Ricardo Oliveira
Duarte / 7-8-2014 / OBSERVADOR
Mergulhar na Herdade da Comporta é entrar num mar de dúvidas e receios. As
obras pararam todas e até a junta de freguesia ficou sem o apoio de que
precisava para comprar uma carrinha nova.
A cruz vermelha
em cima das notas desenhadas a azul informa que não há dinheiro. Neste BES, na
Comporta, não há dinheiro. “Esta máquina nunca tem sido grande espingarda. Hoje
está boa amanhã não está…”
Ali mesmo ao lado
da dependência do Banco Espírito Santo, Miguel Serra saiu de trás do balcão,
depois de servir quatro minis, outros tantos cafés e um bagaço e encostou-se a
uma das mesas de bilhar do Clube Recreativo da Herdade da Comporta. A hecatombe
do Banco Espírito Santo tornou-se o tema dominante na aldeia: “É conversa do
dia, são comentários constantes. As pessoas mostram-se um bocadinho apreensivas
porque isto, parecendo que não, mexe com o pessoal todo daqui.” Ao receio
junta-se a dúvida. Na segunda-feira a seguir ao anúncio da criação do Novo
Banco, ficando o BES como “banco mau”, Miguel Serra, viu-se no papel de
conselheiro, “duas pessoas chegaram-me aqui a dizer que têm dinheiro no BES e a
perguntarem o que é que haviam de fazer, tirá-lo ou não? A mim…”
Ora boa ora má, a
incerta, e sem dinheiro, máquina de multibanco parece ser a metáfora perfeita
para estes dias. Que o diga a Junta de Freguesia da Comporta. Habituada às
“boas relações com a Fundação”, para este novo mandato, a presidente (há 16
anos), Maria José Martins, tinha elegido como objetivo comprar uma carrinha
nova para transportar as crianças e os idosos, e para isso contava juntar aos
poucos fundos da junta o apoio da Fundação Herdade da Comporta. Contava. “Há
dias recebemos uma comunicação oficial da Fundação a dizer que, atendendo às
condições atuais, é impossível atribuir o valor à junta.”
À presidente da Junta de
Freguesia um membro da família Espírito Santo disse que "estão a fazer
tudo para ficar com a Herdade".
Maria José
encontrou “uma pessoa da Fundação, da família Espírito Santo”, já depois de ter
recebido a carta, e o que ouviu não a descansou, pelo contrário: “disse-me que
estão a fazer tudo para ficar com a Herdade”. Ficou alarmada. “A preocupação é
se os Espírito Santo perdem a Herdade, o que acontecerá depois?! Com eles temos
boas relações, mas sobre alguém novo que possa vir não sabemos nada.” O
Observador tentou contactar a administração da Herdade da Comporta, para
perceber até que ponto a manutenção nas mãos da família Espírito Santo está em
risco, mas sem sucesso.
A preocupação da
presidente da Junta de Freguesia da Comporta lê-se a dois níveis: financeiro,
de apoio, e social. Dados de 2012 mostram que a Comporta tem 1268 habitantes,
“não lhe sei precisar o número, mas grande parte deles trabalha para a
Herdade”. Ora, numa situação de aperto, o receio de despedimentos anda hoje na
cabeça de muita gente.
Muitos temem, poucos dão a cara
À hora de almoço,
com o sol a pique, as esplanadas dos restaurantes da Comporta estão todas bem
compostas e o cheiro a peixe assado no carvão invade as ruas da aldeia. Um dos
responsáveis por isso, pelo cheiro, é José Tanganito. O trabalho a assar peixe
no restaurante “O Central” é sazonal, o Verão passa-o aqui, no Inverno “tem de
se fazer outras coisas, construção civil, pesca ou outras coisas quaisquer”.
Com pequenas interrupções para virar as grelhas com os carapaus, José Tanganito
conta que a situação do Grupo Espírito Santo é o tema de todas as conversas:
“Comentamos uns com os outros, o que se tem falado é que eles estão a perder, a
perder, a perder…” José admite que até ele se perde no meio das contas que
chegam pelos jornais. “Disso dos bancos não percebo nadinha, a gente não
trabalha com números…” Do que percebe é da terra onde nasceu há 50 anos e onde
sempre viveu: “Com o que nos preocupamos mais é com eles oferecerem trabalho à
gente e nós sustentarmos as famílias, que foi sempre o que aqui aconteceu. Eles
tinham aí projetos bons, e isso era importante por causa do emprego, mas agora
parou tudo.”
