Somos um país péssimo onde todos
são, afinal, excelentes
José Manuel
Fernandes / 13-8-2014 / OBSERVADOR
Não queremos
submeter-nos a nenhuma avaliação, mas condenamos tudo e todos sem sequer
ouvirmos os seus argumentos. Assim criamos um igualitarismo destrutivo que
compromete o debate público plural.
Portugal é um
país paradoxal. Sempre que falamos dos responsáveis, dos que tomam decisões,
eles são invariavelmente incompetentes, obtusos e outras coisas piores. Sempre
que falamos de nós próprios, somos invariavelmente esforçados, prescientes e
mal compreendidos pelos nossos chefes.
Não avaliamos
decisões, não pesamos prós e contras, não discutimos alternativas: preferimos
fazer processos de intenção, quando não alinhamos directamente em teorias da
conspiração. Da mesma forma detestamos ser avaliados – achamos sempre que isso
é uma provocação, senão uma forma de nos prejudicar.
Alguns episódios
recentes revelaram estas tendências em todo o seu esplendor – e também em todo
o seu supremo ridículo.
Take 1: Avaliação
Basta pensar no
que se passou com a avaliação dos professores. Tudo se disse. Que não era
necessária porque os professores tinham sido avaliados nas universidades. Que
só servia para justificar despedimentos. Que o seu conteúdo era tão básico que
representava uma humilhação. Que era apenas uma obsessão do ministro. Depois,
quando vieram os resultados, e se provou que, afinal, a avaliação tinha sido
cruel para muitos candidatos a professores, desvalorizou-se a importância dos
erros e, quando isso se mostrou insuficiente, passou-se a atacar a
credibilidade do avaliador.
O que aconteceu é
fácil de compreender: nenhum professor, sobretudo nenhum sindicato dos
professores, é capaz de assumir que há muitos, demasiados, professores que não
são bons, que são medianos, medíocres, que há até maus professores. Aquilo que
qualquer aluno sabe, que qualquer pai sabe, que qualquer um de nós sabe porque
já teve professores – isto é, que há muitos professores que deixam muito a
desejar, para ser piedoso neste meu juízo – é uma realidade que os próprios
nunca assumem. Acham sempre que é um ataque a toda a classe.
Basta ver o que o
que escreveu Alexandre Homem Cristo e o tipo de reacções que encheu as caixas
de comentários do Observador. Todos sabemos intimamente que a ferida existe,
mas cai o Carmo e a Trindade quando alguém se atreve a colocar o dedo na
ferida.
Take 2: Mais
avaliação
Um outro exemplo
de desproporção foram as reacções à avaliação dos centros e unidades de
investigação. Não vou aqui discutir o tema, que é complexo e nem sequer está
fechado, pois decorre ainda o prazo para os recursos. Vou apenas chamar a
atenção para a desproporção entre o que se disse e o que realmente aconteceu.
Primeiro os dados
objectivos. Metade dos centros de investigação terminaram a primeira fase com
nota igual ou superior a 15 (num máximo de 20). Nesses centros trabalham dois
terços do total dos investigadores. Dito de outra forma: metade dos centros e
dois terços dos investigadores tiveram, para já, uma classificação superior a
“bom”, de acordo com os critérios estabelecidos neste processo. Isto num país
que, mesmo tendo progredido nos últimos anos, não está na vanguarda da produção
mundial de ciência. Pelo contrário. De facto, existiam em 2012 em Portugal 9,2
investigadores por cada 1000 activos, o que nos colocava em quinto lugar na
Europa; ao mesmo tempo, de acordo com o indicador compósito do Eurostat para a
excelência em ciência e tecnologia, Portugal estava apenas em 19º lugar. Ou
seja, muitos investigadores, pouca produtividade. Qualidade insuficiente? Mas
como se, de todos esses investigadores, dois terços estão em centros avaliados
como “muito bons”.
Olhando para
estes dados talvez fosse de ficar chocado com a liberalidade da avaliação – mas
não: ficou-se chocado por metade dos centros não terem atingido o patamar de
“muito bom”, pois isso iria “matá-los”. Melhor: estava-se a destruir toda a
investigação científica em Portugal.
