“Rolezinhos” em São
Paulo
“Meet” no Vasco
da Gama em Lisboa
OPINIÃO
Performances de irreverência
ELÍSIO ESTANQUE
26/08/2014 - PÚBLICO
Ao sociólogo não
compete justificar nem condenar fenómenos que “perturbem” a ordem estabelecida,
mas sim tentar interpretar os sinais ou problemas emergentes na vida social,
associados a novas linhas de mudança socioeconómica ou sociocultural, como é o
caso destes “meets” que agora começaram a surgir em Portugal. Há várias linhas
explicativas que, a meu ver, contribuem para compreendermos este tipo de
acontecimentos, o que pressupõe evitar o juízo moral quanto às intenções dos
seus eventuais promotores.
A primeira remete
para o quadro de uma sociedade que caminhou rapidamente para a concentração
urbana, construiu e ampliou grandes metrópoles que, por sua vez, criaram
periferias degradadas para onde os segmentos mais carenciados da sociedade
(sobretudo minorias étnicas e imigrantes) são empurrados em função da
permanente revalorização do território e na ausência de um planeamento e
políticas de inclusão mais eficazes. As novas comunidades em estruturação nas
periferias sofrem as consequências dessa marginalização, em geral acompanhada
de preconceitos por parte da sociedade “respeitável”, ao mesmo tempo que se
sentem excluídos do usufruto de infraestruturas e do acesso a padrões de vida
com a marca da “classe média”, num contexto de massificação dos consumos e de
crescente individualização das relações sociais.
O consumismo e a
generalização dos novos equipamentos eletrónicos, em especial junto da
juventude, atribuíram às redes sociais do “ciberespaço” um papel cada vez mais
central na reorganização das relações dos jovens entre si, dando sentido ao
conceito de comunidade virtual. Uma “comunidade” que, de algum modo vem
compensar a tendência ao “deslaçamento” da sociedade. Mas como ela não consegue
preencher totalmente esse vazio, tende a tornar-se num meio de reinvenção da comunidade
ao transferir-se da esfera privada para a ocupação das ruas, praças e outros
espaços públicos como festivais de música, concertos ou centros comerciais. É a
comunidade virtual tornada real.
Este fenómeno
parece inserir-se na mesma linha dos “rolezinhos” que começaram a surgir no ano
passado na cidade de São Paulo, onde centenas de jovens dos bairros periféricos
desta imensa metrópole (e de outras cidades brasileiras) se organizam para
“passeios” coletivos nos Shoppings mais modernos e luxuosos das capitais. No
caso do Brasil, um país onde as desigualdades de classe são especialmente
chocantes e onde vigora de facto um “racismo de classe” (isto é, o preconceito
não se dirige apenas aos negros e mestiços, mas aos pobres de um modo geral),
essas ações simbolizam muito claramente uma resposta dos segmentos excluídos
que, invocando o princípio democrático do direito ao uso livre do “espaço
público”, exibem a sua condição social como arma de arremesso atirada contra a
classe média instalada, com isso tentando denunciar a hipocrisia dos valores
“burgueses” e a injustiça de uma riqueza ostentadora perante a miséria dos
pobres.
Dir-se-á que
estes “encontros” – independentemente do seu grau de espontaneidade ou
organização – exprimem uma espécie de cultura hip hop das periferias, onde
transparece uma mistura de “performance” com “micro-rebelião”, e que responde à
busca de uma identidade coletiva ameaçada, cuja necessidade de transgressão é
ao mesmo tempo uma forma de luta geracional e de classe (no plano identitário).
É a reação de quem vive sob o constante assédio da sociedade mediática e do
espetáculo, ao mesmo tempo que se sente repelido, no quotidiano cinzento do
anonimato do bairro. A ausência de meios para satisfazer os massivos apelos da
moda consumista estimula a vontade de provocar a classe média ou, pelo menos,
os espaços onde – na realidade ou no imaginário destes grupos – floresce a
sociedade do consumo, o simulacro e do exibicionismo narcisista a que muitos
destes jovens aspiram usufruir.
Sociólogo,
professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do
Centro de Estudos Sociais
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