O delírio das PPP no seu
esplendor / Barcelos: Factura de 172 Milhões / Contrato ruinoso de água ameaça
afundar Câmara de Barcelos
Previsões de consumo irrealistas,
decisões sem ponderação e contratos sem estudo tornaram as concessões de
abastecimento de água dos municípios num pântano de suspeitas e prejuízos. O
Tribunal de Contas anda há anos a denunciar o mal e a pedir ao Governo
De acordo com o “caso-base”, em
Barcelos viveriam 122.096 habitantes. Errado: eram apenas 120.391. E
estimava-se que o consumo médio rondava os 114 litros/dia, mas, hoje, esse
valor está 50,1% abaixo das previsões
Manuel Carvalho /
29-3-2015 / PÚBLICO
A paisagem verde
que se estende pelo concelho de Barcelos transmite a sensação de fertilidade e
de abundância de água. Mas sob a capa dos prados, das vinhas, dos rios ou dos intermináveis
poços particulares, essa abundância agrava o clamoroso fracasso do contrato de
concessão da exploração e do abastecimento público de água que a câmara
celebrou há quase uma década com uma empresa do universo Somague
O contrato
cumpriu as formalidades do Tribunal de Contas e da entidade reguladora das
águas e saneamento, mas o seu irrealismo em relação às previsões de aumento da
população ou do consumo de água per capita era tão evidente que bastaram quatro
anos para que se tornasse um desastre de enormes proporções. Agora, o negócio
está desfeito, pedidos de condenação e de nulidade do contrato arrastam-se em
tribunal, funcionários e o ex-presidente da autarquia Fernando Reis foram
constituídos arguidos por suspeitas de crimes graves, e a Câmara de Barcelos
arrisca-se a pagar uma indemnização de 172 milhões de euros que ameaça a sua
solvabilidade. “É o meu maior pesadelo”, reconhece Miguel Costa Gomes, o actual
presidente da câmara.
Ler com detalhe
todas as peças deste negócio é por isso regressar a um tempo de
irresponsabilidade, laxismo e desrespeito pelo interesse público que marcou o
auge das parcerias público-privadas (PPP). A concessão a privados do
abastecimento público de água deu origem a um enorme pântano que já fez e
desfez candidatos a presidente de câmara um pouco por todo o país e já levou o
Tribunal de Contas (TC) a pedir ao Governo a revisão do regime jurídico dos
serviços municipais que o gerem. Em Janeiro deste ano, uma auditoria de
seguimento do tribunal acusava o Governo de não ter acolhido a sua orientação,
mantendo um regime legal que “não acautela” o interesse público “ao
salvaguardar elevadas margens de rentabilidade dos investimentos accionistas de
grupos económicos privados”.
Os primeiros passos
As concessões do
abastecimento público de água e a gestão do saneamento tornaram-se uma moda
depois do ano 2000, mas foi em Paços de Ferreira, Gondomar, Marco de Canavezes
e, principalmente, em Barcelos que os contratos atingiram o limiar máximo de
desprotecção
do interesse
público. Na cidade minhota, o negócio surgiu como uma inevitabilidade e uma boa
intenção, mas depressa se transformou num pesadelo. “Nos anos 1990 só havia
água e saneamento na cidade, não havia uma estação de tratamento de águas
residuais, ia tudo parar ao rio”, explica Fernando Reis, presidente da
autarquia eleito pelo PSD entre 1989 e 2009. “E como nós não tínhamos dinheiro
para satisfazer as necessidades do concelho, tínhamos como alternativa a
concessão, que foi o que fizemos”, acrescenta o ex-autarca.
Até aqui nada de
diferente do que acontecia já noutros municípios. Os problemas, porém, começam
quando a câmara decide avançar com o concurso público internacional para
concessionar a exploração e o abastecimento de água num regime de parceria
público-privada. Este passo fez-se de um modo que mereceu a censura do TC. Por
duas ordens de razões: por não ter sido precedido de um estudo de viabilidade
económica e “por não se ter elaborado o comparador público”, ficando-se “sem
meios de saber, como a lei preconiza, se a constituição da parceria
públicoprivada que o contrato concretiza é a solução mais adequada”. A
comparação seria, na óptica do TC, “uma exigência material que decorre, aliás,
do cumprimento do dever da boa administração”.
