Participação em tempos de raiva
HELENA ROSETA
15/03/2015 - PÚBLICO
É preciso passar do écran para as ruas e das ruas para as urnas.
Ao contrário do
que muitas vezes oiço dizer, as pessoas não andam resignadas nem apáticas.
Estão descrentes e revoltadas, embora nem sempre o exprimam ou manifestem.
Vivemos tempos de raiva, uma raiva surda que pode explodir subitamente.
Raiva contra as
políticas austeritárias que não resolveram os problemas do país e agravaram as
desigualdades; raiva contra o vexame do protectorado europeu sob o comando da
Alemanha e a subserviência do governo português; raiva pelo cinismo de um
Primeiro-ministro que reivindicou para si uma indulgência oposta à
intransigência que nos impôs; raiva pela impunidade da grande corrupção, desde
o buraco do BES aos vistos gold; raiva pela pusilanimidade da nossa suposta
“nata” empresarial e banqueira, capaz de destruir valor com uma leviandade que
nunca imaginámos possível; raiva pela lentidão da justiça e pela banalização e
saturação da paisagem televisiva, como se todos os canais, sujeitos à ditadura
das audiências, acabassem por ser um só; raiva finalmente pelo desconforto
perante o fosso entre quem nos representa, ou devia representar, e a maioria
dos portugueses.
Face a este
acumular de tensões e frustrações, há indignação, revolta e cansaço. Mas as
crises da democracia só se resolvem com mais democracia, o que implica mais e
melhor participação dos cidadãos. E não se diga que os portugueses não
participam. Fazem-no nalgumas condições: quando acreditam que podem mudar
alguma coisa – como se viu no caso de sucesso que foram as primárias do PS,
mesmo que haja quem já se sinta insatisfeito com o caminho feito desde então;
ou quando sentem que ninguém defende eficazmente a sua causa – como é patente
na mobilização dos indignados e enganados pelo papel comercial do BES; ou ainda
quando uma causa maior os leva a acreditar na utopia, como sucedeu com o
movimento por Timor em 1999.
A participação
tem contudo os seus riscos e os seus limites. Ela não substitui a democracia
representativa, antes deve complementá-la, o que em Portugal é muito difícil. A
participação pode estimular populismos ou conduzir à desilusão. E nem tudo o
que é participativo é bom – já vi, por exemplo, movimentações muito
participadas pedindo à autarquia que remova pessoas sem abrigo como se fossem
lixo.
Ao longo dos
últimos anos, vivi por dentro inúmeros movimentos e processos participativos.
Posso por isso testemunhar as principais dificuldades que sentimos. Em primeiro
lugar, a questão da continuidade. É relativamente fácil mobilizar gente para um
assunto específico com um calendário próximo. Fazê-lo em torno de causas mais gerais
é muito mais difícil. As pessoas gostam de tomar posição, mas depois não têm
tempo ou paciência para alimentar processos que podem ser demorados e
desgastantes. Também é complicado lidar com questões de liderança, mas sem uma
estratégia reconhecível num rosto os processos participativos tendem a
esgotar-se, ou a cindir e pulverizar-se. O amadurecimento e consolidação de
movimentos participativos mais ou menos espontâneos não dispensam uma liderança
legitimada, uma avaliação crítica e resultados palpáveis.
Outra
dificuldade, banal, é a do suporte logístico e financeiro. Ir à net pode ser de
graça, mas o uso de espaços, a promoção de eventos e a mobilização de pessoas
tem custos, em tempo e dinheiro. A legislação portuguesa sobre associações é
completamente obsoleta. Em vez de incentivar, espartilha e dificulta, num
resquício controleiro dos tempos do regime ditatorial.
O espaço da
intervenção política, por essa Europa fora, está em mutação. Mudam as
fronteiras ideológicas, mudam as bases de apoio, crescem novos tipos de
confrontação para lá do velho binómio esquerda/direita. O líder do Podemos em
Espanha fala nos de cima e nos de baixo, por exemplo; outros falam de incluídos
e excluídos, ou os de dentro e os de fora. Pela minha parte costumo usar como
critério para a separação de águas uma adaptação pessoal da máxima “in dubio
pro reo”, que traduzo por “na dúvida, pelos pequeninos”. Quando estão em jogo
múltiplos interesses, como sucede na gestão de uma cidade, este critério tem-me
sido bastante útil. Sabemos sempre quem são “os pequeninos”. E mesmo que não
tenham toda a razão, merecem uma discriminação positiva quando possível.
A participação
não pode esgotar-se no próprio acto de participar. Não basta encher a net de
petições e abaixo-assinados, ou o facebook de “likes”. É preciso passar do
écran para as ruas e das ruas para as urnas. E é preciso, quando se consegue
aceder a um cargo político eleito, ser capaz de fazer a diferença e de fazer
diferente. Só assim se poderá transformar a participação em tempos de raiva na
energia criadora que falta inocular na nossa democracia decadente.
Arquitecta.Texto
baseado na intervenção feita em 13.3.2015 no Congresso da Cidadania, promovido
pela A25A
Sem comentários:
Enviar um comentário