique Neto até estava responsável pela
campanha e tinha autorização para colar um cartaz ou outro. Passou. “Depois
fomos para as Caldas da Rainha distribuir os panfletos e foi aí que veio a
polícia e apanhou-os a todos sem exceção. Eu vinha no grupo de trás, escapei”.
É aqui que
chegamos à visita na prisão. Quem conta a história é Amílcar Martinho, colega
de infância de Henrique Neto, que acabaria por partilhar consigo alguns dos
tempos mais quentes da juventude irrequieta passada no Movimento de Unidade
Democrática, depois no Partido Comunista – o único onde havia ação (“quem
queria fazer oposição ao regime naquela terra ia para o PCP”) – e no Sport
Operário Marinhense, onde se lia os livros proibidos e se aprendia o inglês.
Pela mão, Amílcar levava o filho, Jorge, que naquele dia ouvia pela primeira
vez falar no nome que depois seria tantas vezes repetido. Henrique Neto
acabaria por ser libertado um ou outro dia depois, por força do Dr. José
Vareda, formado em Direito e um dos homens mais influentes do seu tempo na
Marinha Grande, com quem Neto se aconselhava amiúde. Os restantes infratores,
os que eram considerados “mais agressivos ao regime”, ficariam presos até à
Revolução.
"Sempre teve uma necessidade
de fazer obra, mostrar que era capaz. Como empresário movia-se pelo lucro,
claro, mas não era só o dinheiro. Tinha um certo jeito 'naif' de conseguir os
seus objetivos."
Jorge Santos,
empresário e presidente da Nerlei
Jorge Santos, o
menino de oito anos, hoje tem 54. Fez-se empresário da indústria dos plásticos
e presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei). Depois
desse dia na prisão só se voltaria a cruzar e a conhecer verdadeiramente
Henrique Neto décadas mais tarde, nas andanças da vida empresarial,
nomeadamente nos congressos e fóruns de discussão da indústria de moldes. Nunca
trabalhou diretamente com ele, mas sempre partilhou o ramo e por isso as
conversas – e o associativismo, que lhes corre nas veias. “Toda a gente sabia
quem ele era porque intervinha sempre, onde quer que vá o Henrique Neto tem de
intervir”, é ponto assente, diz. Era assim na década de 1980, quando estava no
seu auge enquanto empresário, como é hoje, no auge da sua reforma. Pelo meio, e
apesar de ter nascido no seio de uma família pobre de operários vidreiros,
“conseguiu estar sempre uma data de quilómetros à frente dos outros”, resume o pai
Amílcar, hoje com 79 anos.
Mas esta história
que se tenta contar é longa e com cabelos brancos. Tem precisamente 79 anos.
Mete a luta contra o salazarismo, o alistamento no Partido Comunista, as
reuniões clandestinas (sem nunca o serem) na sua casa da Marinha Grande, e
muito mais tarde a chegada ao Partido Socialista, pela mão do advogado e amigo
Jorge Sampaio. Mas também mete muitos livros consumidos pelo canto do olho no
chão da Bertrand ou no jardim da Estrela, e o sonho de trabalhar nos moldes –
que eram o futuro. Mete um “sopro de sorte” que o faz voar para os EUA,
voltando um dos empresários com mais sucesso do seu tempo. Um dos mais ricos e
também um dos que mais “ralhava” com os operários.
Começa em 1936, no Beco do Carrasco, bem no centro de Lisboa. Podia começar
na Marinha Grande, onde provavelmente se fez, mas quis o destino que fosse
nascer à capital...
