sábado, 9 de agosto de 2014

Francisco Seixas da Costa "Um país que emigra é um país que não se prestigia"


Francisco Seixas da Costa "Um país que emigra é um país que não se prestigia"
Por Isabel Tavares
publicado em 9 Ago 2014 in (jornal) i online
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus critica a política externa do governo e fala do mau momento do PS

Quando, há uns anos, Londres fez uma campanha contra o trabalho infantil em Portugal, um grupo de industriais portugueses foi perguntar-lhe como poderia contrariar essa imagem. "É fácil, basta acabar como o trabalho infantil em Portugal." A resposta ia valendo a Francisco Seixas da Costa, diplomata, um processo disciplinar, mas a lição mantém- -se: nada melhor que a realidade para alterar a imagem de um país. O contrário é "um esforço de teatro difícil de manter". Hoje, com as devidas alterações, pergunta e resposta poderiam aplicar- -se ao sector bancário e ao caso BES, que em poucos dias deitou por terra a sua imagem e a do país.

Como surgiu o convite para a Jerónimo Martins?

Eu não conhecia Alexandre Soares dos Santos de parte nenhuma, creio que tinha falado com ele uma vez ou outra de ano a ano, em conselhos gerais de universidades. Um dia, em Paris, recebo um telefonema de um senhor que me diz: "Peço desculpa de estar a ligar para o seu telemóvel mas deram-me este número. O meu nome é Alexandre Soares dos Santos, sei que se vai aposentar do Ministério dos Negócios Estrangeiros e regressar a Portugal e gostava muito de o convidar para o conselho de administração da Jerónimo Martins." Caí das nuvens, porque era uma oportunidade de continuar a fazer coisas. Um risco, mas uma coisa irrecusável. Foi no início de Dezembro e eu aposentava-me em finais de Janeiro, pensei que chegaria a Lisboa e, nesta altura de crise, seria difícil. Não imagina o que é a reforma de um embaixador de topo.

Qual é a reforma?

Um diplomata recebe um ordenado-base e é sobre ele que desconta. No entanto, ao longo da carreira tem ajudas, que tem de justificar, e que lhe aumentam o bolo mensal mas sobre as quais não se fazem descontos. Nos últimos anos da carreira os embaixadores de topo estão no estrangeiro consecutivamente e não têm um lugar de director-geral, secretário- -geral ou qualquer outro em Lisboa. No final, a reforma que recebem, de acordo com a lei, incide sobre os descontos, a parte fixa. Está mal formatado e talvez fosse preferível descontar sobre a totalidade, porque o que se ganha no estrangeiro é um complemento de remuneração, não é apenas uma despesa de representação. Com uma agravante, é que o cônjuge perde a sua carreira, pelo que existe uma espécie de dupla exclusividade. A vida de diplomata é feita para os homens terem as mulheres em casa.

Para um embaixador a reforma aos 65 ano é obrigatória. Demasiado cedo?

Somos obrigados a sair aos 65 anos, mas o que é curioso é que a Jerónimo Martins precisa de mim com 65 anos e o Ministério dos Negócios Estrangeiros prescinde de mim com 65 anos. Talvez a obrigatoriedade de sair aos 65 seja demasiado dura, tendo em conta que a reforma vai avançando cada vez mais e que a esperança de vida vai aumentando. Por outro lado temos de ver isto na perspectiva das novas gerações. Apesar de tudo, desamparar a loja também abre caminho para pessoas que têm 40/50 anos assumirem funções relevantes mais cedo. Hoje há um afunilamento grande dentro do ministério. Mas gosto imenso de viver neste país e apetecia-me regressar.

Nunca deixou de vir cá. Mas nota diferenças no país?

Lisboa não é exemplo, tem uma dinâmica e uma vida própria. Mas notei um país mais desanimado, mais sem esperança.

Num telegrama sobre o país, o que diria?

Um telegrama sobre Portugal não seria difícil de escrever. Aliás, devo dizer que as crises são o tempo ideal para os embaixadores. Quando tudo é business as usual ninguém nos lê. Hoje, tendo em conta a exposição que Portugal teve no plano internacional, a situação do país é relativamente conhecida, para o bem e para o mal. Por vezes há aspectos que são caricaturados e que não nos afectam mais por não sermos um país com uma visibilidade muito grande.

O caso do BES, de que maneira afecta a imagem de Portugal?

A partir do momento que rebentou o escândalo BES, se reparar nos títulos da imprensa internacional, a ideia é que Portugal entrou outra vez em desequilíbrio, voltou a estar em dificuldades. Como se o caso BES caricaturasse o país e todo o impacto positivo do fim do programa de ajustamento e um certo apaziguamento dos mercados com aquilo que consideravam ser o problema português desaparecesse de um dia para o outro. O caso BES cria a ideia de que em Portugal ainda há sectores que estão em descontrolo e nós não sabemos. Para a imagem de Portugal é negativo.

