Estado Islâmico: uma vocação
totalitária
Os jihadistas do EI fizeram da religião uma ideologia da morte
Jorge Almeida
Fernandes / PÚBLICO / 24-8-2014
1. O Estado
Islâmico (EI, ex-ISIS) é uma ameaça de tipo novo. Não é “mais um” grupo
terrorista ou de fanáticos apocalípticos. Tem outra ambição. Encara-se como um
verdadeiro Estado em construção — o “califado” — e não como uma organização de
militantes. Controla, na Síria e no Iraque, um território da dimensão da
Grã-Bretanha. Utiliza métodos de tal modo violentos que suscitou a repulsa da
Al-Qaeda. Está a mudar o mapa do Médio Oriente e a dinâmica das “guerras por
procuração” que lá se travam. Mais relevante do que o fanatismo é a sua vocação
totalitária.
AFP
Os analistas
atribuíram inicialmente o seu sucesso a três factores: uma extraordinária
mobilidade com elevado poder de fogo, a brutalidade dos ataques e uma refinada
propaganda de actos de barbárie para desmoralizar quem lhe resiste. Chuck
Hagel, secretário da Defesa americano, declarou depois do vídeo da decapitação
do jornalista James Foley: “É um grupo mais bem organizado do que qualquer
outro de que tenhamos conhecimento. Eles não são um simples grupo terrorista.
Aliam ideologia e sofisticação militar. Dispõem de fundos financeiros
incríveis.”
2. Hoje, os
analistas procuram um modelo explicativo geral para lá da descrição ou da
denúncia do terror. Constatam que o novo combate não se pode equacionar na
clássica figura de “guerra assimétrica” entre Estados e entidades não estatais.
A analogia entre o território ocupado pelo EI e as “zonas libertadas” das
antigas guerrilhas é ilusória.
Após a invasão
americana do Iraque e o fiasco da política de “construção de nações” ( nation
building) da era Bush, o Médio Oriente tornou-se palco de uma luta pela
hegemonia entre sunitas e xiitas — ou, mais rigorosamente, entre sauditas e
iranianos. O EI insere-se neste campo, mas excedendo o anterior quadro,
declarando “apóstatas” os sunitas que se lhe não submetem. Ameaça também a
Arábia Saudita, declarando ilegítimo o regime da Casa de Saud.
Há um factor
importante. Escreve o diplomata americano Christopher Hill: “No Médio Oriente,
os Estados estão a tornar-se cada vez mais fracos, enquanto as autoridades
tradicionais, sejam velhos monarcas ou presidentes seculares, parecem incapazes
de tomar conta dos seus agitados povos. Enquanto a autoridade estatal declina,
as lealdades tribais ou sectárias [religiosas] fortalecem-se.” O que é hoje um
iraquiano, um sírio, um libanês? É alguém que se define primeiro como xiita,
sunita, alauita ou cristão. As “primaveras árabes” foram um revelador da
falência da generalidade dos Estados e são agora submergidas pela vaga
salafista.
Abu Bakr
al-Baghdadi, líder do EI, propõe um modelo alternativo de Estado — o
“califado”. A ideologia que o sustenta é a utopia do regresso ao tempo do
Profeta e a reunificação dos sunitas em torno da sua bandeira negra. Contra o
Ocidente e — antes disso — contra os “hereges” xiitas ou os “infiéis” cristãos.
É um projecto político de substituição dos Estados nascidos do fim do Império
Otomano e da descolonização, muitos deles artificiais e com fronteiras
desenhadas pelas potências europeias.
Montou nos
territórios conquistados estruturas paraestatais e impôs uma versão extrema da
sharia. Os habitantes de Mossul foram despojados da documentação pessoal,
recebendo um B.I. do “califado”. A ideia de “Estado islâmico” visa dar um novo
mito mobilizador às massas sunitas. Preenche um vazio. Longe vai o tempo dos
reformadores árabes do século XIX e dos nacionalistas seculares do século XX.