O pai sempre fora
operário vidreiro mas depois da tropa vai parar a Lisboa e arranja trabalho
como polícia na esquadra da Boavista. É nessa altura que nasce o primeiro e
único filho, num quarto alugado no Poço dos Negros. Os primeiros três anos de
vida, o pequeno Henrique vive-os ali. No mesmo andar, no lado esquerdo, vivia a
tia Júlia, com a filha – que viria a trabalhar na Bertrand do Chiado. Depois,
foi sempre entre cá e lá. Aos três anos a família volta para a Marinha Grande,
porque o pai arranja novo emprego. Mas não fica muito tempo. No final da
terceira classe, já a saber ler e escrever, volta para Lisboa, pela mão do pai
que arranja novo trabalho como vidreiro na 24 de julho. Acaba a quarta classe e
vai parar à Escola Industrial Fonseca de Benevides, porque “o liceu era para
meninos ricos”. Mas só fica na capital dois anos letivos, no curso de
serralharia – o terceiro, quarto e quinto anos vai acabá-los à Marinha Grande.
Nessa altura, com
14 anos, começa a trabalhar numa caixotaria do tio, e a continuar os estudos à
noite. Ajudava a fazer os caixotes de madeira e depois a sua função era
entregá-los, de burro pela mão, nas fábricas da zona. Sem irmãos, trabalhou
cedo “porque era assim que tinha de ser”. “E mesmo assim não foi tão cedo
quanto isso, o meu pai começou aos oito”, conta. Chegava a casa e dava o
dinheiro todo à mãe – “não era aos meus pais, era à minha mãe” – para ajudar
nas despesas. Foi assim “até vir da tropa e casar”. Deixou os caixotes aos 16
anos para ir atrás do que sempre quis, a indústria dos moldes. O padrinho pô-lo
como aprendiz de serralheiro na maior fábrica da Marinha, a Aníbal Abrantes, e
depressa subiu ao primeiro andar e passou a desenhador, depois a diretor e mais
tarde a proprietário. Mas já lá vamos.
O pai, presente
mas ausente, foi possivelmente o fio condutor dos primeiros capítulos desta
história. Há quem diga que há uma idade a partir da qual nenhuma realidade
supera a memória. Talvez por isso os mais velhos falem pouco e fiquem horas
virados para dentro. O pai de que se lembra era assim mesmo. Só tinha a quarta
classe, mas lia que se fartava. Sobre política, sobre tudo. Lia mais do que
conversava. Aliás, raro era conversar com o filho. Tanto melhor, o silêncio era
uma espécie de anuência. E não precisavam de trocar muitas palavras para o pai
influenciar o filho em (quase) tudo. Tanto na quietude com as leituras, como na
permanente inquietude com o trabalho e a vida. A política anti-regime, mais do
que uma influência do pai, revolucionário do 18 de janeiro de 1934, foi uma
herança da família paterna, toda ela oriunda da tão politizada Marinha Grande.
Reuniões
clandestinas na casa da Marinha Grande
Aos 15 anos já
estava alistado no MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática) “porque toda
a miudagem na Marinha Grande se alistava, menos os filhos das classes mais
altas, dos médicos e advogados, esses talvez não”. Depois, já em idade adulta,
entra para o PCP, mais ou menos pelos mesmos motivos.
"Conheci-o quando ele chega
com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17 anos, junto às obras da capela
da Amieira, para recolher assinaturas para a libertação de Mário Soares."
Amílcar Martinho,
amigo de infância
Amílcar Martinho,
que acabaria por ser contabilista até aos dias de hoje, fazia parte dessa
miudagem e mantém a memória fresca. Ao Observador, o marinhense conta como
conheceu Henrique Neto nessa tenra idade de adolescentes:
“Andava-se a
construir a capela da Amieira, ali ao pé da Marinha Grande, e chega ele
[Henrique Neto] com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17, a recolher assinaturas
para a libertação de Mário Soares. Eu assinei, e até me lembro que depois foram
dizer ao meu patrão que me devia demitir por causa disso (mas não demitiu). Foi
assim que o conheci”, recorda. No mesmo dia, se a memória não lhe estiver a
pregar partidas, os rapazes seguiram para Amor, uma terra perto de Leiria, para
continuar o trabalho “e o padre de lá mandou chamar a polícia”. Foi um susto,
mas nenhum dos dois foi dentro.