Com a decisão
política tomada, o processo começa a avançar e logo no início surgem sinais de
proximidade entre o executivo municipal e a empresa que viria a ganhar o
concurso. Documentos colhidos pelo TC ou transcritos no acórdão do Tribunal
Arbitral que em 2012 tentou solucionar o diferendo entre a concessionária e a
autarquia deram como provados contactos prévios de uma empresa da Somague, a
AGS, com os serviços da autarquia, que indiciam um grau de proximidade que
eventualmente outros concorrentes não teriam. Um fax de 18/02/2002 dirigido a
Perfeita Fernandes, a técnica que geria a área do ambiente do município, pede
informações sobre água e saneamento com vista à “obtenção de um modelo que dê
resposta às questões levantadas pelo Senhor Presidente da Câmara”. Perfeita
Fernandes declararia aos auditores do TC não saber “qual o objectivo do
fornecimento dos dados solicitados”, lembrando apenas que cumpriu ordens de
Fernando Reis. Mas admitiu que pudessem estar relacionados com a exploração,
por parte da AGS em consórcio com a Efacec, da ETAR de Barcelos.
Os mistérios do contrato
Um ano mais
tarde, o contrato é lançado e, no relatório de análise das propostas, surge
mais um mistério. A parte essencial do relatório foi feita em exclusivo por
Perfeita Fernandes, quando a lei determinava a constituição de uma comissão
para esse fim. Na teoria, dois quadros dos serviços jurídicos da autarquia
foram chamados a integrar a comissão, mas o seu papel foi de simples figurante.
Perfeita apresentou parte do relatório “tendo os outros dois elementos se
limitado a assiná-lo, nunca tendo havido qualquer reunião daquela comissão para
aquele fim”, nota o Tribunal de Contas. Depois, a análise do item “solidez da
estrutura financeira e contratual proposta”, que valia 6% na decisão, foi
entregue por Fernando Reis, e Perfeita Fernandes limitou-se a juntá-la ao
processo. Reis explica o que aconteceu com recurso a experiências anteriores.
“Peguei nos relatórios de outros municípios e adaptei-os à nossa realidade”,
explica. “Por que razão havia de ter de gastar dinheiro com advogados se eles
acabariam por me entregar o mesmo?”, pergunta.
No final de 2003
já se sabia que o consórcio Águas de Barcelos, composto pela AGS (com 75% do
capital) e pela empresa de construção local Alexandre Barbosa Borges, tinha
ganho o concurso. Faltava redigir o contrato, tarefa a que quer a câmara quer o
concessionário eleito se dedicaram depois de Dezembro de 2003. A peça crucial do
processo, a definição de um “caso-base” que servisse de parâmetro para
eventuais compensações da câmara se houvesse desvios na água facturada, por
exemplo, foi completamente entregue ao consórcio. Ou seja, a autarquia abdicou
de formular as regras do jogo, embora se tenha empenhado em discutir as que o
parceiro privado lhe apresentou. Seriam os números inscritos no “caso-base” que
levariam à ruína do contrato e do negócio.
De acordo com os
dados inscritos no “caso-base”, em Barcelos viveriam em 2001, o ano de
referência para a elaboração dos cenários demográficos e do consumo de água,
122.096 habitantes. Errado: eram apenas 120.391. Previa-se uma taxa anual de
crescimento da população em 1%, o que nunca aconteceu — depois de 2007, a população do
concelho seguiu a tendência nacional e começou a diminuir em consequência da
emigração. Estimava-se que em 2001 o consumo médio por pessoa em Barcelos
rondava os 114 litros, um valor que, de acordo com o “caso-base”, cresceria
três litros por dia por habitante até 2018, o que se veio a provar ser um
delírio — até 2011 o consumo
per capita estava
50,1% abaixo das previsões do “caso-base”.
O custo do “caso-base”
“O contrato não
está sustentado em nada, padece de má-fé”, queixa-se o actual presidente da
autarquia. O Tribunal de Contas corrobora: “Não se fez nenhum estudo que
suportasse” os aumentos de consumo, sublinha o tribunal. Fernando Reis, por seu
lado, garante que “se fosse hoje fazia tudo na mesma”, deixando no ar a ideia
de que era impossível prever uma queda tão abrupta dos níveis de consumo, que a
fixação do valorpadrão obedeceu aos requisitos da legislação e que os seus
termos foram aprovados pela entidade reguladora do sector, na época o Instituto
Regulador das Águas e Resíduos (IRAR).