Saindo da
Comporta e rumando a sul, pela Estrada Regional 261, a frase de José
Tanganito ganha forma. Ao virar em direção aos extensos arrozais e ao mar, para
os Brejos da Carregueira, os sinais de que “parou tudo” começam a ser
evidentes. Na estrada há muito pouco alcatrão, numa grande extensão rasgado por
uma língua de brita. Do lado esquerdo há um estaleiro, onde praticamente não há
movimento, só três carros parados. No parque de estacionamento de um
restaurante, nas traseiras, vê-se parada uma máquina grande.
"Há empreiteiros
preocupados, pararam as obras em agosto e não sabem se voltam em Setembro"
“Alguns terrenos
foram loteados e vendidos a uns estrangeiros há uns tempos e está a ser
construído o saneamento básico, mas as obras pararam no início do mês”, diz uma
fonte, que prefere não ser identificada, ao Observador. A partir daqui, nesta
reportagem, torna-se tarefa impossível colar um primeiro e último nome às
frases que são ditas. Ninguém aceita dar a cara quando o assunto toca na
família Espírito Santo. Quem conhece bem os Brejos conta que “há empreiteiros
preocupados, pararam as obras em agosto e não sabem se voltam em Setembro. Até
as máquinas que andavam a espalhar água, por causa do pó, também pararam.” A
Presidente da Junta de Freguesia da Comporta, Maria José Martins, volta à
reportagem neste ponto para confirmar que “as obras pararam todas.” E nem o
facto de ser agosto ameniza o impacto: “por norma, se uma obra está para ser
começada no pico do Verão, não arranca por causa do turismo, mas não é disso
que estamos a falar, parou tudo, mesmo.”
O acesso à praia
é feito por uma estrada de terra batida que termina, para quem não tem casa
aqui, numa cancela de ferro. Para lá da barreira há campos de arroz e uma
enorme duna, depois a praia. O acesso pode ser feito por qualquer pessoa que
tenha vontade de fazer uma caminhada de cerca de 20 minutos. É aqui, nos Brejos
da Carregueira, que ficam as casas de férias de vários elementos da família
Espírito Santo. “Grande parte deles está neste momento lá, como é habitual”,
garante outra fonte que conhece bem os hábitos da família: “Fazem a vida
normal, mas conversam sobre o assunto. Nota-se que estão preocupados,
perturbados com tudo o que está a acontecer.”
E agora?
De volta à
Regional 261, tem de se continuar a seguir para sul para chegar à aldeia do Carvalhal,
por onde se passa para ir para a Praia do Pêgo, uma das mais famosas da região.
A praia é deslumbrante, mas há outro fator que a coloca nos lugares cimeiros da
popularidade, é lá que Ricardo Salgado tem casa. Apesar de uma tarde ventosa, a
praia tem muita gente. O parque de estacionamento, onde abundam carros de alta
cilindrada, está cheio.
No Carvalhal o
cenário é bastante diferente, nem vento nem muitas pessoas. Comum ao que se
encontrou para trás, o tema de conversa. Num supermercado o dono fala com uma
cliente, o que facilita a entrada do jornalista no grupo, mas assim que sai da
minha boca a profissão do outro lado os lábios cerram-se para um sorriso tímido
e um “eu não percebo nada disto, sou só eu a falar!” E o que dizem, então?
“Olhe, digo que vamos pagar nós.” Sempre insistindo para não citar o nome,
“veja lá”, o proprietário do supermercado não acredita que a solução encontrada
para o BES não só não tenha custos para os contribuintes, como também não se
reflita na Herdade da Comporta: “Vai mexer com a gente. Mexe com toda a gente.
Muitas empresas já foram, abalaram a 31 de Julho e não sabem se é para voltar.
Se eles não vêm não gastam. Isto depende muito de quem trabalha para eles,
direta ou indiretamente.”
Não muito longe
da aldeia do Carvalhal, também perto de Lagoas, fica o exemplo mais
paradigmático da estagnação a que a Herdade está votada como reflexo da crise
no Grupo, o Comporta Dunes. Trata-se de uma das duas Áreas de Desenvolvimento
Turístico da Herdade. São 551
hectares para os quais estão previstos quatro hotéis, um
hotel-apartamento, lotes para moradias, unidades turísticas e um campo de golfe
de 18 buracos. Um dos quatro hotéis, o ÀMAN, estava em construção, assim como o
campo de golfe, e o verbo está no passado não por causalidade. As duas obras
pararam nos últimos dias.
A Herdade da
Comporta pertence à Rio Forte, holding do Grupo Espírito Santo e é a maior
propriedade nacional detida por privados, tem 12.500 hectares .
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