Segundo bem se
recorda Amílcar Martinho, “o Henrique Neto foi sempre líder naqueles tempos do
PCP da Marinha Grande” e com vontade de ver as coisas feitas. Lembra-se do
tempo em que iam “fazer cópias dos cadernos eleitorais à Câmara Municipal” ou
do tempo em que Henrique Neto se dava com “os Ministros”, o Carlos, o Vítor e o
Lenine Ministro, “todos rapazes muito para a frentex, que acabaram por ter as
suas fábricas”. E lembra-se das reuniões, supostamente secretas, que havia
entre 1969 e 1973, na casa de Henrique Neto na Marinha. Na altura, Neto já
estava na direção comercial da Aníbal Abrantes e já ganhava muito dinheiro, por
isso a casa já nada tinha a ver com a casa modesta onde tinha crescido. “Esta
era uma bela casa”, Amílcar Martinho recorda-se bem.
As reuniões
serviam para discutir ideias e planear estratégias. “Nunca podia ir muita gente
porque eram clandestinas, mas ia alguma. Até termos vindo a saber que um dos
homens que frequentava as reuniões era ‘bufo’ e contava tudo ao sr. Adriano
Roldão, o galifão lá do sítio”, conta Amílcar Martinho. Em 1969, Henrique Neto
chegou a ser candidato pela Oposição Democrática e durante mais de um ano andou
a caminhar pelo distrito de Leiria, principalmente rumo ao norte, que era a
zona mais rural, para politizar os menos instruídos, fazer debates, distribuir
cartazes. Fazia-se política como se podia, mas o PCP da Marinha Grande era,
ainda assim, muito virgem. “Fala-se muito mas depois cada um ia para sua casa e
não aplicava nada”, diz.
Bate com a porta
do comunismo em 1975, ainda a poeira da Revolução de abril não tinha assentado,
por uma conjugação de dois fatores. Primeiro, por desacordo: “houve uma noite
em que reunimos até às 4h00 da manhã para discutir a questão dos SUV – Soldados
Unidos Venceremos. Queriam armar os soldados (não os capitães), porque o PCP
tinha perdido um certo poder no Conselho da Revolução, e eu achei que isso
podia dar origem a uma guerra civil. Bati-me por aquilo a noite toda, quando vi
que não conseguia, fui-me embora”. Depois, por uma questão de timing. É que
Neto tinha acabado de formar a sua própria empresa na indústria dos moldes, a
Iberomoldes, e tinha de fazer escolhas. “Provavelmente se não tivesse
acontecido aquele episódio eu tinha continuado a fazer coexistir o mundo
empresarial e a política”, mas aconteceu. Daí até 1993 manteve-se afastado da
atividade política.
Bem disposto, mal
disposto, bem disposto, mal…
Funda a
Iberomoldes em 1975, a
empresa que começou com quatro pessoas e que chega ainda hoje às 1400. Sempre
disse que não tinha ambição de ter uma empresa sua porque já estava num cargo
de topo da Aníbal Abrantes, levava muito dinheiro para casa, casado e com dois
filhos, e “não tinha ambição para ter mais”. De todo o modo, já tinha chegado
mais longe do que alguma vez pensaria. Diz que nunca foi o dinheiro que o
moveu, mas sim a vontade de fazer obra. A verdade é que foi quando a nova
administração da Aníbal ameaçou cortar-lhe o ordenado – “dois sujeitos de
Cascais, do regime, pouco competentes, ficaram medrosos com a crise e quiseram
reduzir os ordenados…” – que bateu com a porta. “Disse que não, não há cá
cortes. E fui embora”.
Reza a lenda que
o anúncio da sua saída foi feito numa reunião plenária, com todos os
trabalhadores da empresa, e que Henrique Neto terá dito: “Só volto cá no dia em
que for para comprar isto”. Neto ri-se e diz que isso é “romance”, “típico dos
meios pequenos”. Mas Salomé Rios, hoje com 60 anos, estava lá e jura a pé
juntos que aconteceu. “Na altura ninguém fez caso disso, não parecia possível
ou plausível sequer. Passado uns 12 anos o que é certo é que comprou a
empresa”, em jeito de expansão do seu império no setor dos moldes.
