Mistérios da fé: os Zés que fazem
falta
Helena Matos /
31-8-2014 / OBSERVADOR
Enquanto lisboeta
regozijo-me por José Sá Fernandes ter a seu cargo os jardins. Suponha-se que
lhe tinham dado rédea livre para as estátuas, cruzes, bibliotecas pejadinhas de
livros ultrapassados?
O carácter
messiânico da esquerda que quer sempre ser mais esquerda, mais pura e que passa
a vida a garantir que agora é que vai ser produz a nível internacional
fenómenos como Hollande (são dignos de uma antologia da fé os títulos da
imprensa portuguesa após a eleição de Hollande) e, numa pequena escala, gera
fenómenos como José Sá Fernandes que assim que passam das palavras aos actos se
assemelham àqueles balões que mal saem das mãos do vendedor para as da criança
começam a perder gás. (Ainda não me recompus dos cinco euros que dei por um
balão Hello Kitty na precisa semana em que se descobriu que a dita afinal não é
uma gata mas sim uma menina e para meu azar o balão também descobriu que não
quer ser balão e está para ali mais vazio que os nossos bolsos depois de
pagarmos os impostos com que este governo mais liberal de sempre nos
presenteia.)
Pois o nosso Zé,
o tal que nos garantiam fazia falta, é uma dessas figuras. Agora deu-lhe para
embirrar com os buxos da Praça do Império: “estão ultrapassados” diz a
assessoria de imprensa do vereador que, talvez no entusiasmo de finalmente ter
algo para comunicar, importou para a jardinagem um conceito da propaganda
totalitária: só se conserva o que está de acordo com a ideologia dominante. O
passado e o não conforme apagam-se. Cortam-se. Deixam-se secar.
Felizmente para
nós que o vereador Sá Fernandes tem o pelouro dos jardins e assim só lhe sobram
os buxos da Praça do Império e, daqui lhe lanço o meu repto, terá também de
intervir nas hortas da capital, pois terá de admitir o senhor vereador que
nisto de hortas citadinas, mais a mais biológicas, Salazar foi precursor. O
senhor vereador já pensou que em cada lisboeta que planta verduras por essa
capital fora se esconde um manhoso português sempre a dizer que tem saudades do
campo, que na sua aldeia é que se está bem mas que depois não despega daqui nem
por nada? Eu se fosse ao senhor vereador instituía um exame de anti-salazarismo
aos candidatos a hortelões, para avaliar das suas intenções progressistas,
porque sem essa avaliação corre-se o risco de cada pé de couve que medra na
capital se transformar numa ode ao pretérito chefe de Governo, para todos os
efeitos patrono honorário das hortas nesta Lisboa que desde o rinoceronte que
el-rei D. Manuel I, o Venturoso de seu cognome, mandou ao Papa Leão X, já viu
tanta coisa que nada a espanta. Nem sequer o senhor vereador!
De qualquer modo
enquanto lisboeta regozijo-me por José Sá Fernandes ter a seu cargo os jardins.
Suponha-se que lhe tinham dado rédea livre para as estátuas, cruzes, azulejos,
bibliotecas pejadinhas de livros ultrapassados e demais símbolos doutros
tempos? Não havia picaretas nem fogueiras que chegassem! Imaginem o que seria
de nós se o vereador olhasse com olhos de ver para a fachada dos Jerónimos?
Para a Torre de Belém? Para a esfera armilar que está no pelourinho da Praça do
Município?… Lisboa tornar-se-ia num imenso Chão Salgado ou, numa versão mais
épica, numa Cartago após a passagem de Cipião: todo o vestígio do passado seria
apagado.
Assim com os
buxos a coisa é mais fácil e menos aparatosa. E sobretudo talvez finalmente o
senhor vereador consiga fazer alguma coisa. Porque por assim dizer o senhor
vereador é uma espécie de personificação do inconseguimento, palavra do afecto
da presidente do nosso parlamento e que colocou meio país a tremer quando, no
10 de Junho, Cavaco Silva desmaiou e já todos nos víamos no sarilho do
inconseguimento de Assunção Esteves ter conseguido ser Presidente da República,
facto que transformaria num detalhe a rasoura que Sá Fernandes prepara aos
buxos da Praça do Império. Mas deixemos essa terrífica visão presidencial no
domínio do hipotético, que já temos agasturas que nos bastem, e voltemos ao
nosso Zé que fazia falta, agora senhor vereador.