Como corolário do
“caso-base”, vinham as consequências se por alguma razão as metas desenhadas
pelo concessionário e acordadas por Fernando Reis não fossem cumpridas. Se
houvesse um desvio de 20% na média de consumo de água prevista no “caso-base”,
seria accionada uma cláusula de reequilíbrio financeiro que obrigava a
autarquia a responsabilizar-se pela quebra do negócio da concessionária — à
partida, nos termos do contrato, a Águas de Barcelos tinha garantida uma taxa
de rentabilidade de 10,3% do seu volume de negócios, pelo que, quanto mais
facturasse, mais aumentava os seus lucros.
Não foi preciso
muito para se perceber que a câmara estava condenada a suportar pesados
encargos com um contrato baseado em pressupostos errados. Como diz Miguel Costa
Gomes, “a especificidade do município” não foi tida em conta, principalmente a
sua faceta rural. Para começar, os habitantes das freguesias torceram o nariz à
ideia de que teriam de pagar pela água que consumiam, eles que desde tempos
ancestrais abasteciam as suas necessidades através de furos à porta de casa.
Para muitos, a ideia de dispor de uma rede de saneamento era atractiva, mas os
custos com a instalação de ramais até casa (1500 euros, actualmente) dissuadiu
muitos de aderir — apesar de a lei obrigar a ligação doméstica aos serviços
públicos sempre que haja redes nas imediações.
Face à reduzida
adesão dos barcelenses, a câmara decide entrar em cena. Numa deliberação que
mereceu a abstenção do PS, a autarquia dispôsse a assumir metade dos custos da
instalação dos ramais e a pagar na íntegra as ligações nos casos de famílias
sem recursos. Para Fernando Reis, havia necessidade de garantir o serviço
público e, ao mesmo tempo, de salvar o mais possível um contrato condenado a
causar avultados prejuízos ao município. A verdade é que, com ou sem ajuda
pública, a rede foi crescendo: até final de 2009, a Águas de Barcelos
investiu 74,6 milhões de euros para construir 481km redes de água, 458km redes
de saneamento, 11.503 ramais de água e 11.505 ramais de saneamento.
Boicote à moda do
Minho
Mas se o número
de contadores crescia, o mesmo não acontecia com o consumo. Uma grande parte da
população usava o sistema público para as suas descargas de águas residuais e
continuava (e continua) a usar águas dos poços para cozinhar e tomar banho. A
concessionária tinha pesados encargos a gerir os resíduos sem poder facturar
pela venda de água. É por isso que se introduz uma alteração destinada a
penalizar o não consumo. Se um cliente não utilizasse nenhuma água, pagava 14
euros; mas se consumisse até cinco metros cúbicos, pagava menos do que isso.
“Para evitar despesas, os emigrantes mandaram os seus familiares abrir a
torneira todos os meses, o que é um enorme desperdício”, lamenta o presidente
da câmara.
Nem o
financiamento de ramais nem a penalização do não consumo foi no entanto capaz
de evitar o desastre financeiro da concessão. Com o aumento do número de
clientes que usavam pouco (ou não usavam de todo) a água da rede pública, o
consumo per capita ficou cada vez mais longe do previsto. Em 2005, estava nos
112 litros por pessoa/dia; no ano seguinte recuou para 90 litros; e em 2009,
cada barcelense consumia 75 litros de água por dia, quando o “caso-base”
apontava para 138 litros. Quando este desvio se começa a tornar visível, a câmara
dispõe-se a negociar aditamentos e mostra-se receptiva a fazer obras que, pelo
caderno de encargos, cabiam à concessionária. Pelo meio, tem também de
concordar com sucessivos aumentos de preços que suscitam ainda mais hostilidade
à população.
Em 2009, acontece
o inevitável: a Águas de Barcelos reclama um aumento imediato do preço da água
em 38% e requer a aplicação da cláusula de reequilíbrio financeiro para ser
compensada pelo enorme desvio dos consumos de água em relação ao “caso base”.
Mas 2009 é um ano de eleições. “Eu não tinha condições políticas para aprovar o
aumento do preço”, reconhece Fernando Reis. E ainda menos para avançar com uma
compensação para o reequilíbrio financeiro da sociedade. Na campanha autárquica
desse ano, a água estava no centro da polémica. Uma carta aberta do PS acusava:
“A única cobertura política que Fernando Reis promove é para beneficiar uma
empresa privada, permitindolhe agir com impunidade, tratando os cidadãos de
Barcelos de forma autoritária e arrogante.” Um cartaz do PS advertia: “Se
conduzir... não beba água de Barcelos. Já basta o preço dos combustíveis.” Um
outro, precisava: “E tudo a água levou. O preço da água em Barcelos aumentou
80% em cinco anos.”