No trabalho só se falava de
trabalho. Uma vez fui ao Algarve com a família e chegámos a passear no veleiro
dele. E ali era completamente diferente, sempre bem disposto, o trabalho não
entrava. E eu pensava, a brincar, "Por que é que não é sempre assim?"
Salomé Rios
Salomé Rios
secretariava a direção comercial da Aníbal Abrantes desde os seus 19 anos,
logo, trabalhava diretamente com Henrique Neto. E quando em 1986 a Iberomoldes adquire a
Aníbal, Salomé passa a secretariar a direção da casa-mãe. Durante mais de 20
anos foi assistente de Henrique Neto e conhece-o como poucos. Conhece-o,
imagine-se, pelo caminhar.
“Bastava vê-lo
entrar no escritório de manhã para perceber se estava de bom ou mau humor”,
conta ao Observador. “Às vezes pensava ‘hoje não abro a boca, só respondo ao
que ele perguntar’, porque já sabia que tinha dias em que não valia a pena
insistir, era esperar que a tempestade passasse. Quando se conhece bem uma
pessoa sabe-se estas coisas”. Enfurecia-se quando o trabalho corria mal, quando
havia erros nos moldes e a peça, que custava milhares de euros, tinha de ir
direitinha para o lixo. E então aí “ralhava, ralhava muito porque não gostava
que os erros resultassem da falta de atenção ou descuido dos operários”. Salomé,
apesar de não ter a ver com o assunto, estava mesmo ali ao lado e acabava por
levar por tabela. É a lei da vida.
Os funcionários
tinham medo do patrão? “Não, não, sabiam que ele tinha razão! Tinham era muito
respeito. Era como um professor daqueles antigos, não batia, claro, mas impunha
respeito”, diz. “Defendia muito o rigor e a inovação, por isso tínhamos de
estar sempre à frente dos outros”.
Quando Henrique
Neto se aproximava da fabricação, punham-se todos quase em sentido. “Vem aí o
patrão, vem aí o patrão”. “E todos rezavam para que estivesse tudo bem, porque
se não estivesse sabiam que ele ia notar. Não se conseguia esconder nada,
porque conhecia o trabalho dos operários como a palma das suas mãos”. Os rostos
e os nomes dos mais de mil funcionários é que não podia conhecer, por isso
Salomé lembra-se de como todos ficavam “envaidecidos” quando Henrique Neto os
cumprimentava à passagem pelos corredores. “Admiravam-no. Ainda hoje todos
gostam dele, dava pica trabalhar para uma pessoa assim”, conta Salomé.
Pendurado no
elétrico a caminho da Bertrand
Se tiver de
escolher um ponto de partida para chegar à pessoa que acabamos de descrever,
talvez os livros não sejam má ideia. “Os livros…foram a minha grande vantagem”.
“E obsessão”. A constatação é do próprio Henrique Neto, com os olhos postos no
passado.
Ainda que naquela
altura de miudagem, a leitura fosse quase uma competição – “quantas páginas
leste hoje? 300 e tu? 350, ganhei” – a sua obsessão era tal que não passou
despercebida a Aquilino Ribeiro, o próprio. Andava ali muitas vezes pela
Brasileira, Chiado, e quando parava na Bertrand, raro era o escritor não
encontrar o miúdo sentado no chão a espreitar pelos livros a dentro. A
espreitar sim, porque os livros estavam fechados e só quem os comprasse podia
cortar e abrir a primeira página. Então espreitava-se, e Henrique Neto lia
quanto podia. Aquilino Ribeiro, e outros que tais, lá lhe batia na cabeça:
“Então rapaz o que é que andas a ler hoje? Epá isso é muito para ti, não é para
a tua idade”.
