Organizador de fóruns, pai
português dos spin doctor ou vendedor de presidentes?
Nuno Sá Lourenço
/ 14-8-2014 / PÚBLICO.
Foi no auge da
sua carreira que Emídio Rangel proferiu uma das suas frases mais polémicas e
que haveria de o perseguir durante longos anos. Devido a ela, foi acusado de
arrogância e poder desmesurado. Assumir a pretensão de transformar a sua SIC
num canal capaz de tudo influenciar ou vender, desde um sabonete a um
Presidente da República, gerou polémica. A frase nem era sua, tendo sido
originalmente cunhada nos EUA em meados do século passado.
O potencial para
se transformar num fazedor de reis era real, graças aos 50% de audiências que a
SIC tinha no final do século. As opiniões dividem-se sobre o real impacto do
projecto de Rangel na política. Uns destacam a “diversidade” e o “combate a um
sistema que estava estabilizado num statu quo” a “preto e branco”. Outros
reconhecem que, no seu auge, “ele conseguiu isso” de tanto vender um presidente
como um sabonete.
O
ex-primeiro-ministro José Sócrates avisa, desde logo, que Rangel era um
“querido amigo” sobre quem não deixa de salientar o “seu espírito insubmisso e
de inclinação iconoclasta”, portador de uma “força reformista que era
criativa”. Em vez da ideia do fazedor de reis, Sócrates prefere destacar Rangel
como o “rosto” da “transformação”. Não só do jornalismo mas também da política:
“Com ele passou-se de uma política a preto e branco para um política mais viva.
E que marcou, aliás, o fim do cavaquismo.” “As televisões privadas mudaram
muito a política, na maior parte das vezes para melhor”, afirma. “Mais
oportunidade, maior diversidade, mais pontos de vista”, concretiza o ex-primeiro-ministro.
Uma mudança que resultou também do “gosto pelo debate político” que Rangel
tinha. Lembra a criação do Fórum TSF como “exemplo” disso mesmo.
O sociólogo
Paquete de Oliveira, que conheceu e trabalhou com Rangel nesses primeiros anos
da SIC, assume a mesma visão. “Ele direccionou a informação da SIC para o
combate de um sistema que estava estabilizado num statu quo”. O que Rangel
pretendia era uma televisão que “despertasse, na consciência pública, a
emergência de uma opinião cada vez mais livre”. Quanto à aspiração de vender
presidentes, Paquete arrumou-a como “um princípio orientador”.
Arons de
Carvalho, que foi deputado pelo PS e é actualmente membro da Entidade
Reguladora da Comunicação, também não faz juízos maquiavélicos sobre a polémica
frase. “Ele utilizou-a para valorizar o poder da televisão”, explica ao
PÚBLICO. Reconhecendo que Rangel marcou a forma de fazer jornalismo e, por
consequência, a forma de fazer política. “Na TSF introduziu a informação no
momento, e depois transmitiu essa agressividade informativa à SIC.”
Essa
assertividade produziu ondas de choque na política. Arons identifica a sua
influência nos pequenos pormenores: “Passou a haver timings para as
conferências de imprensa dos políticos.” Paquete de Oliveira reconhece que uma
“estação com um poder desses [50% de audiências] é influenciadora da opinião
pública e pode ser influenciadora na escolha de um candidato político x ou y.”
Vasco Ribeiro,
ex-assessor de imprensa, agora professor e investigador de comunicação política
na Universidade do Porto, é peremptório. “Concordo plenamente com essa frase.
Naquele período ele conseguia fazer isso”, assegura. “A SIC tinha um poder
incrível. Há um antes e um depois da SIC de Rangel. Antes dela tínhamos uma
televisão controlada pela tutela política. Chega a televisão privada, sem esse
filtro, com um alinhamento mais agressivo, e consegue comunicar com o eleitor
de outra forma”, resume.
E a melhor forma
de o perceber, destaca Vasco Ribeiro, foi o resultado desse novo jornalismo nos
gabinetes ministeriais: “É nessa altura que surge o spin doctor em Portugal. Aumenta
a partir desse período a contratação de assessores de imprensa.” Os políticos
pressentiram a necessidade e os benefícios de ter alguém com “facilidade de
contactos e capazes de filtrar a informação”.
O legado que
fica, desses novos anos 1990, para Arons de Carvalho, é o da “informação
independente”. Paquete de Oliveira destaca o “espírito de independência”.
E, no entanto, há
outro legado que Sócrates não quer imputar a Rangel. Opta por falar nas
televisões em geral quando fala na “arrogância da ideia de que a televisão
comanda a política”. “As estações transformaramse em instrumentos importantes
no debate político, é um facto. Mas têm agora a pretensão da imposição dos pontos
de vista maioritários. Definem os especialistas que devem ser ouvidos, mas quem
deve legitimar esses especialistas? É a televisão ou,
por exemplo, a academia?”
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