ENTREVISTA
Se os media não falassem nisso, o
meet só dizia respeito aos participantes
NATÁLIA FARIA
27/08/2014 - 23:01
Luís Fernandes, psicólogo e investigador especializado em comportamentos
desviantes, considera que os meets mais não são do que uma forma de os
adolescentes procurarem visibilidade perante uma sociedade “em que não se vêem
inscritos”. São apenas jovens a tentar projectar-se no mundo, desdramatiza.
Quanto ao resto, é efeito mediático
Depois do meet do
centro comercial Vasco da Gama que, na semana passada, juntou cerca de 600
jovens e que terminou com quatro detenções por desacatos , o novo meet
anunciado para esta quarta-feira no centro comercial Colombo que, segundo
vários órgãos de comunicação social teria mobilizado um forte contingente
policial, de prevenção, não chegou a acontecer. Mas, afinal, o que são estes
meets?
“São a resposta à
necessidade que os adolescentes têm “de se tornarem visíveis aos olhos da
sociedade”, desdramatiza o psicólogo Luís Fernandes, para quem o potencial de
ameaça residiu apenas na forma como foram vistos. Para este investigador
especializado na área dos comportamentos desviantes não há nada de racista na
origem destes encontros, constituídos maioritariamente por jovens
afro-descendentes. “O racismo constrói-se depois nas mensagens que vão
aparecendo sobre o assunto”, sublinha, alertando para o risco de a atenção
policial e mediática poderem ainda, essas sim, exacerbar os ânimos e
transformar meros convívios em manifestações de protesto.
Estes encontros
entre jovens são o quê? Uma mera exibição inócua de intenção convivial?
Estamos a falar
de teenagers e de pessoas maioritariamente menores de idade. O facto de as
pessoas na fase da adolescência procurarem motivos para se encontrar é
absolutamente normal, numa altura em que estão a descobrir as suas capacidades
de socialização e em que estão a descobrir também como se ligam ao mundo. A
diferença entre a criança e o adolescente é que o adolescente começa a
projectar-se no mundo e a tentar perceber que papel tem nele. Portanto, é uma
idade de ensaios. E estes ensaios fazem-se através da visibilização, quer
dizer, os adolescentes têm necessidade de se tornar visíveis aos olhos da
sociedade. Pode ser através do desporto (ainda agora no Futebol Clube do Porto
estão a glorificar um miúdo de 17 anos [Ruben Neves]…) ou da procura de
excelência a nível das artes ou de outra coisa qualquer. Quem não tem esses
instrumentos, arranja outros, nem que sejam encontros em espaços públicos de
forte visibilidade. E, portanto, não é nada de anormal, é a procura de
visibilidade aos olhos da sociedade.
Que dizer desta
esta escolha dos centros comerciais, que são de alguma forma espaços
apropriados pela classe média…
Porquê o Vasco da
Gama? Porquê o Colombo? Porque são espaços de consumo e de grande visibilidade,
onde vai muita gente e que são, de certo modo, símbolos. Mas eu até diria que
os centros comerciais são transclassistas. Há gente que vai lá para fazer
compras, porque eles teoricamente são comerciais, mas, muito mais do que isso,
eles hoje são lugares onde as pessoas vão para verem e para serem vistos. Diria
que os centros comerciais são os novos lugares de cruzamento das pessoas.
Seria abusivo
presumir-se que haveria na escolha dos lugares alguma intenção de entrar e
“contaminar” os tais espaços da classe média?
Eu acho que há
uma intenção de os adolescentes se visibilizarem aos olhos das classes que eles
suspeitam ou que imaginam que estão nestes espaços que são as classes médias.
Acho que é só isso. É uma procura de serem vistos. Poderiam visibilizar-se de
outras maneiras, mas provavelmente não teriam sucesso nisso. O problema numa
sociedade que glorifica o aparecer e a imagem pública é o ‘Como posso fazer-me
presente quando a competição é tão brutal? Será que posso ser bom na escola?
Será que posso ser bom se entrar num conservatório ou se for para um clube desportivo?’
Se eu não consigo estes espaços de afirmação, procuro outros e imediatamente
surge a rua – e neste caso a rua é um centro comercial, mas é rua, é espaço
público.
A questão do
racismo foi desde cedo associada ao noticiário sobre os meets. Efectivamente,
muitos dos miúdos que se mobilizam para estes meets no Facebook são de cor
negra. Mas a palavra racismo só agora começa a ser nomeada nos posts dos
miúdos. A que ponto a questão da raça poderá estar aqui presente?