Pôs a terceira e última filha na
escola alemã. Porquê? "Porque há 20 anos achei que a cultura alemã, não só
a língua, como também a disciplina e metodologia, iam ser muito importantes no
futuro das pessoas"
Henrique Neto
Os Miseráveis,
por exemplo, diz que os leu com oito ou nove anos. Um ofício que aprendeu quase
sozinho, na Candidinha, uma espécie de pré-escola na Marinha onde uma
professora ensinava uma dúzia de meninos a ler. Aos quatro começou, aos seis ou
sete já lhe tinha tomado o gosto e já entrava nas competições. Entre os nove e
os 12, “como só tinha aulas de manhã, vinha por aí fora, às vezes pendurado no
elétrico, passar as tardes na Bertrand [onde a prima trabalhava]. Ali é que eu
tinha livros com fartura”, conta. Se não tinha tempo de ir para o Chiado,
ficava-se pelo jardim da Estrela ou pelo jardim de Santos, onde uma senhora
abria uma estante de ferro e aço cheia de livros e jornais para as pessoas
lerem.
Na juventude, a
leitura e o cinema continuaram a ser os seus entreténs prediletos. Hoje, no
escritório que comprou no coração do Chiado, com vista para o Castelo de São
Jorge e para as luzes da cidade, as paredes falam por si, à imagem e semelhança
de quem as decorou: de um lado os DVD, muitos e empilhados, do outro os livros,
que já têm de se amontoar no chão à falta de prateleiras vazias; e ao meio os
jornais. Nas estantes, as biografias de Álvaro Cunhal aparecem ladeadas da obra
de Mário Soares, à direita, e da biografia de Steve Jobs, à esquerda. Ironias
da vida. Isso, e os quadros de Fernando Pessoa, um deles bem grande a denunciar
a admiração de sempre, fazem a decoração.
No se escritório,
no Chiado. Com os livros em pano de fundo
Foi, aliás, um
livro que influenciou a sua forma de ver a vida. “O Choque do Futuro”, de Alvin
Toffler. Leu-o talvez no início da década de 80, ou antes, e “ficou obcecado”. A
tese era de que a sociedade humana tinha uma dificuldade de adaptação crescente
às transformações – o que antigamente acontecia em 50 ou 100 anos (“as pessoas
viviam num sítio e morriam nesse sítio, se eram pedreiros eram pedreiros para a
vida, e por aí fora”), passava a acontecer em 10 anos, e dali a 20 anos, já
passava a acontecer em cinco anos. A transformação é veloz e a necessidade de
adaptação tinha de ser constante. “Uma pessoa já não podia ter uma empresa para
se limitar a fazer uma coisa, porque essa coisa ia mudar nos próximos cinco ou
dez anos, mas ia mudar para o quê? Essa ideia atormentava-se e comecei a ficar
obcecado com o tema do futuro”, confessa.
De repente tudo o
que importava era ter uma “visão de estratégia”. E até em casa tentava aplicar
essa regra, apesar de não se considerar um pai austero e demasiado rígido. Pai
de três, dois de um primeiro casamento aos 27 anos, e uma terceira filha, fruto
da união com a companheira de há 30 anos, Henrique Neto optou por pôr o mais
velho e a do meio na escola pública, mas com a benjamim (hoje com 28 anos) o
pensamento foi outro. “Esta já vai para a escola alemã. Porquê? Porque há 20
anos achei que a cultura alemã, não só a língua, como também a disciplina e
metodologia, iam ser muito importantes no futuro das pessoas”.
A obsessão ficou.
Um sopro de sorte
A história não se
fez, contudo, sem um sopro de sorte. Quando era um jovem desenhador de moldes
na Aníbal Abrantes não fazia como os outros que, na hora de almoço, pegavam na
bicicleta e iam até casa. Levava uma sandes e uma merenda e comia ali mesmo. “Em
dez minutos estava despachado e depois não tinha nada que fazer, então descia
ao piso de baixo e andava pela fábrica a ver como estavam os moldes que
andávamos a desenhar”. Todas as semanas aparecia o senhor Tony Jongenelen, o
holandês responsável pelas exportações, que ia à fábrica ver em que pé estava o
progresso para fazer o contacto com os clientes americanos e estrangeiros, em
geral.
"Quem vai é o
Henrique", terá ordenado o holandês. Tinha aprendido inglês no Sport
Operário Marinhense e lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA.