Como é que nos vêem lá fora?

Não somos ainda um país suficientemente conhecido e sobre nós paira permanentemente a dúvida: estamos em crise de crescimento há mais de uma década. Temos uma competitividade reconhecidamente baixa e uma grande dificuldade em sustentar os picos de sucesso. Somos sempre vistos como um país débil e que com um abanão fica em dificuldades. É esta a nossa imagem internacional.

É diplomata há mais de 40 anos. A opinião internacional não mudou nada?

Assisti a grandes momentos de melhoria da imagem de Portugal, mas assisto também à quebra cíclica dessa imagem em função de crises sistemáticas. Por exemplo, o problema da emigração. Goste-se ou não, um país que emigra é um país que não se prestigia. O facto de as pessoas serem obrigadas a sair do país onde nasceram para melhorar a sua vida é considerado um falhanço por parte do país de origem. E Portugal é um país que tem ciclos sistemáticos de emigração. Podemos dizer que hoje a emigração é mais qualificada e até que com o tempo vai ser positivo, porque esta nova emigração vai levar aos estrangeiros um tipo de Portugal a que eles não estavam habituados. Mas a emigração como se processa actualmente é uma tragédia, na medida em que fizemos um esforço monumental para qualificar pessoas e depois não as utilizamos. Outro efeito negativo, e disso dei-me conta depois de ter regressado, é que as pessoas estão como que ofendidas com o país por a minha geração não lhes ter dado oportunidade de se realizarem no sítio onde nasceram.

O que fez que a sua geração pelo país?

Fez o 25 de Abril. E eu estava na tropa nessa altura, tenho muito orgulho em ter sido militar no 25 de Abril. Fez aquilo que era possível fazer, uma mudança qualitativa na sociedade portuguesa, que há 40 anos era completamente diferente. Não podemos estar sempre a dizer que se não fosse o 25 de Abril isto ou aquilo, porque se não fosse o 25 de Abril seria o 26 ou o 27 de Abril. Mais cedo ou mais tarde as coisas acabariam por acontecer e até poderia haver uma evolução do regime sem uma ruptura de natureza política, como aconteceu em Espanha. Apesar de tudo, sinto-me globalmente satisfeito pelo Portugal que contribuí para fazer, olhando para as escolas, para os hospitais, para as estradas, deu--se um salto muito grande. Tenho hoje uma angústia por não termos conseguido um país mais solidário, mais desenvolvido e capaz de sustentar o futuro.

Sem ressentimentos?

Há um aspecto importante que é esta naturalidade da vida democrática. Se perguntar a um jovem de 18 ou 19 anos o que é a censura ou a PIDE ele não faz ideia, nem tem de fazer. Não vivo angustiado com a memória de estarmos sistematicamente a descer a avenida de cravo ao peito no dia 25 de Abril. E, particularmente, não viveria nada angustiado com o facto de o 25 de Abril não ser comemorado na Assembleia da República, naquele patético espectáculo de prós e contras. Isso é a minha tristeza. Gostava que o 25 de Abril se comemorasse na rua, calmamente, sem discursos, sem isto que eu considero divisivo e contrastante do 25 de Abril.

Ofendeu-se quando, recentemente, se falou no fim da diplomacia do croquete e no nascimento da diplomacia económica?

Quando entrei para o Ministério dos Negócios Estrangeiros fui trabalhar para a Direcção-Geral dos Negócios Económicos, destruída mais tarde. Depois trabalhei na dos Assuntos Europeus, também em assuntos económicos. Desde que fui adido da embaixada da Noruega, em 1979, até que fui embaixador em Paris, até 2013, não mudei a minha atitude, nem senti que tivesse necessidade de mudar. "Diplomacia do croquete" é uma expressão infeliz do Dr. Durão Barroso, era ele primeiro-ministro. É estranho, porque tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros vários anos, pelos vistos também ministro dessa diplomacia do croquete, com a qual conviveu aparentemente sem grandes reacções.

Sempre existiu diplomacia económica?

As pessoas tiveram sempre essa dimensão bastante presente no seu dia-a-dia. Não conheço nenhum embaixador português que não tivesse trabalhado nessa área. Concentrar agora o esforço diplomático na parte económica é natural, sendo as exportações uma das portas de saída para a resolução do problema nacional. Mas há aqui um elemento que não posso deixar de considerar escandaloso e insultuoso. Em 2011 considerou-se que para tornar o MNE mais eficaz no modo de trabalhar com as empresas era preciso colocar sob sua tutela a AICEP. Nunca fui favorável a esta solução, mas o modelo foi-nos vendido como coerente e essencial para o novo momento da vida portuguesa. Há uma crise no governo e, de repente, a AICEP sai da tutela do MNE e passa para a tutela do vice-primeiro-ministro, que, por acaso, era o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Qual é a coerência deste movimento? Não há nada para fazer no Palácio das Laranjeiras?