Que me recorde, o
Zé enquanto vereador começou por querer criar uma marca de vinho e de azeite da
capital. Nesta versão empreendedora também cogitou comercializar as amêijoas e
as corvinas do Tejo. Estávamos então em Agosto de 2007. Para trás tinha ficado
a fase em que Sá Fernandes era tão só advogado e se dedicava de alma e coração
às providências cautelares que por pouco transformaram o Marquês de Pombal em
campo santo. Aliás por alguns meses o terreno da Rotunda foi mais sagrado que o
solo de Meca. Na santíssima graça do Senhor e também por abençoada intervenção
da fraternidade devota do marquês, o Zé tornou-se vereador e Lisboa pode voltar
a ser perfurada à vontade sem que a tribo do Zé e seus Zezinhos tivesse
frémitos de agonia de cada vez que um martelo pneumático toca o alcatrão da
capital. (Igualmente abençoado com a infinita graça de 18,1 milhões de euros
foi o consórcio responsável pela obra e que colocou a Câmara de Lisboa em
tribunal por causa das obras paradas no túnel do Marquês de Pombal. Mas note-se
que os lisboetas até ficaram agradecidos por só terem pago 18,1 milhões de
euros de indemnização, pois, como pressurosamente os jornalistas escreviam, a
Câmara até conseguira poupar 6,5 milhões no acordo que fez com o dito
consórcio, já que o tribunal fixara o valor da multa em 24,6 milhões de euros.
Não sei se o Zé vereador participou nestas reuniões em que se tratava das
multas provocadas por Zé impugnador ou se andava no Tejo em busca das corvinas.
Mas estou em crer que o consórcio deve ir a Fátima todos os anos rogar para que
Nossa Senhora, que tanto pode, dê muita saúde ao senhor vereador e sobretudo
para que este quando deixar as presentes funções se dedique de novo às saudosas
e benfazejas providências cautelares.)
É certo que o
executivo municipal não acompanhou o Zé nos negócios da agricultura e da pesca.
Assim o nosso Zé virou-se para o ar e em Fevereiro de 2008 anunciou a Parada do
Vento. A mesma começou por ter uma designação apropriadamente em inglês, Wind
Parade 2008, e constava de 25 torres eólicas, com a altura de quatro andares,
que iriam ser instaladas junto da segunda circular, no Jardim Amália Rodrigues,
no Parque Recreativo dos Moinhos de Santana, no Alto da Serafina, no Parque da
Belavista, na Avenida da Índia, nos Olivais, na Piscina Municipal da Boavista,
na Avenida Calouste Gulbenkian, junto à Cordoaria Nacional e na Avenida Padre
Cruz. A Wind Parade surgia apadrinhada pelas European Wind Energy Association,
Sustainable Energy Europe e Associação Portuguesa de Energias Renováveis que
nestas coisas o nosso Zé arranja sempre muitos nomes para o apoiar. O vereador
Sá Fernandes sabia de fonte certa que cada turbina, por ano, pouparia até 2,15
toneladas de CO2 e daria um rendimento de 2184 euros. Em Março, as turbinas já
estavam reduzidas a quinze. Afinal Lisboa tem ventos que chegam e sobram, mas
estes não correm de modo a produzir energia. Pouco depois a Wind Parade ficou
transformada num evento simbólico em que se colocariam apenas algumas turbinas,
para que o cidadão a elas se habituasse. E por fim nem isso.
Após esta
desfeita que lhe foi pregada pelos ventos, o vereador voltou de novo à terra. E
virou-se para os jardins. O Príncipe Real – aí está uma designação toponímica
ultrapassadíssima pois já não existindo em Portugal príncipes menos se entende
que se distingam os príncipes uns dos outros! – foi uma das vítimas das
intervenções do Zé que de fazer falta no executivo estava nesta fase quase a
tornar-se no Zé que o executivo já não podia ver e sobretudo não queria que
fosse visto. O subsolo parecia ser um local apropriado a energia criativa do
vereador. Em boa verdade o pavimento de alcatrão do Jardim do Príncipe Real não
tinha problema algum mas Sá Fernandes entendeu que o mesmo devia ser
substituído por um saibro estabilizado, feito à base de pó de vidro reciclado.