O racismo é uma
construção interactiva, isto é, o racismo existe quando falamos dele e quando
nos comportamos em função dele. Um meet que é convocado por pessoas não brancas
- não sei se todas negras, mas não brancas - e isto tem um potencial de ser
lido, por exemplo pelos brancos, como uma ameaça. Se for lido como uma ameaça,
vão aparecer mensagens das redes a falar dessa ameaça. Evidentemente, a polícia
está atenta, e é obrigação dela estar, e é natural que monte um dispositivo
preventivo, do mesmo modo que faz quando acompanha claques de futebol. Mas
depois as pessoas vão dizer ‘Ah, a polícia já está lá e é para dar porrada
porque há racismo e tal’. Mas tudo isto depende muito de como nós produzimos
mensagens em torno de qualquer coisa que, em si mesma, não tem nada de rácico.
O racismo, como disse, é uma construção simbólica no jogo de dominâncias entre
raças e traz sempre associados a si agressores e vítimas. Não é uma qualidade
inerente à raça branca ou à raça negra. Evidentemente que os que estão em
minoria, que neste caso são os negros e os afro-descendentes, sentem-se
vítimas. E estas, por sua vez, quando se sentem realmente vítimas, são
potenciais agressores. E depois a etnia dominante, que neste caso são os
brancos, vai dizer ‘Pois, mas eles agridem, estão a ver? E portanto, nós vamos
mesmo ter que os conter e que os delimitar e que os policiar’. A construção do
racismo é isto: atribuições mútuas de desconfiança e de agressividade.
Há o risco de a
actuação da polícia e dos media alimentarem estas tensões latentes?
Há sempre. Até porque
estamos a falar de adolescentes - e aqui não importa se são afro-descendentes
ou não - e os adolescentes gostam do risco. Ora, uma das formas de
visibilização é assumir o risco. Seja no desporto radical seja em proezas
imensas que parecem gratuitas pela forma como o indivíduo se expõe sofrendo
lesões físicas e tudo. O risco é muito atractivo. Claro que isto para a polícia
é sempre um pau de dois bicos, porque simultaneamente a polícia tem de estar
atenta.
Qual seria a
forma correcta de actuar?
Seria a polícia
estar presente do modo o mais discreto possível. Isso a polícia sabe muito bem.
Em termos de
mediatização, que efeito poderá ter o facto de um jornal fazer manchete com a
notícia de que vai acontecer um meet e de que a polícia está preparada? Como é
que isto pode ser tratado?
Os media têm um
grande papel na amplificação destes fenómenos. Aliás, se estou a par do anúncio
do meet de hoje [ontem] é porque ouvi a TSF que por sua vez citava o Correio da
Manhã. Se os media não falassem nisso, o meet era qualquer coisa que só dizia
respeito aos participantes. Podia acontecer que quem passasse no centro
comercial a essa hora achasse estranho e procurasse até afastar-se, mas não
passaria de uma concentração. Eu, ainda no domingo de manhã, ia a passar na ribeira
de Gaia e deparei-me com uma concentração de motards. Eram muitos, estavam ali,
a conviver. Reparei neles e mais nada.
Conseguir-se-á
perceber se, à semelhança do famoso arrastão de Carcavelos, o fenómeno dos
meets estará daqui a um mês desaparecido, desconstruído, ou se, pelo contrário,
os meets poderão degenerar em manifestação de descontentamento de minorias?
Há uma coisa que
podemos dizer com alguma segurança: quanto mais focagem mediática dermos ao
meet, mais potencial de repetição tem. Portanto, é natural que durante algum
tempo haja mais meets. Se vão acontecer coisas nos meets ou não, depende da
forma como as redes sociais trocarem mensagens sobre isto e se isso irá ou não
exacerbar ânimos. E as redes sociais são as pessoas que escrevem todos os dias
na Internet e que deveriam ser discretos, mas nem toda a gente está interessada
em ser discreta, há gente que, se calhar, nem sai de casa, mas que está a
escrever nas redes e que depois gosta de ficar de fora a ver o pessoal à
batatada. Há um potencial fílmico nisto. E a rapidez com que isto salta para o
Youtube é a prova do que estou a dizer. A omnipresença da imagem faz com que
todos os dias a realidade nos forneça uma série de filmes. Muita gente está
viciada nisto.
E quanto ao
barulho todo em torno de um meet que, afinal, não existiu?
Não há
determinismos automáticos. Os miúdos são agentes activos e, perante as notícias
que foram lendo, reorientaram o seu comportamento. Neste caso, não aparecendo.
Perante o discurso adulto veiculado pelos media, o que os miúdos fizeram foi
reposicionar-se, iniciando um jogo do gato e do rato, do género ‘Vocês vão
andar atrás de nós e nós vamos dar-vos baile’. Mas, no fundo, é a continuação
do jogo, da procura de continuar a aparecer e de se inscreverem no espaço
público, até porque há novos meets convocados. Mas o pano de fundo é o mesmo.