Num país como o
nosso, a preocupação devia ser concentrar recursos nos centros que melhor
trabalham. Mas num país que é o nosso a reivindicação é continuar a dispersar
os recursos por centros bons e por centros medianos, umas migalhinhas por
todos.
Não duvido que no
processo de avaliação tenham existido erros. Há sempre erros. Tem de haver
sempre possibilidade de os corrigir. Agora isso é muito diferente de querer
aproveitar eventuais erros para concluir que o objectivo é acabar com a ciência
em Portugal e que, por isso, é preciso acabar com a avaliação.
À boca pequena
quem quer que circule pelos corredores das universidades e centros de
investigação sabe o que neles se comenta sobre a qualidade, ou falta dela, do
que se produz em muita e boa parte. Mas é só à boca pequena e quando se fala
dos outros. Primeiro, em público, todos ou quase todos se calam. Depois, em
momentos de avaliação, são ferozes a defender o seu nicho e, se necessário,
igualitários na recusa de que alguém, com outros critérios, mais independentes,
olhe para o que estão a fazer e produzir. E diga que não são tão bons como
julgam que são.
Take 3:
Presciência
Ao mesmo tempo
que se suporta mal a avaliação e a crítica, está-se sempre pronto a condenar
antes de julgar, muito menos de avaliar. É por isso que não deixo de estar
surpreendido com a forma como se tem falado da condução pelo Banco de Portugal
– e em especial pelo seu governador, Carlos Costa – da crise do BES.
Há uma coisa que
compreendo: uma parte dos ataques tem como única motivação o banco e o seu
governador serem acusados de serem demasiado próximos das políticas do governo.
Há blogues, como o Abrupto, onde isso se escreve preto no branco, o que tem a
vantagem de tornar as coisas claras, transparentes.
Bem diferentes
são as sentenças de todos quantos nunca deram o mais pequeno sinal de estarem
inquietos com a situação do GES e do BES – pelo contrário, bem pelo contrário –
e agora exigem que tudo tivesse sido descoberto há anos.
Mais uma vez
trata-se de uma forma de debater que obscurece os argumentos. Senão vejamos: há
muita coisa em todo este processo que deverá ser esclarecida, e espero que isso
aconteça, mas se quisermos avaliar a decisão de criação de banco bom e um banco
mau temos de avaliá-la enquanto tal, pesando os seus prós e contras por
comparação com as alternativas (deixar o banco falir como sucedeu com o Lehman
Brothers, nacionalizá-lo como se fez com o BPN, ou outra que alguém proponha). Em
vez disso, parte-se do princípio que só razões esconsas poderiam ter impedido o
banco e o governador de ver o que todos estavam a ver – esses todos que,
curiosamente, estavam calados.
Tenho dúvidas
sobre a forma como o Banco de Portugal actuou, mas isso não me impede de, em
primeiro lugar, apreciar a solução pelo seu valor e, depois, reconhecer que
houve uma enorme evolução, na boa direcção, do nível de qualidade da supervisão
bancária. E que esta vai continuar a ser cada vez mais exigente.
Estas formas de
olhar para a realidade reduzem o nível do debate público à subtileza das
sentenças próprias de uma viagem de táxi. Muitas certezas, nenhuma
fundamentação, ainda menos reflexão. E traduzem-se numa total incapacidade para
mudar ou evoluir. Primeiro, porque nós somos bons e isso não se discute. Depois,
porque os outros, sejam quais forem os outros, são indiferentemente maus, e
isso não se contesta.
Talvez todos se
se sintam melhor assim com os seus egos. Eu não.
PROFESSORES
Polémica: Investigador rico,
professor pobre
Paulo Guinote
13/8/2014, 18:45
/ OBSERVADOR
O que aconteceu é
que Alexandre Homem Cristo decidiu achincalhar directamente todos os professores
com base numa amostra que não permite essa generalização.
