quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Organizador de fóruns, pai português dos spin doctor ou vendedor de presidentes?


Organizador de fóruns, pai português dos spin doctor ou vendedor de presidentes?
Nuno Sá Lourenço / 14-8-2014 / PÚBLICO.

Foi no auge da sua carreira que Emídio Rangel proferiu uma das suas frases mais polémicas e que haveria de o perseguir durante longos anos. Devido a ela, foi acusado de arrogância e poder desmesurado. Assumir a pretensão de transformar a sua SIC num canal capaz de tudo influenciar ou vender, desde um sabonete a um Presidente da República, gerou polémica. A frase nem era sua, tendo sido originalmente cunhada nos EUA em meados do século passado.
O potencial para se transformar num fazedor de reis era real, graças aos 50% de audiências que a SIC tinha no final do século. As opiniões dividem-se sobre o real impacto do projecto de Rangel na política. Uns destacam a “diversidade” e o “combate a um sistema que estava estabilizado num statu quo” a “preto e branco”. Outros reconhecem que, no seu auge, “ele conseguiu isso” de tanto vender um presidente como um sabonete.
O ex-primeiro-ministro José Sócrates avisa, desde logo, que Rangel era um “querido amigo” sobre quem não deixa de salientar o “seu espírito insubmisso e de inclinação iconoclasta”, portador de uma “força reformista que era criativa”. Em vez da ideia do fazedor de reis, Sócrates prefere destacar Rangel como o “rosto” da “transformação”. Não só do jornalismo mas também da política: “Com ele passou-se de uma política a preto e branco para um política mais viva. E que marcou, aliás, o fim do cavaquismo.” “As televisões privadas mudaram muito a política, na maior parte das vezes para melhor”, afirma. “Mais oportunidade, maior diversidade, mais pontos de vista”, concretiza o ex-primeiro-ministro. Uma mudança que resultou também do “gosto pelo debate político” que Rangel tinha. Lembra a criação do Fórum TSF como “exemplo” disso mesmo.
O sociólogo Paquete de Oliveira, que conheceu e trabalhou com Rangel nesses primeiros anos da SIC, assume a mesma visão. “Ele direccionou a informação da SIC para o combate de um sistema que estava estabilizado num statu quo”. O que Rangel pretendia era uma televisão que “despertasse, na consciência pública, a emergência de uma opinião cada vez mais livre”. Quanto à aspiração de vender presidentes, Paquete arrumou-a como “um princípio orientador”.
Arons de Carvalho, que foi deputado pelo PS e é actualmente membro da Entidade Reguladora da Comunicação, também não faz juízos maquiavélicos sobre a polémica frase. “Ele utilizou-a para valorizar o poder da televisão”, explica ao PÚBLICO. Reconhecendo que Rangel marcou a forma de fazer jornalismo e, por consequência, a forma de fazer política. “Na TSF introduziu a informação no momento, e depois transmitiu essa agressividade informativa à SIC.”
Essa assertividade produziu ondas de choque na política. Arons identifica a sua influência nos pequenos pormenores: “Passou a haver timings para as conferências de imprensa dos políticos.” Paquete de Oliveira reconhece que uma “estação com um poder desses [50% de audiências] é influenciadora da opinião pública e pode ser influenciadora na escolha de um candidato político x ou y.”
Vasco Ribeiro, ex-assessor de imprensa, agora professor e investigador de comunicação política na Universidade do Porto, é peremptório. “Concordo plenamente com essa frase. Naquele período ele conseguia fazer isso”, assegura. “A SIC tinha um poder incrível. Há um antes e um depois da SIC de Rangel. Antes dela tínhamos uma televisão controlada pela tutela política. Chega a televisão privada, sem esse filtro, com um alinhamento mais agressivo, e consegue comunicar com o eleitor de outra forma”, resume.
E a melhor forma de o perceber, destaca Vasco Ribeiro, foi o resultado desse novo jornalismo nos gabinetes ministeriais: “É nessa altura que surge o spin doctor em Portugal. Aumenta a partir desse período a contratação de assessores de imprensa.” Os políticos pressentiram a necessidade e os benefícios de ter alguém com “facilidade de contactos e capazes de filtrar a informação”.
O legado que fica, desses novos anos 1990, para Arons de Carvalho, é o da “informação independente”. Paquete de Oliveira destaca o “espírito de independência”.

E, no entanto, há outro legado que Sócrates não quer imputar a Rangel. Opta por falar nas televisões em geral quando fala na “arrogância da ideia de que a televisão comanda a política”. “As estações transformaramse em instrumentos importantes no debate político, é um facto. Mas têm agora a pretensão da imposição dos pontos de vista maioritários. Definem os especialistas que devem ser ouvidos, mas quem deve legitimar esses especialistas? É a televisão ou, por exemplo, a academia?”

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