Garantia então o vereador que só quem tivesse “memória curta” não veria as
melhorias no piso. Se por melhoria se entender um irrespirável terreiro de pó
no Verão e um lamaçal no Inverno pode falar-se em melhoria. Dado que ninguém
confirmava a melhoria, antes pelo contrário, a CML optou por pulverizar o
pavimento com uma espécie de cola que evitaria a libertação do pó de vidro no
ar. Resultado: o piso do Jardim do Príncipe Real, que nesta fase parecia um
campo experimental da guerra química, abateu e rachou.
E então Sá
Fernandes desgostoso com o Tejo que não lhe deu amêijoas nem corvinas, triste
com a Tapada da Ajuda que não produzia azeite nem vinho, traído pelos ventos
que não geraram energia, malquisto com o solo da capital que qual praga bíblica
ora se desfazia em pó ora se fendia, virou-se para os buxos da Praça do
Império. Não trata deles. E pronto! Desde que Gomes da Costa nos finais do
século XIX resolveu adequar à sua visão da História os quadros dos vice-reis da
Índia e demais notáveis da nossa História que ornamentavam o Palácio do Governo
na Índia portuguesa que não se via uma coisa assim. O militar, que havia de
chegar a Presidente da República, não satisfeito com as representações pouco
grandiosas desses nossos preclaros antepassados, avançou de pincel para os
quadros e, mais barba menos armadura, compôs-lhes as vetustas figuras com a
mesma resolução que depois o notabilizaria na guerra e nos golpes de Estado. O
resultado foi mais devastador para a memória do Império que o arranque dos
buxos dos brasões que o senhor vereador se propõe agora levar a cabo: ao certo
não se sabe quem é quem naquela sucessão de heróis que nos olha, severa e
atónita com o despautério, em 75 painéis, 42 dos quais recriados a gosto por
aquele que anos mais tarde se tornaria no marechal Gomes da Costa.
Ora não há-de o
senhor vereador ser menos que Gomes da Costa. Ele criou-nos um imbróglio
histórico com as barbas de Afonso de Albuquerque e chegou a Presidente da
República. O senhor vereador que por esse seu percurso também me parece talhado
para mais altos voos quer alterar os brasões. Por mim, como lisboeta que sou,
estou por tudo: se já paguei a obra anunciada num túnel, mais a multa pela
providência cautelar e ainda a nova obra no mesmo túnel, porque não hei-de
agora pagar o desbaste dos buxos mais as plantinhas que os irão substituir?
Desde que não os substitua por aqueles calhaus e três pés de bambu que agora
ornamentam tudo que é jardim e que a mim me destrambelham os nervos, tudo bem.
E já agora, se findo este mandato municipal pensa voltar ao activismo das
providências cautelares avise para o mail que segue abaixo porque nesse caso eu
monto um consórcio e vou dedicar-me às obras públicas com as quais espero que o
senhor vereador então já advogado volte a embirrar. Ou então montamos uma
empresa de jardinagem.
Como o senhor
vereador calculará eu sou uma mulher conservadora, logo nutro uma forte
embirração para com as áreas mais rentáveis da jardinagem, a saber o cultivo de
produtos alternativos ao tabaco. (Valha a verdade também já estamos os dois um
bocado velhos para andarmos a brincar aos hippies, coisa que feita a consabida
excepção aos Rolling Stones só é esteticamente aceitável até aos vinte e poucos
anos.) Mas não digo que não à produção de buxos. Com formatos actualizados e
ultrapassados.
A sério, o futuro
de José Sá Fernandes preocupa-me. Porque, assim como assim, nós vamos ter
sempre de aturar e sustentar os Zés que os messiânicos de serviço colocam no
andor. E convenhamos que na galeria dos candidatos a tal lugar José Sá
Fernandes até nem é dos piores. Nem o que nos causará mais dano. Perigosos são
aqueles que se serviram dele e que agora o largam como coisa descartável que é
e já andam por aí noutras procissões com outros que garantem fazer falta no
andor.
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