Mas houve mudanças...

Estamos mais atentos às questões da Ásia central ou aos processos de paz em qualquer contexto do que estaríamos no passado. Deixámos de ter uma agenda puramente bilateral, com os interesses imediatos portugueses, e passámos a partilhar. Mas houve uma mudança qualitativa, particularmente nos últimos quatro anos.

Para melhor ou para pior?

Tem a ver, provavelmente, com esta inevitável obsessão com a questão financeira que secou todas as restantes dimensões da diplomacia portuguesa. Isto é, além de termos de responder a questões concretas e imediatas, deixámos de ter um pensamento mediterrânico, deixámos de ter aquilo que tinha sido um trabalho interessante de estar presente com um discurso muito coerente e construtivo - e até ouvido na questão do Médio Oriente e nas questões do Golfo. Descurámos, por razões de natureza financeira, a política em relação às nossas comunidades no estrangeiro, passámos a concentrar tudo na questão financeira com a Europa, na promoção das exportações. Isto reduziu muito aquilo que era um quadro bastante mais alargado da diplomacia portuguesa. Penso que nos deixámos fechar demasiado num gueto de problemas cuja resolução seria facilitada se tivéssemos uma visão mais abrangente no quadro internacional. Sou muito crítico da forma como a política externa portuguesa tem vindo a ser desenvolvida.

Portugal tem uma estratégia sobre aquilo que podem ser todas as suas opções externas?

Há uma escassíssima reflexão em Portugal sobre as opções externas. Para algumas pessoas, nomeadamente para alguns think tanks, parece que vivemos num mundo congelado. O mundo varia, a globalização trouxe outros desafios. A própria evolução da União Europeia no seu relacionamento externo impõe aos estados-membros um posicionamento evolutivo e nós não reflectimos sobre isso. Os partidos, como sabe, não têm a mais pequena reflexão sobre questões internacionais. São desertos completos. Os programas do governo na área externa - e eu tive parte de responsabilidade em alguns desses textos - são uma forma habilmente organizada de latitudes e lugares-comuns. Faço parte de um grupo informal de reflexão que se preocupa com isso sem agenda política.

O que é que Portugal deveria estar a discutir?

Tudo o que se está a discutir a nível da União Europeia no âmbito da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, por exemplo, é da maior importância e o papel de Portugal pode ser vital. Devíamos ter isto no centro das nossas atenções porque pode ter implicações fortíssimas na utilização do porto de Sines, na questão do equilíbrio energético, nas oportunidades para as empresas portuguesas no quadro do mercado americano. E disto não se fala. Acho uma bizarria. Parece que só meia dúzia de pessoas se interessam. E é o futuro.

Mas não deixa de ser extraordinário ouvir responsáveis dos EUA e da UE falar sobre a parceria. Parece que estão a falar de coisas diferentes...

Até pode acontecer que haja uma não coincidência das agendas políticas que torne difícil a assinatura do acordo. A nova composição do Parlamento Europeu introduziu mais elementos críticos, tal como os Estados Unidos, com o fim da administração Obama e com um ciclo um pouco mais fechado e isolacionista que poderá surgir. Mas haveria grandes vantagens para os dois lados.

Os portugueses fazem lóbi? Sabem fazê-lo?

Não, não sabemos, e não temos essa capacidade. Neste momento em Bruxelas as coisas estão ligeiramente mais bem organizadas, mas não temos uma tradição como a Espanha ou o Reino Unido, nunca estabelecemos mecanismos para influenciar os nossos interesses. Até porque muitas vezes a definição dos nossos interesses não é totalmente clara. E há outra questão: muitos funcionários portugueses dentro das instituições europeias, que podiam ser úteis à promoção dos interesses nacionais, procuraram esquecer que eram portugueses. A tendência mudou, provavelmente porque o presidente da Comissão Europeia era português, mas durante muito tempo ser português não era um factor de promoção. Funcionámos sempre de uma forma um pouco isolada ou ad hoc .

Chegou ontem da Polónia. As pessoas sentem a guerra como uma ameaça cada vez mais real?

