quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Se os media não falassem nisso, o meet só dizia respeito aos participantes.Foi um meet de jornalistas.




ENTREVISTA
Se os media não falassem nisso, o meet só dizia respeito aos participantes
NATÁLIA FARIA 27/08/2014 - 23:01
Luís Fernandes, psicólogo e investigador especializado em comportamentos desviantes, considera que os meets mais não são do que uma forma de os adolescentes procurarem visibilidade perante uma sociedade “em que não se vêem inscritos”. São apenas jovens a tentar projectar-se no mundo, desdramatiza. Quanto ao resto, é efeito mediático

Depois do meet do centro comercial Vasco da Gama que, na semana passada, juntou cerca de 600 jovens e que terminou com quatro detenções por desacatos , o novo meet anunciado para esta quarta-feira no centro comercial Colombo que, segundo vários órgãos de comunicação social teria mobilizado um forte contingente policial, de prevenção, não chegou a acontecer. Mas, afinal, o que são estes meets?

“São a resposta à necessidade que os adolescentes têm “de se tornarem visíveis aos olhos da sociedade”, desdramatiza o psicólogo Luís Fernandes, para quem o potencial de ameaça residiu apenas na forma como foram vistos. Para este investigador especializado na área dos comportamentos desviantes não há nada de racista na origem destes encontros, constituídos maioritariamente por jovens afro-descendentes. “O racismo constrói-se depois nas mensagens que vão aparecendo sobre o assunto”, sublinha, alertando para o risco de a atenção policial e mediática poderem ainda, essas sim, exacerbar os ânimos e transformar meros convívios em manifestações de protesto.

Estes encontros entre jovens são o quê? Uma mera exibição inócua de intenção convivial?
Estamos a falar de teenagers e de pessoas maioritariamente menores de idade. O facto de as pessoas na fase da adolescência procurarem motivos para se encontrar é absolutamente normal, numa altura em que estão a descobrir as suas capacidades de socialização e em que estão a descobrir também como se ligam ao mundo. A diferença entre a criança e o adolescente é que o adolescente começa a projectar-se no mundo e a tentar perceber que papel tem nele. Portanto, é uma idade de ensaios. E estes ensaios fazem-se através da visibilização, quer dizer, os adolescentes têm necessidade de se tornar visíveis aos olhos da sociedade. Pode ser através do desporto (ainda agora no Futebol Clube do Porto estão a glorificar um miúdo de 17 anos [Ruben Neves]…) ou da procura de excelência a nível das artes ou de outra coisa qualquer. Quem não tem esses instrumentos, arranja outros, nem que sejam encontros em espaços públicos de forte visibilidade. E, portanto, não é nada de anormal, é a procura de visibilidade aos olhos da sociedade.

Que dizer desta esta escolha dos centros comerciais, que são de alguma forma espaços apropriados pela classe média…
Porquê o Vasco da Gama? Porquê o Colombo? Porque são espaços de consumo e de grande visibilidade, onde vai muita gente e que são, de certo modo, símbolos. Mas eu até diria que os centros comerciais são transclassistas. Há gente que vai lá para fazer compras, porque eles teoricamente são comerciais, mas, muito mais do que isso, eles hoje são lugares onde as pessoas vão para verem e para serem vistos. Diria que os centros comerciais são os novos lugares de cruzamento das pessoas.

Seria abusivo presumir-se que haveria na escolha dos lugares alguma intenção de entrar e “contaminar” os tais espaços da classe média?
Eu acho que há uma intenção de os adolescentes se visibilizarem aos olhos das classes que eles suspeitam ou que imaginam que estão nestes espaços que são as classes médias. Acho que é só isso. É uma procura de serem vistos. Poderiam visibilizar-se de outras maneiras, mas provavelmente não teriam sucesso nisso. O problema numa sociedade que glorifica o aparecer e a imagem pública é o ‘Como posso fazer-me presente quando a competição é tão brutal? Será que posso ser bom na escola? Será que posso ser bom se entrar num conservatório ou se for para um clube desportivo?’ Se eu não consigo estes espaços de afirmação, procuro outros e imediatamente surge a rua – e neste caso a rua é um centro comercial, mas é rua, é espaço público.