Há alguns dias,
em texto de opinião publicado no vosso espaço com o título “Temos Maus
Professores”, Alexandre Homem Cristo (AHC), que habitualmente se deixa
apresentar como investigador em Políticas Educativas, desenvolveu uma
teorização a partir dos resultados da prova de avaliação de capacidade e
competências aplicada aos candidatos a professores com menos de cinco anos de
exercício da docência.
Vou deixar de
parte a polémica em torno da prova, com os habituais aproveitamentos políticos
e acrimónias pessoais. Vou mesmo deixar de parte muitas outras questões
relevantes sobre a lógica, méritos e demais circunstâncias da dita prova.
Vou concentrar-me
apenas na dita teorização estabelecida por AHC no referido texto a partir da
constatação da existência de um nível considerado elevado de erros ortográficos
nas provas classificadas.
Segundo AHC esse
nível é inaceitável em quem tem como missão ensinar os alunos com qualidade,
algo que não vou contestar pois não tenho referenciais nacionais ou
internacionais a esse respeito. Dou esse argumento de barato ao
articulista-investigador que, por certo, conhecerá tais referenciais em
profundidade.
Segundo AHC esse
nível de erros explicar-se-á pela facilidade de acesso aos cursos de formação
de professores, que terão médias de ingresso baixas, sendo muito frequentados
de acordo com estatísticas do ano de 2010-11 por alunos que recorrem a bolsas
da acção social escolar. Seguindo uma lógica imparável e que ao
articulista-investigador terá parecido imaculada, considera-se que “quem hoje
vai para professor não são os bons alunos. Por outro lado, quem hoje frequenta
os cursos da área da educação são, em média, os que têm níveis socioeconómicos
mais baixos e que, por isso, obtêm mais bolsas de acção social”.
Confessemos que
esta forma de desenvolver um preconceito com recurso a uma lógica da ordem dos
tubérculos é notável e culmina na conclusão enunciada desde o título “Temos
maus professores”.
Ou seja, temos
maus professores porque aqueles que fizeram a prova destinada ao acesso à
docência deram erros ortográficos.
Ou seja, lança-se
a lama para cima de uma classe profissional, com base no desempenho de uma
amostra correspondente a um grupo de candidatos a essa profissão que, na sua
esmagadora maioria nem sequer está a dar aulas, sendo que essa amostra também é
em termos estatísticos muito pouco relevante em relação aos que dão
efectivamente aulas e irrelevante em relação aos professores integrados na
carreira.
AHC até poderia,
em parceria com o IAVE, elaborar uma prova que examinasse os professores em
exercício e encontrasse milhentos erros em 99,9% dos professores e nesse caso
poderia fazer um texto com aquele título.
Mas não foi isso
que aconteceu.
O que aconteceu é
que AHC decidiu achincalhar directamente todos os professores – e não vale a
pena vir agora dizer que alguém lhe mudou o título à crónica – com base numa
amostra que não permite essa generalização.
A realidade é
esta: os factos que AHC alinhava não lhe permitem a conclusão anunciada em
parangonas e com a chancela do próprio director do Observador na sua página
pessoal de uma conhecida rede social como sendo “o dedo na ferida”. Qual
ferida?
Para além disso,
AHC decidiu dar largas ao preconceito sócio-profissional que afecta muitos
licenciados, mestres e doutores em “Ciências” que se consideram próprias de
estatutos socio-económicos mais altos e que frequentaram instituições que eles
consideram imunes a uma espécie de amálgama indistinta de filhos de
proletários, ao que parece hereditariamente determinados a serem maus alunos e,
por consequência, só capazes de, como regra, seguirem cursos superiores de
segunda categoria e a tornarem-se maus professores.
Isto seria
admissível em qualquer publicista de estirpe duvidosa, em qualquer indivíduo de
escasso conhecimento académico, triste inteligência e com valores cívicos em
razoável défice.
Num “investigador
em Políticas Educativas”, mesmo sem qualquer formação específica na área, é
sintomático da enorme necessidade em aprofundar a sua formação.
Professor do
Ensino Básico, doutorado em História da Educação
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