O rigorismo
religioso do EI não o impede de fazer alianças tácticas, na Síria ou no Iraque.
Aqui, aliou-se a tribos revoltadas contra o Governo xiita de Bagdad e a antigos
generais de Saddam Hussein, que nunca passaram por piedosos. São alianças
precárias mas eficazes.
O EI tem uma
vantagem sobre os movimentos congéneres: já não depende do financiamento de
Estados estrangeiros, como a Arábia Saudita ou o Qatar. “Nacionaliza” os fundos
dos bancos nas cidades que conquista. Cobra resgates. Recebe donativos de milionários
do Golfo. Organiza colectas de fundos. Toma centrais eléctricas a Damasco e
depois vende a electricidade ao Governo sírio. Exporta o petróleo das jazidas
que ocupou. Assim, paga bem aos jovens desempregados que recruta e fanatiza. E
dá-lhes uma bandeira.
O EI recorre
exaustivamente à Internet e às redes sociais. Para lá dos sofisticados vídeos
com massacres e decapitações reais, fabrica cenas fictícias de horror,
difundidas nos países árabes. “Para recrutar seguidores e aterrorizar os
inimigos até à rendição”, escreve o jornalista árabe Ali Hashem. E para
provocar “efeitos de imitação”. Comparados com eles, os taliban do Afeganistão
eram “homens das cavernas”, observou um militar americano.
3. É largamente
conhecida a perseguição de cristãos e yazidis. Em Mossul deram-lhes uma
alternativa: a conversão ou a fuga. O EI alardeou o massacre de soldados xiitas
em Tikrit — alegadamente 1700. Mostrou execuções em massa.
Se os xiitas são
“hereges”, os sunitas que lhe resistem tornamse “apóstatas” e, por isso, também
destinados à morte. Na Síria, massacraram recentemente 700 membros de uma tribo
sunita. No Iraque, muitos sunitas estão a refugiar-se em cidades xiitas,
informa o diário digital Al-Monitor.
O EI não se
limita a matar ou a impor o seu credo. O “califado” está também a destruir o
património da antiga Mesopotâmia, berço de civilizações. Dinamitou inclusive a
histórica mesquita sunita que se erguia sobre o “túmulo de Jonas” — profeta
para judeus, cristãos e muçulmanos. “Reza-se a Deus e não a um homem, ainda que
profeta.”
Em suma: trata-se
de “erradicar uma civilização” escreve o
Daily Star, de
Beirute. O Médio Oriente é um mosaico de povos, culturas e religiões. O EI quer
fazer tábua rasa desta civilização. “Se deixarmos os fanáticos continuar a
atacar a diversidade do mundo árabe, a cultura, o património e a identidade,
eles fá-lo-ão impunemente, o que é ainda pior do que assassinar pessoas.
Aniquilarão séculos de civilização.”
4. O
totalitarismo, anotou Hannah Arendt, não é tanto um regime político como uma
“dinâmica autodestrutiva”, que visa eliminar tudo o que lhe resiste, anular a
autonomia do indivíduo e dissolver as estruturas sociais. Não me refiro à tese
do “fascismo verde”, que foi moda há uma ou duas décadas. Não se deve confundir
o EI com o despotismo saudita ou com a teocracia iraniana. Abu Bakr al-Baghdadi
vai muito além do fundamentalismo.
Elaborou o
projecto político do “califado” e está a conquistar um território cuja
fronteira se ignora se acaba no Líbano ou no Norte de África. Elaborou a utopia
ideológica de uma comunidade de crentes emigrando para a era do Profeta. Tem
uma vocação expansionista e recruta jovens na própria Europa. Transformou a
religião numa ideologia da morte. “Hereges”, “apóstatas” e “infiéis” tornam-se
seres sub-humanos passíveis de extermínio.
É esta dinâmica
que o aproxima dos totalitarismos. Falar apenas em barbárie é uma ilusão.
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