“Chegava e ia
direto ao engenheiro, diretor-geral da empresa. Mas às vezes o engenheiro não
sabia bem das coisas e eu, como sabia, metia-me na conversa”, conta. Às tantas
já não era ao engenheiro que se dirigia – “bem, em vez de falar com o
engenheiro falo mas é com este gajo, é mais credível”.
Depois pronto, a
sorte de uns é o azar de outros. Quando o holandês adoeceu, depois de um
enfarte, foi o jovem Henrique, de 25 anos, e não o sobrinho do patrão, de 45,
que o foi substituir no mundo das exportações. “Quem vai é o Henrique”, terá
ordenado Tony Jongenelen. Tinha aprendido inglês no Sport Operário Marinhense e
lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA. “Foi uma chance, um salto
inegável na carreira, foi o que me permitiu ter percorrido o mundo inteiro ao
longo de 40 ou 50 anos”, diz hoje, com os pés assentes no coração de Lisboa. Só
aos EUA foi uma centena de vezes e, feitas as contas de cabeça, pode dizer que
conhece todos os Estados e grandes cidades daquele país, à exceção de Seattle. “Nunca
calhou, mas é pena”.
"As pessoas aqui na terra
admiravam-no. Andar com a mala na mão, a correr países, a falar línguas que
ninguém conhecia..."
Amílcar Martinho,
amigo de infância
O desencanto e a
amargura
Sempre em viagens
entre a Marinha e o resto do mundo, não lhe sobrava muito tempo para a
política. Desde a saída do PCP, em 75, escolheu sempre as empresas. Como a
relação com Mário Soares foi sempre “up and down, up and down” até hoje (mais
down do que up), só voltaria a alinhar por um partido em 1993, a pedido especial de
Jorge Sampaio – velho amigo dos tempos do Dr. José Vareda. “Não estava com
vontade de fazer fosse o que fosse, mas como era amigo dele e ele tinha acabado
de se tornar secretário-geral e queria alargar o partido disse ‘tudo bem'”.
É com António
Guterres que chega à primeira linha do Partido Socialista. Começou por ser seu
porta-voz para a Indústria, ainda na oposição, e uma espécie de conselheiro. Escrevia-lhe
documentos de uma página – “nunca mais de uma página” – sobre o que pensava e
como pensava que devia agir, primeiro enquanto líder da oposição depois já
enquanto primeiro-ministro. “Por acaso tenho ai umas cópias bem giras”. E ele
dava-lhe ouvidos? “Não, nunca!”.
No dia da
apresentação oficial da candidatura a Belém, rodeado da família e velhos amigos
Gostou dos
primeiros dois anos, talvez, quando Sousa Franco estava no Governo. “Porque
ainda estavam relativamente vivos os Estados Gerais, havia idealismo,
pensava-se que a educação ia resolver os problemas do mundo, já havia vícios,
mas não tantos”. De resto, dos tempos da governação guterrista guarda sobretudo
um pensamento: “foi a maior perda de oportunidade do país desde o 25 de abril”.
“Pode dizer-se que outros fizeram
pior, claro, mas aquela era a altura em que o professor Cavaco tinha saído, os
erros eram evidentes, o Guterres sabia qual era a acusação que se fazia aos
governos de Cavaco. E quando chega ao poder não faz senão continuar a política
do betão, para dar uma casa a cada português, como costumava dizer”.
“E depois foi
muito influenciado por um pequeno grupo que o rodeava, o Pina Moura, o Jorge
Coelho e todos os seus interesses…”. “Mudou muito”, diz.
Desencantou-se.
Os papéis de uma página que costumava escrever a Guterres, no ano de 2000
passaram a uma carta de quatro páginas. “Disse-lhe tudo. Que estávamos a
endividar-nos, que estávamos sem estratégia para a economia, os negócios eram
mais do que muitos, o Pina Moura fazia o que queria no Governo”. Depois vem
José Sócrates, o “vendedor de automóveis”, a pessoa mais criticada de sempre
por Henrique Neto.
