O regresso dos extremos na
Europa?
JOÃO CARLOS
ESPADA 16/03/2015 - PÚBLICO
A direita e a esquerda democráticas fariam bem em parar para reflectir.
Enquanto o
discurso da esquerda continua a investir contra a “direita neoliberal”, uma
velha direita autoritária, antiliberal e xenófoba reemerge paulatinamente em
vários países europeus. No próximo domingo, nas eleições locais em França, a
Frente Nacional de Marine Le Pen pode inclusivamente sair vencedora, com cerca
de 30% de intenções de voto. Daí às eleições presidenciais pode faltar apenas
um passo.
Mas a França não
é caso único. Na Grécia, em Itália, na Áustria, Hungria, Holanda e até, em grau
menor, na Alemanha, crescem partidos que fazem ressuscitar o discurso
antiliberal da velha direita europeia dos anos 1930 — quando a democracia
“fechou para obras” no continente europeu.
Este fenómeno é
intrigante a vários títulos. Antes de mais, porque coincide com a radicalização
do discurso da esquerda contra o chamado “neoliberalismo da direita”. Ora a
direita de Marine Le Pen e associados é em primeiro lugar contra a liberdade —
seja esta de esquerda ou de direita, seja esta neoliberal, ou socialista, ou
social-democrata, ou conservadora, ou democrata-cristã.
Essa velha
direita, chamemos-lhe assim, discursa contra os mercados, a concorrência, o
comércio livre. Reclama a intervenção do Estado na economia, a protecção dos
produtos nacionais contra a concorrência externa… e até a garantia de reforma
aos 60 anos. Depois, vem o discurso contra os imigrantes, que começa por ser
contra o islamismo mas acaba invariavelmente no ataque aos
“judeus-capitalistas”.
Uma outra
dimensão muito instrutiva é o elogio da Rússia de Putin. O partido de Le Pen
recebeu mesmo um empréstimo de 9 milhões de euros de um banco russo com
alegadas ligações a Putin. E as referências elogiosas a Putin são frequentes.
Tal como a extrema-esquerda do Syriza, também a extrema-direita de Le Pen e
associados — na Hungria, por exemplo — partilha de grande admiração pública
pelo estatismo autoritário de Putin.
Perante estes
sinais muito preocupantes, a direita e a esquerda democráticas fariam bem em
parar para reflectir. E, em vez de se atacarem mutuamente por
dá-cá-aquela-palha, fariam melhor em recordar o seu compromisso comum com a
liberdade e a democracia. E poderiam talvez iniciar uma reflexão comum sobre as
origens do crescimento dos extremos na Europa — da extrema-direita em França,
ou da extrema-esquerda na Grécia e em Espanha, por exemplo.
Em meu entender,
uma dessas origens é cultural, a outra económica — mas ambas emergem de excesso
de rigidez uniformizadora.
No plano
cultural, um excessivo consenso politicamente correcto insiste na equivalência
entre todas as tradições culturais, políticas, religiosas, estéticas ou outras.
É o novo dogma do multiculturalismo. Bem interpretado, o multiculturalismo
deveria apenas querer dizer diálogo crítico e livre entre diferentes culturas e
convicções. Mas a interpretação autoritária dominante quer dizer o contrário:
silenciamento do diálogo crítico, em nome da absoluta igualdade e equivalência
das chamadas “identidades particulares” — sobretudo se elas “pertencem” a
culturas que o politicamente correcto descreve como tendo sido “oprimidas”, ou
colonizadas, ou “exploradas” pelo Ocidente.
Se estes dogmas
politicamente correctos forem espalhados em doses maciças por um sistema de
ensino estatal centralizado que não permite às famílias a escolha das escolas e
dos projectos educativos; se esses mesmos dogmas forem reproduzidos
uniformemente por um sistema universitário e de investigação também eles
profundamente estatizados e centralizados; se, ao mesmo tempo, crescer
significativamente a presença de imigrantes com fortes identidades culturais não
europeias; se tudo isto acontecer simultaneamente, como está a acontecer, estão
criadas as condições para uma revolta das comunidades nativas — sobretudo em
zonas mais desfavorecidas em que a presença de comunidades imigrantes é mais
patente.
Nestas condições,
os partidos extremistas, sobretudo de direita, terão o terreno fértil para
crescer, apresentando-se como os únicos defensores das raízes europeias das
populações nativas. Este será, tem sido, o resultado da rigidez politicamente
correcta que dificulta a respiração livre e pacífica das várias tradições.
A outra rigidez,
receio ter de dizer, resulta do desenho uniformizador do projecto da moeda
única europeia, o euro. Em vez de ter sido apresentado como uma entre várias
opções no seio da União Europeia, o euro foi apresentado como moeda única
(quando podia ter sido apenas uma moeda comum, em pacífica concorrência com as
moedas nacionais). Todos os países da UE teriam por fim de aderir ao euro. E
este, como era natural, requeria políticas orçamentais comuns, centralmente
confirmadas. A saída ordeira do euro não foi prevista nos tratados.
Aqui cresceu de
novo o terreno fértil para os extremos. Nos países do sul, a extrema-esquerda
começou a dizer que o euro era imposto pelos neoliberais do norte. Nos países
do norte, a extrema-direita começou a dizer que o euro era um estratagema para
transferir recursos para os países do sul.
Pode este
processo de radicalização mútua ser ainda travado? Creio que sim. A primeira
condição reside em compreender que a causa da radicalização não tem sido a
liberdade, mas a rigidez: a rigidez politicamente correcta, de um lado, e a
rigidez orçamental, de outro, que devia ser explicitamente voluntária para cada
democracia nacional.
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