Nós temos uma crise instalada - e não estou a falar da crise que começou em
2008, estou a falar da crise como fenómeno presente nas sociedades ocidentais
há várias décadas. A crise do trabalho, por exemplo, que faz com que o
desemprego juvenil já seja uma realidade há muitos anos; a crise da família,
com as famílias monoparentais, disruptivas, até na forma como se fazem e
desfazem; a crise na educação, com a escola incapaz de produzir a integração
dos mais pobres, de algumas etnias, com uma escola que fala muito em
multiculturalismo mas que depois é extremamente convencional e que funciona
sempre um bocado no ideal das classes médias. Todo este quadro de crise faz com
que uma grande quantidade dos nossos adolescentes e dos nossos jovens não tenha
espaço de inscrição social. Isto é, de se sentirem respeitados, úteis e
inscritos no funcionamento da sociedade. Portanto, temos hoje uma grande
quantidade de jovens naquilo a que alguns especialistas chamam os espaços de
não inscrição. E eles têm que reinventar a forma de se inscreverem na
sociedade. Os meets não são mais do que uma forma de reinvenção da inscrição
social. Se ela depois pode ter um potencial positivo ou negativo, os factos o
dirão. Mas uma coisa é certa: quando a sociedade formal (que é responsável pela
escola, pelo emprego, pela família, pelo associativismo…) não consegue
respostas para uma série muito grande de adolescentes e de jovens, eles
resolvem o problema sozinhos. Vão arranjar maneira de produzir auto-inscrições.
É isso que se está a passar com os meets, não é mais nada.
Foi um meet de jornalistas
Maria João Lopes
/ 28-8-2014/ PÚBLICO
Inês Silva, 25
anos, está calmamente a comer um gelado com amigas à porta do centro comercial
Colombo, em Lisboa. Trabalha ali, é advogada estagiária e está a fazer uma
pausa. Ouviu falar, através da comunicação social, do meet que estaria marcado
para ontem naquele local. Mas o meet não aconteceu. A jovem olha à volta, está
tudo tranquilo: pessoas a entrar e a sair do centro, de sacos nas mãos, jovens
a conversar.
O encontro de
jovens no Colombo estava marcado, através do Facebook, para as 14h de ontem. De
manhã, o comissário Rui Costa, da PSP, já tinha dito ao PÚBLICO que esta força
de segurança estava atenta e tinha adaptado “os meios, que são diferentes do
normal”. Havia agentes a circular no interior e também junto às entradas, mas o
próprio centro tem uma esquadra (para tratar sobretudo de furtos). E havia,
segundo uma outra fonte da PSP, elementos do corpo de intervenção, “como há no
Bairro Alto, no fim-de-semana”, equipas de intervenção rápida e agentes à
civil. Apesar disso, e como já tinha avisado de manhã o comissário Rui Costa,
não se tratava de “de nenhum cenário bélico”.
O alarme foi
lançado, porque, no passado dia 20, um meet marcado para a zona do centro
comercial Vasco da Gama, em Lisboa, acabou em desacatos, feridos e detenções.
“Acho que há mais
seguranças do próprio centro do que nos outros dias, mas agentes da polícia é o
normal”, diz Inês Silva. Já Paula Monteiro, 41 anos, que trabalha numa loja de
flores, acha que havia mais polícias e vigilantes do que o habitual. “O meu
patrão informou a administração de que se houvesse algum problema, fecharíamos
a loja.” Não houve. Pelo menos até às 20h, não se passou nada. Alguns lojistas
falavam de menos clientes, mas a administração garante que o movimento era
normal, igual ao dia anterior.
Apesar de admitir
que o tema foi do meet foi abordado nas reuniões regulares que a administração
faz com a polícia, o director de comunicação da Sonae Sierra, Tiago Vidal, nega
que o centro estivesse ontem com mais vigilantes. Garante que num centro por
onde passam diariamente 60 a
70 mil pessoas o sistema de vigilância está sempre a funcionar e em articulação
com as autoridades policiais. E que estão habituados “a gerir grandes fluxos de
pessoas”.
Claro que havia,
numa tarde de Agosto, grupos de jovens a conviver: circulavam nos corredores,
conversavam no exterior. Algum pode ter ido à espera do meet. Às 18h, dois
adolescentes permaneciam sentados a apanhar sol, numa das entradas do centro.
Vieram ao meet? “Não.” Costumam ir? “Não.” Costumam vir para aqui conviver,
namorar? “Não. Estamos só à espera de um amigo que trabalha aqui.”
O que havia ontem
era um número invulgar de profissionais da comunicação social à porta do
Colombo. À volta de vinte. Alguns andavam de entrada em entrada, dentro e fora
do centro, e iam consultando, nos telemóveis, a página do evento, na qual havia
já várias publicações de tom humorístico. Um utilizador publicou uma fotografia
de um carro blindado a dizer que estava a chegar e a estacionar e outros diziam
que a polícia e os jornalistas tinham sido enganados. Repórteres,
fotojornalistas, televisões com carros de exteriores, microfones, câmaras. Foi
um meet de jornalistas.
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