A questão da água
está no princípio do fim do longo reinado de Fernando Reis em Barcelos. Miguel
Costa Gomes é eleito com uma diferença de 972 votos, depois de prometer baixar
o preço da água, de acabar com o “desrespeito” da concessionária pelos
barcelenses e de denunciar uma alegada “má-fé” e “nulidade” do contrato das
águas. Depois de chegar à câmara, não tem recuo: tinha de se preparar para uma
luta com a concessionária na qual tinha poucas hipóteses de vencer. A Águas de
Barcelos recorre, nos termos do contrato, a um tribunal arbitral, formado por
dois juízes indicados pelas partes e um juiz presidente por eles cooptado, e
perde em toda a linha — o acórdão que a condena foi votado por unanimidade.
Mesmo que no
contrato estivesse previsto que as partes se abstinham de recorrer das decisões
do tribunal arbitral, Miguel Costa Gomes não se conforma. Protesta contra a
impossibilidade de recurso (“todos os contratos desta natureza são assim”,
justifica Fernando Reis), queixa-se do facto de a sede do tribunal ter sido
fixada em Lisboa (“uma ninharia”, continua o ex-autarca), mantém que o contrato
tem vícios que apontam para a sua nulidade e avança para os tribunais
administrativos. Em Abril do ano passado, o Tribunal Administrativo do Norte
confirmou a sentença do tribunal arbitral e condenou a Câmara a pagar 24,6
milhões de euros pelo reequilíbrio financeiro de 2005 a 2009, 11,8 milhões
pelos anos de 2010 e 2011 e 5,9 milhões por ano até ao final da concessão, em
2035. Feitas as contas, a factura que espera a câmara eleva-se a 172 milhões de
euros, ou seja, mais de três anos de receitas da autarquia.
Crime, suspeita a
IGAL
No meio de todos
estes revezes, Miguel Costa Gomes recebeu o apoio dos auditores do Tribunal de
Contas, que arrasam o contrato, e de uma inspecção da IGAL (Inspecção-Geral da
Administração Local), que em 2011 detecta ilícitos de natureza administrativa, contra-ordenacional
e criminal por parte do anterior presidente e da técnica Perfeita Fernandes. O
resultado da inspecção é remetido para o DCIAP, que abre um processocrime para
averiguar suspeitas de crimes de falsificação de documentos, tráfico de influências,
participação económica em negócio, corrupção passiva em acto ilícito. Fernando
Reis desvaloriza o relatório e o processo. A auditoria do TC “é uma manobra
política do PS”, diz, acusando os seus autores de não o terem ouvido (Reis
recusou prestar declarações no edifício da câmara). Depois, quanto ao processo,
“isso está parado há quatro anos”. Sobre este impasse, o actual autarca formula
um desejo: “Espero que não haja a tentação de deixar prescrever o processo.”
A Miguel Costa
Gomes resta apenas a possibilidade de haver uma sentença favorável no Supremo
Tribunal Administrativo ou a declaração por parte da justiça criminal da
nulidade do negócio. “Podemos chegar ao ridículo de termos de avançar com a
indemnização e depois haver uma decisão judicial sobre a nulidade do contrato.
Mas aí haverá capacidade para nos pagarem?”, questiona o autarca. Para Fernando
Reis, a câmara “está condenada a perder, o que será um enorme prejuízo para os
barcelenses”.
Para pagar os
valores já em dívida, a câmara precisava de um ano das suas receitas, que
rondam os 52 milhões de euros. E depois ficaria presa a um encargo anual de
enorme impacto durante anos. Face a esse cenário negro, a câmara está a
negociar a recompra da concessão com a Somague, que declarou ao PÚBLICO não querer
pronunciar-se sobre a questão de Barcelos. Miguel Costa Gomes, que se reelegeu
em 2013 com 46,4% dos votos, diz ter apoio de um banco para realizar um negócio
até cem milhões de euros. “O problema é que a concessão não vale cem milhões”,
diz. Ainda assim, esse pode ser o cenário mais benevolente para o futuro da
autarquia. E a última factura a pagar de um tempo em que as concessões estavam
na moda, quando o profissionalismo das empresas impunha severas derrotas ao
facilitismo dos organismos do Estado.
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