As pessoas estão muito preocupadas, um polaco não fala da situação actual da Ucrânia da mesma maneira que fala um português, o que introduz registos diferenciados que tornam a UE menos fácil, mais dividida. Não falar de guerra é um exorcismo para pensar que ela não é possível. Aliás, a expressão de Obama, dizendo que isto não é uma nova Guerra Fria, é, no fundo, tentar arrefecer fantasmas antigos. Países como os EUA consideram, na leitura do seu papel no mundo - e perante a incapacidade do órgão de regulação multilateral de ter uma acção decidida -, que devem ser eles a tomar a iniciativa, com ou sem os amigos, neste caso a Europa. Não creio que alguém vá morrer por Kiev, isto é, não estou a ver uma guerra envolvendo a NATO até ali. A minha grande preocupação não é a decisão ocidental, é saber se do lado de lá está um poder acossado, com um escasso controlo democrático interno, que pode ser tentado a acções menos racionais. E a Rússia já deu provas no passado de que pode ter essas acções e tentar explorar aquilo que sabe que é a falta de vontade ocidental de ir até uma guerra.

Foi embaixador no Brasil. Como vê a relação actual do Brasil e de Portugal?

No plano económico já tivemos melhores dias, no plano comercial há sempre limites, o Brasil encontra na sua periferia muitos dos produtos que Portugal pode exportar e por isso a nossa balança comercial não é e nunca será esmagadora. No plano internacional devemos articular-nos no quadro da CPLP e potenciar a língua portuguesa. Mas, se for ler um programa do governo português, encontrará várias linhas sobre o Brasil. Se for a qualquer programa do governo brasileiro não encontrará uma única linha sobre Portugal.

Como viu a entrada da Guiné Equatorial na CPLP?

Todos ficamos chocados com a pena de morte na Guiné Equatorial. A pena de morte existe em países nossos aliados desde a primeira hora, como é o caso dos EUA. Há umas áreas em que só tocamos quando nos dá jeito. Somos oportunistas, temos uma Realpolitik e mais facilmente temos ideias politicamente correctas em relação a países mais frágeis ou de que não dependemos. Podemos dar-nos ao luxo de grandes princípios quando não temos grandes interesses.

Se a UE fosse a América Latina, que país seria Portugal?

É difícil. Teria de ter a dimensão do Peru mas uma estabilidade maior. Não somos o Chile, infelizmente, e o Brasil seria a Alemanha. Não sei quem será a Venezuela.

Do que precisa Portugal para se afirmar lá fora?

Para mim, um dos principais factores para um país como Portugal se afirmar no plano internacional é a previsibilidade, não vale a pena fazer grandes números. Somos um país não muito conhecido e com uma imagem difusa. O que se passou nos últimos anos, com as forças políticas, que têm grandes divergências entre si, a tomar consciência de que é preciso fazer uma reforma das contas públicas, é algo que nos dá alguma credibilidade. As pessoas percebem hoje que uma alternância política em Portugal se fará sempre num quadro de grande respeito pelos compromissos internacionais. Ninguém lá fora vive na angustia sobre se é Costa ou Seguro.

E para dentro, é indiferente quem ganha?

São duas lideranças de modelo diferenciado. Acho que se está a passar um tempo triste dentro do Partido Socialista porque há uma fulanização excessiva do debate, uma espécie de juízo de personalidades e um deserto de ideias. O PS está a sofrer disso e vai sofrer disso, em particular porque qualquer dos lados está a deixar sair a terreiro alguns talibãs específicos que estão a criar uma acrimónia muito forte dentro do partido, o que não é tradição. As feridas vão ser muito difíceis de curar a partir do momento em que um ou outro ganhar. Mas penso que há legitimidade para António José Seguro se manter no lugar em função daquilo que foi o compromisso feito há um ano, da mesma maneira que é natural que outro sector do PS faça uma leitura não tão entusiasta das suas vitórias. Perante aquilo que é um movimento exterior forte que põe em causa a actual liderança, Seguro abre um processo novo ao lado e tira as consequências. Do ponto vista formal é o que melhor protege os dois campos. Sempre fui favorável às primárias, em França foram um sucesso no Partido Socialista e vão agora ser utilizadas pela direita. O que se temia, e vem a dar-se conta de que há razões para isso, é que o modelo das primárias, pelo tempo que demora, cria um ambiente de fortíssima tensão que causa feridas que vamos ver como é possível sarar no pós-eleições. E isto preocupa-me, porque o partido que sair do dia 28 de Dezembro, e depois do congresso e das directas, vai ser um partido muito dividido. E não sei se isso é bom para a política portuguesa e para um grande partido alternativo em Portugal. Hoje, aliás, na Rua de São Caetano à Lapa [sede PSD] devem estar com um sorriso do tamanho do mundo.

Isso aborrece-o?


Confesso que há pessoas que não desgosto de ver tristes.

Sem comentários: