terça-feira, 12 de agosto de 2014

E se, por uma vez, houvesse uma investigação a sério? por


OPINIÃO
E se, por uma vez, houvesse uma investigação a sério?
JOSÉ VÍTOR MALHEIROS 12/08/2014 - PÚBLICO
Se não quer viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos e os pobres todas as culpas, exija justiça.

"Erros de gestão", "imprudência", "irregularidades", "risco de crédito", "falta de activos", "imparidades", "activos tóxicos", "incumprimento", "problemas de solvabilidade", "insuficiências de capital", "infidelidade", "gestão danosa", "abuso de informação privilegiada", "abuso de confiança". Há, no simples léxico usado pelo mundo político, pelo mundo financeiro e pelo mundo mediático para descrever o caso BES, narrativas implícitas que se impõem como explicações naturais para o descalabro do império Espírito Santo. Não são precisos verbos para descrever a acção quando se usam estes substantivos. Cada um deles conta a sua história própria, insinuando diferentes níveis de responsabilidade e respeitabilidade para cada um dos intervenientes.

A mais benévola dessas narrativas, hoje em perda, descreve uma organização liderada por gestores ousados e bem relacionados no país e no estrangeiro, que alargaram excessivamente as suas operações financeiras movidos por uma enorme ambição e com o apadrinhamento da liderança política, lançando-se numa trajectória de investimentos de alto risco que acabou mal devido à crise financeira nacional e internacional. É uma história de ambição e de cegueira, de ascensão e queda, uma saga de decadência. Outra narrativa descreve uma família habituada durante gerações a mandar nos destinos do país e que, mercê de uma complexa teia de favores financeiros e políticos, que distribuiu prodigamente, alargou a sua influência até um ponto em que a sua insuficiente competência e as rivalidades internas se combinaram para desagregar o império. É uma história de vaidades e infelicidades, de pobres diabos que por acaso são arrogantes milionários. Outra ainda descreve uma organização criminosa da alta finança, envolvida num esquema piramidal alimentado por uma reputação de poder e de influência que lhe garantiu a atracção de cada vez mais capital, capital esse cuja gestão foi descuidada e cujos investimentos produziram por isso cada vez menos rendimentos e que, também por isso, começou a ser crescentemente utilizado para comprar favores políticos que garantiram cada vez mais entradas de capital que foi descaradamente desviado para os bolsos dos líderes da organização e escondido em off-shores exóticas. É uma história de crime, de tráfico de influências e de chantagens, de ganância sem escrúpulos.

Conforme os narradores e os seus interlocutores, as narrativas cruzam-se, entretecem-se, tornam-se mais policiais e brutais ou mais palacianas e refinadas. A hesitação entre todas elas é uma prova da rede de influências que Ricardo Salgado espalhou pelo país e que ainda está por aí, em estado de vida latente, a ver para que lado caem as fichas. Ricardo Salgado poderá já não ser o "partido" com mais deputados na Assembleia da República, mas as notícias da sua morte podem estar a ser exageradas. Salgado negou ter 30 milhões de euros em Singapura, mas terá 300 milhões no Brasil? Ou mais? Até onde se estende ainda o império Espírito Santo? O caso BES vai ser o "escândalo BES" ou apenas a "crise BES"? Ricardo Salgado é um escroque ou um tolo? Cometeu erros ou cometeu crimes? O que o protegeu durante tanto tempo? Teve sorte ou teve cúmplices?

Apesar de se acumularem os sinais de "irregularidades" no BES (algumas denunciadas pela CMVM ao Ministério Público, ainda antes das suspeitas de insider trading dos últimos dias) a verdade é que a narrativa se arrisca a amornar, com a CMVM e o Banco de Portugal e o Governo a lavarem as suas mãos e o contribuinte a pagar os luxos de que Ricardo Salgado fez beneficiar tantos amigos.

A prudência dos média é natural. Não se pode acusar alguém sem provas e não se pode dizer que alguém é um ladrão antes de a sentença transitar em julgado, o que pode não acontecer nunca, mesmo que o ladrão confesse o roubo e todos o tenhamos testemunhado. Mas é fundamental, em nome da sanidade da sociedade, da sanidade da justiça e da sanidade da política que haja uma investigação consolidada de todo o processo de falência do GES e do BES e não apenas investigações esparsas desta ou daquela "irregularidade", que irão concluir que um burocrata se esqueceu de carimbar um impresso.

O que o Governo tem de anunciar é o pedido dessa grande investigação ao Ministério Público, com a máxima urgência e garantindo-lhe todos os meios. E, se não o fizer, apenas poderemos concluir que receia ver-se envolvido ele próprio (leia-se PSD e CDS) nos negócios sob escrutínio. Recordam-se de Carlos Costa a garantir há um mês que nem o BES nem o GES tinham um problema de solvabilidade? E de Cavaco Silva? E de Passos Coelho? Que as responsabilidades políticas não sejam assumidas pelo Governo é algo a que estamos habituados, mas temos de exigir a responsabilização criminal de quem rouba de forma tão colossal e tão descarada. E a verdade é que falta dinheiro no BES e que nos vão pedir para tapar o buraco. Não chegará isso para exigir a investigação?

O que não podemos aceitar, em nome da decência, são processos tão vergonhosos como o do BCP ou o do BPN. Não podemos aceitar que, de novo, um processo BES se salde por uma multa ridícula, pela inibição de gerir um banco durante os próximos anos, pela prescrição do crime ou pela condenação de um bode expiatório isolado.

As "irregularidades" cometidas pelo GES e pelo BES foram cometidas ao longo de muitos anos, beneficiando um pequeno grupo de ricos parasitas e de caciques políticos, envolvendo muitas pessoas e enganando muitas mais. Existem certamente inúmeros documentos e muitas testemunhas dessas "irregularidades", muitas das quais preferirão denunciar os crimes de que tenham conhecimento em troca de uma consciência aliviada e de uma atenuação da condenação. Tem de ser possível encontrar as provas necessárias e levar uma investigação séria até ao fim.

À imprensa cabe, entretanto, ir juntando as pedrinhas dos factos – como a discrepância sobre o momento em que o Banco de Portugal decidiu partir o BES em dois e o momento em que comunicou essa decisão à CMVM, como as razões da autorização do aumento de capital do BES pelo BdP e pela CMVM, como as razões dos perdões dos esquecimentos fiscais de Salgado, como a venda das acções da Rioforte aos balcões do BES, etc., etc. – de forma a tornar incontornável a exigência de uma verdadeira averiguação.


E a todos os cidadãos que recusam viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos, incluindo o direito a roubar o nosso dinheiro e a escapar impunes, cabe-nos exigir justiça.

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