"Gostava de concorrer contra
Guterres nas Presidenciais"
Henrique Neto
Hoje, à distância
dos acontecimentos, diz que tem muitos amigos à direita, na cena política, mais
agora que está reformado. E elogia aquilo que o fez gostar de Guterres, antes
de se virar para o lado dos críticos. “Ele era um organizador do pensamento,
tem uma capacidade intelectual que eu nunca vi em ninguém, tem uma memória, uma
organização mental que é um caso raríssimo”. Mas os elogios não chegam para
retirar a sua candidatura caso António Guterres avance para Belém. Antes pelo
contrário.
“Se fosse a minha
escolha, Guterres seria aquele com quem em gostaria de concorrer nas
Presidenciais”. Como não é…veremos.
Em 2009 Henrique
Neto sai da Iberomoldes, porque a relação com o sócio entrou numa fase de
rutura. Hoje diz que não gosta de sustentar conflitos, “daqueles que já se sabe
à partida que não têm solução”, e agora sabe que foi por isso que saiu. Não
dava mais. “Além de que estava cansado. Tinha trabalho 59 anos sem parar,
sempre a viajar muito, talvez até tenha batido o recorde dos descontos para a
Segurança Social”, diz em jeito de brincadeira para a seguir deixar uma nota
mental: “quando for Presidente da República hei de mandar alguém lá ver isso da
Segurança Social, se bati recordes”.
O motivo foi, por
isso, de divergência, mas a saída foi discreta. “Na empresa nunca se notou que
a saída era por atrito um com o outro. Foi tudo sereno, sem tragédia, sem
ninguém perceber. O sr. Henrique mandou um comunicado para todos os
funcionários a dizer que já trabalhava há quase 60 anos e que era altura de
acalmar. Todos compreenderam e a empresa continuou o seu rumo”, recorda Salomé.
"Agora só o vejo de vez em
quando. No Operário [Sport Operário Marinhense], que agora é um clube de elite,
ou em São Pedro de Moel. Mas só o cumprimento na rua, com 'olá, passou
bem'"
Amílcar Martinho,
amigo de infância
Passados seis
anos, o empresário garante que não ficou nenhum “vazio”. Até porque a vida é um
comboio em constante movimento, com várias estações e apeadeiros. Tudo o que
começa, acaba. A genética da irrequietude do pai. Saiu quando teve de ser e
aproveitou para se dedicar às suas outras paixões: os livros e a escrita, o
veleiro no Algarve, a família, os netos, a casa de Miraflores e de São Pedro de
Moel, as tertúlias de pensadores, e, por fim, o reencontro de papel passado com
a política.
Mas naquele
último dia, quando fechou a porta do gabinete na Iberomoldes e se despediu da
sua secretária de uma vida, apercebeu-se de que aquela era uma estação das
grandes que ia perder de vista assim que soasse o apito do comboio. This is it.
“Porque eu simbolizava o último adeus. Já tinha tratado de tudo, já tinha
arrumado tudo, preparava-se para fechar a porta do gabinete pela última vez…”. E
ali estava Salomé. Naquela altura, Henrique Neto já não foi capaz de falar nem
de manter a serenidade e discrição que tinha pautado o seu processo de
despedida. E chorou.
Ainda hoje, seis
anos depois, o seu gabinete continua intacto, com todas as suas coisas, tal e
qual as deixou. Salomé Rios continua a trabalhar exatamente no mesmo sítio,
algures entre as duas portas que separavam os dois sócios, uma à esquerda,
outra à direita. Com a diferença de que já não o vê entrar e caminhar pelo
corredor para adivinhar se vem bem ou mal disposto. Ainda hoje aquela porta da
direita (ou seria a da esquerda?) é o “gabinete do sr. Henrique”.
“E duvido que algum dia deixe de ser”.
P.S. –
Tire-se-lhe de vez o título de doutor, engenheiro ou arquiteto. Não tem nenhum
curso superior e faz questão de o dizer. Foi Mário Soares quem lhe acrescentou
certa vez o ‘arquiteto’, já que teimava em não ser nenhum dos outros dois. Mas
não. Comendador até é, mas também não gosta. Lembra-lhe Eça. Henrique Neto, apenas. Esclarecido?
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