E se ele fala?
Rui Ramos
12/8/2014,
OBSERVADOR
Imaginem que
Salgado não fala, não colabora, não diz nada, arrola uma multidão de
testemunhas, arrasta os pés. Um dia, o terreno estará pronto para avançar com o
seu próprio relato de vitimização
Há semanas, uma
pergunta de Eurico Brilhante Dias terá plantado arrepios na política e
arredores: “e se Ricardo Salgado conta o que sabe?” Sim, e se o ex-presidente
do BES resolve colaborar com a justiça, dizer tudo, explicar tudo, com todas as
datas e todos os nomes? Quem foi “dono disto tudo” deve provavelmente saber
disto tudo. E se ele fala?
Ora bem, àqueles
a quem o porta-voz do secretariado do PS criou alguma expectativa ou roubou
alguma tranquilidade, quero dizer: não se entusiasmem, nem se preocupem. Porque
ele não fala. É que se decidisse ajudar a justiça, Salgado teria muito a perder
e nada a ganhar, a não ser eventualmente uma consciência limpa, mas isso é
outra história.
Imaginem que
Salgado não fala, não colabora, não diz nada, espera pelas diligências, arrola
uma multidão de testemunhas, arrasta os pés. Em primeiro lugar, ganhará imenso
tempo. Em segundo lugar, poderá apostar no descrédito do sistema judicial para
toda a gente começar a ter dúvidas acerca do que ele fez ou não fez. Mais: nos
jornais, na rádio e na televisão, vão defendê-lo todos aqueles que do silêncio
dele dependem, e não o vão atacar aqueles a quem o “caso BES” importa apenas
para bater no governo ou no governador do banco de Portugal. Um dia, o terreno
estará pronto para Salgado avançar com o seu relato de vitimização, caucionado
por algumas notabilidades do regime. Por fim, tirando uma meia dúzia de
excitados, a maioria das pessoas já não saberá no que acreditar.
Imaginem agora
que Salgado fala, colabora, diz tudo, revela, ajuda, dá os nomes, as datas, as
situações, as provas. Em primeiro lugar, isto só quer dizer uma coisa: Salgado
confessou, e como a justiça portuguesa, mais do que de provas, vive da
auto-incriminação, e a confissão de um só não implica a confissão dos outros,
este processo passaria a ter um culpado, mas não é certo que viesse a ter
outros. Ou seja, Salgado, falando, iria apenas garantir a sua própria
condenação — e com uma pena pesada, porque a justiça portuguesa não premeia
quem colabora. Em segundo lugar, ao virar-se contra aqueles que agora poderão
ter algum interesse em defendê-lo, Salgado iria criar-lhes um interesse em
atacá-lo. Nos jornais, na rádio, e na televisão, entrariam rapidamente em
campanha para desacreditar Salgado, até como maneira de desvalorizar o seu
testemunho.
Nos EUA, talvez
Salgado tivesse vantagem num acordo com o Ministério Público, de que resultasse
uma pena leve, em troca de uma confissão integral. Isso é assim, porque nos EUA
a ideia de justiça não é incompatível com a ideia de eficiência: o sistema está
disponível, através por exemplo de “plea bargain”, para compensar o criminoso
que colabora, se daí resultar uma justiça mais rápida e mais completa. Não é
assim em Portugal, onde um conceito de justiça absoluta, cega, sem preocupação
com a eficácia, dissuade qualquer cooperação. Por isso, a justiça americana,
quando apanha uma peça, tem a possibilidade de fazer cair o dominó. Em
Portugal, pelo contrário, é provável que o suspeito que ajudou a justiça venha
a ser o único condenado do processo. A justiça inflexível funciona, assim, como
se o seu objectivo fosse fazer respeitar o Código de Honra da Mafia.
Em teoria dos
jogos, existe uma situação conhecida como o “dilema do prisioneiro”. É assim,
de forma simplificada: dois presos sabem que se nenhum confessar, serão ambos
soltos, mas que se um deles confessar primeiro, esse terá uma pena mais leve e
o outro uma pena mais pesada. A conclusão é que ambos tenderão a cooperar com a
justiça, incriminando-se, para se protegerem do risco de o parceiro falar
antes. Em Portugal, a justiça poupa todos os seus “prisioneiros” a este dilema,
na medida em que quem falar arrisca a pena mais pesada. Por isso, não tenham
esperanças – nem receios: ele não fala.
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