A questão do racismo foi desde cedo associada ao noticiário sobre os meets. Efectivamente, muitos dos miúdos que se mobilizam para estes meets no Facebook são de cor negra. Mas a palavra racismo só agora começa a ser nomeada nos posts dos miúdos. A que ponto a questão da raça poderá estar aqui presente?
O racismo é uma construção interactiva, isto é, o racismo existe quando falamos dele e quando nos comportamos em função dele. Um meet que é convocado por pessoas não brancas - não sei se todas negras, mas não brancas - e isto tem um potencial de ser lido, por exemplo pelos brancos, como uma ameaça. Se for lido como uma ameaça, vão aparecer mensagens das redes a falar dessa ameaça. Evidentemente, a polícia está atenta, e é obrigação dela estar, e é natural que monte um dispositivo preventivo, do mesmo modo que faz quando acompanha claques de futebol. Mas depois as pessoas vão dizer ‘Ah, a polícia já está lá e é para dar porrada porque há racismo e tal’. Mas tudo isto depende muito de como nós produzimos mensagens em torno de qualquer coisa que, em si mesma, não tem nada de rácico. O racismo, como disse, é uma construção simbólica no jogo de dominâncias entre raças e traz sempre associados a si agressores e vítimas. Não é uma qualidade inerente à raça branca ou à raça negra. Evidentemente que os que estão em minoria, que neste caso são os negros e os afro-descendentes, sentem-se vítimas. E estas, por sua vez, quando se sentem realmente vítimas, são potenciais agressores. E depois a etnia dominante, que neste caso são os brancos, vai dizer ‘Pois, mas eles agridem, estão a ver? E portanto, nós vamos mesmo ter que os conter e que os delimitar e que os policiar’. A construção do racismo é isto: atribuições mútuas de desconfiança e de agressividade.

Há o risco de a actuação da polícia e dos media alimentarem estas tensões latentes?
Há sempre. Até porque estamos a falar de adolescentes - e aqui não importa se são afro-descendentes ou não - e os adolescentes gostam do risco. Ora, uma das formas de visibilização é assumir o risco. Seja no desporto radical seja em proezas imensas que parecem gratuitas pela forma como o indivíduo se expõe sofrendo lesões físicas e tudo. O risco é muito atractivo. Claro que isto para a polícia é sempre um pau de dois bicos, porque simultaneamente a polícia tem de estar atenta.

Qual seria a forma correcta de actuar?
Seria a polícia estar presente do modo o mais discreto possível. Isso a polícia sabe muito bem.

Em termos de mediatização, que efeito poderá ter o facto de um jornal fazer manchete com a notícia de que vai acontecer um meet e de que a polícia está preparada? Como é que isto pode ser tratado?
Os media têm um grande papel na amplificação destes fenómenos. Aliás, se estou a par do anúncio do meet de hoje [ontem] é porque ouvi a TSF que por sua vez citava o Correio da Manhã. Se os media não falassem nisso, o meet era qualquer coisa que só dizia respeito aos participantes. Podia acontecer que quem passasse no centro comercial a essa hora achasse estranho e procurasse até afastar-se, mas não passaria de uma concentração. Eu, ainda no domingo de manhã, ia a passar na ribeira de Gaia e deparei-me com uma concentração de motards. Eram muitos, estavam ali, a conviver. Reparei neles e mais nada.

Conseguir-se-á perceber se, à semelhança do famoso arrastão de Carcavelos, o fenómeno dos meets estará daqui a um mês desaparecido, desconstruído, ou se, pelo contrário, os meets poderão degenerar em manifestação de descontentamento de minorias?
Há uma coisa que podemos dizer com alguma segurança: quanto mais focagem mediática dermos ao meet, mais potencial de repetição tem. Portanto, é natural que durante algum tempo haja mais meets. Se vão acontecer coisas nos meets ou não, depende da forma como as redes sociais trocarem mensagens sobre isto e se isso irá ou não exacerbar ânimos. E as redes sociais são as pessoas que escrevem todos os dias na Internet e que deveriam ser discretos, mas nem toda a gente está interessada em ser discreta, há gente que, se calhar, nem sai de casa, mas que está a escrever nas redes e que depois gosta de ficar de fora a ver o pessoal à batatada. Há um potencial fílmico nisto. E a rapidez com que isto salta para o Youtube é a prova do que estou a dizer. A omnipresença da imagem faz com que todos os dias a realidade nos forneça uma série de filmes. Muita gente está viciada nisto.

E quanto ao barulho todo em torno de um meet que, afinal, não existiu?

Não há determinismos automáticos. Os miúdos são agentes activos e, perante as notícias que foram lendo, reorientaram o seu comportamento. Neste caso, não aparecendo. Perante o discurso adulto veiculado pelos media, o que os miúdos fizeram foi reposicionar-se, iniciando um jogo do gato e do rato, do género ‘Vocês vão andar atrás de nós e nós vamos dar-vos baile’. Mas, no fundo, é a continuação do jogo, da procura de continuar a aparecer e de se inscreverem no espaço público, até porque há novos meets convocados. Mas o pano de fundo é o mesmo. Nós temos uma crise instalada - e não estou a falar da crise que começou em 2008, estou a falar da crise como fenómeno presente nas sociedades ocidentais há várias décadas. A crise do trabalho, por exemplo, que faz com que o desemprego juvenil já seja uma realidade há muitos anos; a crise da família, com as famílias monoparentais, disruptivas, até na forma como se fazem e desfazem; a crise na educação, com a escola incapaz de produzir a integração dos mais pobres, de algumas etnias, com uma escola que fala muito em multiculturalismo mas que depois é extremamente convencional e que funciona sempre um bocado no ideal das classes médias. Todo este quadro de crise faz com que uma grande quantidade dos nossos adolescentes e dos nossos jovens não tenha espaço de inscrição social. Isto é, de se sentirem respeitados, úteis e inscritos no funcionamento da sociedade. Portanto, temos hoje uma grande quantidade de jovens naquilo a que alguns especialistas chamam os espaços de não inscrição. E eles têm que reinventar a forma de se inscreverem na sociedade. Os meets não são mais do que uma forma de reinvenção da inscrição social. Se ela depois pode ter um potencial positivo ou negativo, os factos o dirão. Mas uma coisa é certa: quando a sociedade formal (que é responsável pela escola, pelo emprego, pela família, pelo associativismo…) não consegue respostas para uma série muito grande de adolescentes e de jovens, eles resolvem o problema sozinhos. Vão arranjar maneira de produzir auto-inscrições. É isso que se está a passar com os meets, não é mais nada.

Foi um meet de jornalistas
Maria João Lopes / 28-8-2014/ PÚBLICO

Inês Silva, 25 anos, está calmamente a comer um gelado com amigas à porta do centro comercial Colombo, em Lisboa. Trabalha ali, é advogada estagiária e está a fazer uma pausa. Ouviu falar, através da comunicação social, do meet que estaria marcado para ontem naquele local. Mas o meet não aconteceu. A jovem olha à volta, está tudo tranquilo: pessoas a entrar e a sair do centro, de sacos nas mãos, jovens a conversar.
O encontro de jovens no Colombo estava marcado, através do Facebook, para as 14h de ontem. De manhã, o comissário Rui Costa, da PSP, já tinha dito ao PÚBLICO que esta força de segurança estava atenta e tinha adaptado “os meios, que são diferentes do normal”. Havia agentes a circular no interior e também junto às entradas, mas o próprio centro tem uma esquadra (para tratar sobretudo de furtos). E havia, segundo uma outra fonte da PSP, elementos do corpo de intervenção, “como há no Bairro Alto, no fim-de-semana”, equipas de intervenção rápida e agentes à civil. Apesar disso, e como já tinha avisado de manhã o comissário Rui Costa, não se tratava de “de nenhum cenário bélico”.
O alarme foi lançado, porque, no passado dia 20, um meet marcado para a zona do centro comercial Vasco da Gama, em Lisboa, acabou em desacatos, feridos e detenções.
“Acho que há mais seguranças do próprio centro do que nos outros dias, mas agentes da polícia é o normal”, diz Inês Silva. Já Paula Monteiro, 41 anos, que trabalha numa loja de flores, acha que havia mais polícias e vigilantes do que o habitual. “O meu patrão informou a administração de que se houvesse algum problema, fecharíamos a loja.” Não houve. Pelo menos até às 20h, não se passou nada. Alguns lojistas falavam de menos clientes, mas a administração garante que o movimento era normal, igual ao dia anterior.
Apesar de admitir que o tema foi do meet foi abordado nas reuniões regulares que a administração faz com a polícia, o director de comunicação da Sonae Sierra, Tiago Vidal, nega que o centro estivesse ontem com mais vigilantes. Garante que num centro por onde passam diariamente 60 a 70 mil pessoas o sistema de vigilância está sempre a funcionar e em articulação com as autoridades policiais. E que estão habituados “a gerir grandes fluxos de pessoas”.
Claro que havia, numa tarde de Agosto, grupos de jovens a conviver: circulavam nos corredores, conversavam no exterior. Algum pode ter ido à espera do meet. Às 18h, dois adolescentes permaneciam sentados a apanhar sol, numa das entradas do centro. Vieram ao meet? “Não.” Costumam ir? “Não.” Costumam vir para aqui conviver, namorar? “Não. Estamos só à espera de um amigo que trabalha aqui.”

O que havia ontem era um número invulgar de profissionais da comunicação social à porta do Colombo. À volta de vinte. Alguns andavam de entrada em entrada, dentro e fora do centro, e iam consultando, nos telemóveis, a página do evento, na qual havia já várias publicações de tom humorístico. Um utilizador publicou uma fotografia de um carro blindado a dizer que estava a chegar e a estacionar e outros diziam que a polícia e os jornalistas tinham sido enganados. Repórteres, fotojornalistas, televisões com carros de exteriores, microfones, câmaras. Foi um meet de jornalistas.
O alerta para o evento marcado para as 14h desta quarta-feira sob o mote “vamos conhecer o pessoal sem estrilhos e com diversão” foi feito pela própria Sonae Sierra, que administra o centro comercial, segundo avançou o Correio da Manhã na edição desta quarta-feira. Para o evento foram convidadas mais de 1000 pessoas através do Facebook, ainda que pouco mais de 50 tenham já confirmado presença.

“Estamos preparados para este como para vários acontecimentos”, reforçou Rui Costa, acrescentando que “a PSP não quer contribuir para acender as chamas à volta dos encontros de jovens”, depois dos incidentes num encontro semelhante no Centro Comercial Vasco da Gama (também da Sonae Sierra) e que a polícia vê como um “acto isolado”. Ainda assim, o porta-voz justificou que perante o conhecimento do evento tiveram “uma preparação que não seria rotineira”.

O comissário não adiantou os meios envolvidos, lembrando que a força de segurança tem sempre dispositivos prontos para actuar em segundos, mesmo em situações não antecipadas. “Apenas adaptámos os meios, que são diferentes do normal, mas não se trata de nenhum cenário bélico”, insistiu o responsável da PSP. Depois dos incidentes da semana passada no Centro Comercial Vasco da Gama, a PSP já tinha admitido que iria estar mais atenta aos encontros de jovens convocados pelas redes sociais, ainda que os desacatos não sejam comuns.
In “PSP reforça meios mas recusa "acender as chamas à volta" do meet no Colombo” /PÚBLICO

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